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“Existe uma resistência ao governo Trump nos Estados Unidos?”

Há um mês, a resposta a essa pergunta seria não. Hoje, a resposta está começando a ser "sim"

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18 de março de 2025
12:00

A derrota de Kamala Harris em novembro de 2024, embora por uma pequena margem de 1,6% dos votos, provocou uma crise desmobilizadora dentro do Partido Democrata, pois diferentes correntes tentaram explicar a vitória de Trump e ao mesmo tempo criticar outras forças no seu partido por serem moderadas ou radicais demais. 

Alguns na ala à esquerda argumentaram que Harris era muito cautelosa em suas posições e deveria ter apresentado um programa populista radical. Outros, a criticaram por não distinguir suas políticas das de Biden. Alguns apontaram que o apoio do Partido Democrata a Israel na guerra contra o Hamas alienou os eleitores árabe-americanos e os apoiadores dos palestinos, que ficaram de fora da disputa ou votaram em Trump. 

A maioria reclamou que a campanha passou muito tempo se concentrando nas ameaças de Trump à democracia em vez de abordar as preocupações econômicas, especialmente a inflação persistente. O argumento “é a economia, estúpido”, tornou-se “é o preço dos ovos, estúpido” para explicar por que os eleitores indecisos escolheram Trump em vez de Harris.

Os ataques de Trump contra os imigrantes indocumentados como a causa mais imediata da criminalidade e do desemprego nos EUA (embora ambos estejam em níveis historicamente baixos) certamente desempenharam um papel crucial na conquista de votos dentro e além da base de Trump, de 40% do eleitorado.

Outro fator, mencionado de passagem, mas não levado a sério pela maioria dos comentaristas políticos e jornalistas, foi o fato de Kamala Harris ser uma mulher negra. Justamente por causa da eleição de Obama em 2008, houve um realinhamento e uma radicalização do Partido Republicano sob Trump que têm suas origens no movimento “Tea Party” de 2010 contra a eleição do primeiro presidente negro. E grande parte da oposição a Hilary Clinton, em 2016, e Harris, em 2024, pode ser resumida à pura e simples misoginia.

Esses debates internos paralisaram o Partido Democrata ao longo de novembro e dezembro. Dificultaram a elaboração de uma estratégia unida para se opor a Trump, embora os republicanos só tenham conquistado uma pequena maioria de três congressistas, na Câmara dos Representantes, e uma maioria de quatro membros, no Senado.

Ao anunciar suas escolhas para seu gabinete antes da posse, Trump provocou o primeiro momento de resistência. Os senadores democratas enfrentaram o desafio de tentar bloquear alguns dos indicados mais ultrajantes para chefiar ministérios importantes. Assim como na campanha eleitoral, os democratas falharam em perceber a coesão dos republicanos, que ficaram intimidados pelas ameaças de Trump de desafiar nas eleições internas (as primárias) de 2026 qualquer candidato que não se alinhasse com ele. Elon Musk sublinhou essas intimidações com uma promessa de despejar milhões nas campanhas dos leais a Trump, contra aqueles que não apoiavam os indicados do presidente. Embora alguns republicanos tenham rompido fileiras em algumas nomeações, Trump sustentou o apoio da maioria dos senadores e todos os seus indicados foram aprovados.

Então veio a posse em 20 de janeiro, e dezenas de ordens executivas projetadas para sobrecarregar e desmoralizar a oposição. Trump retirou os EUA da Organização Mundial da Saúde e do Acordo de Paris, perdoou mais de 1,5 mil pessoas que invadiram o Capitólio no 6 de janeiro de 2021 e declarou unilateralmente que estava anulando a 14ª Emenda da Constituição que garante direitos de cidadania a qualquer pessoa nascida nos Estados Unidos. Ele também nomeou Musk, que doou 290 milhões de dólares para a campanha presidencial de Trump, para dirigir um inventado “Departamento de Eficiência Governamental”.

Nos primeiros dias depois da posse, a maioria dos observadores e jornalistas se concentrou em entender como Trump pretendia implementar sua promessa de deportar milhões de imigrantes indocumentados. Neste sentido, eles foram pegos de surpresa pela repentina proeminência do trabalho de Musk e a sua equipe, que sistematicamente acessaram os sistemas informáticos de vários ministérios para desmantelar o Estado de Bem-Estar Social criado há noventa anos em resposta à Grande Depressão.

Centenas de milhares de funcionários públicos foram despedidos, incluindo a maior parte do pessoal da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), do Gabinete de Proteção Financeira do Consumidor e da Administração para os veteranos de guerra. Trump também planeja eliminar o Departamento de Educação, com cortes em cerca de metade da sua força de trabalho.

Estas iniciativas têm quatro objetivos estratégicos. A presidência Trump/Musk busca enfraquecer os programas governamentais demitindo ou encorajando centenas de milhares de funcionários públicos a renunciar ou se aposentar. Eles pretendem desmantelar agências reguladoras e entidades responsáveis ​​pelo combate à corrupção. O caos que eles causaram com demissões em massa e a eliminação de serviços governamentais é planejado para diminuir a confiança do público no Estado e abrir as portas para a privatização de programas cruciais. Além disso, as ações de Musk têm um objetivo adicional:  desviar a atenção do plano do governo Trump de aprovar uma lei para continuar a redução de impostos de renda dos 10% mais ricos da população.

Os primeiros sinais visíveis de resistência fora do Congresso vieram da Justiça, onde juízes em diferentes áreas do país declararam que as demissões eram ilegais. Políticos e ativistas começaram a organizar protestos em lugares onde funcionários públicos estavam perdendo seus empregos. Participaram também de reuniões comunitárias com os deputados republicanos do Congresso exigindo que eles explicassem as ações do governo implementadas por Musk.

Outro indicador de mobilizações crescentes é a turnê nacional de Bernie Sanders contra a “oligarquia”. A campanha de Sanders está atraindo milhares de pessoas para comícios em todo o país, incluindo em estados onde Trump ganhou as eleições, que respondem com entusiasmo ao seu discurso radical contra Trump e seus amigos bilionários.

Ao mesmo tempo, a “resistência” está organizando protestos em concessionárias de carros Tesla pedindo aos consumidores que boicotem ou vendam seus carros elétricos por causa dos esforços de Musk para demitir centenas de milhares de funcionários públicos. 

Se Trump estivesse apenas reduzindo o tamanho do governo federal, ele poderia estar em uma situação política melhor do que está. No entanto, a sua fixação em impor tarifas a outros países e seu comportamento errático em anunciar estas medidas, depois suspendê-las e em seguida renová-las, causou ansiedade entre os investidores e um declínio de 10% na bolsa de valores, em grande parte devido ao fato de que a maioria dos economistas prevê que as políticas tarifárias de Trump irão desencadear mais inflação.

Com tudo isso, a popularidade de Trump parece estar diminuindo. Uma pesquisa da CNN o coloca com 45% de aprovação e 54% de desaprovação. A única questão em que Trump tem números favoráveis ​​é no tratamento das questões de imigração. Entre todos os outros assuntos — desde a guerra na Ucrânia até a sua política econômica — a maioria se opõe às suas ações.

Se houver um aumento na inflação devido às políticas tarifárias de Trump e se mais e mais pessoas forem afetadas pelo corte de pessoal e programas do governo estadunidense, as mobilizações locais em todos os países provavelmente aumentarão em energia e militância.

Mas não vai ser fácil. Os democratas não têm maioria no Congresso, e há uma maioria conservadora na Suprema Corte, pronta para anular decisões de tribunais inferiores e atribuir poder excepcional a Trump para implementar suas políticas.

Para qualquer um que viva nos Estados Unidos ou acompanhe de perto sua política, os últimos dois meses foram um pesadelo vivo de dramas diários de um megalomaníaco impulsivo com comportamento de uma criança de sete anos. Mas a resistência começou.

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