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Respeito à Marina Silva: ela é coerente, o governo Lula, não muito

Por que a boiada do PL do licenciamento ambiental, que tinha sido contida nos anos Bolsonaro, passou justo agora?

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29 de maio de 2025
17:00

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Os ataques em série de senadores à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e ao licenciamento ambiental revelam que a única frente ampla que está realmente funcionando nesse país é a que mira um futuro que vai no sentido oposto ao esperado das Conferências do Clima da ONU, como a COP30, que será realizada em Belém no fim deste ano. 

Enquanto o presidente da COP30, o embaixador André Corrêa do Lago, faz uma romaria por todo o mundo convidando governos, empresas e sociedade civil a se engajarem em um mutirão pelo combate à mudança do clima, o mutirão que se formou no Parlamento nas últimas semanas atropela o principal regramento ambiental do país. Um movimento que pode, em última instância, ajudar a acelerar a mudança do clima, ao abrir espaço para desmatamento e mais exploração de petróleo.

A tentativa de flexibilização do rito do licenciamento não vem de agora. Durante o governo Temer, quase foi à votação, mas foi contida pela oposição, com importante atuação da Frente Parlamentar Ambientalista e da sociedade civil. Nos anos Bolsonaro, avançou um passo importante, ao ser aprovada em 2021 na Câmara, então comandada por Arthur Lira (PP-AL), mas parou no Senado, à época liderado por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que atendeu aos apelos da oposição e desacelerou a tramitação.

Por que, então, a boiada – que havia sido contida no governo que agia claramente em prol do desmonte ambiental – passa justamente sob o presidente Lula, que desde a campanha eleitoral de 2022 tenta se posicionar como um grande líder mundial que vai salvar o planeta? 

(Esse, aliás, é o tema do episódio desta semana do nosso podcast Bom Dia, Fim do Mundo. Convido todo mundo a ouvir.)

Muitas análises políticas de colegas jornalistas já deram conta do poder de fogo do atual presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), em sua empreitada pela liberação de petróleo no litoral do seu estado, na Foz do Amazonas. E também sobre como parte do governo quer acelerar obras, como a pavimentação da BR-319, e vê no Ibama um entrave para isso. O próprio Lula acusou o órgão de agir contra o governo e de fazer lenga-lenga em relação à autorização para a prospecção de petróleo na Foz do Amazonas.

A questão, e parece que às vezes Marina Silva é a única a enxergar isso com clareza, é que não dá para querer um desenvolvimentismo sem freios, a todo custo, e ao mesmo tempo impedir o colapso planetário.

Uma coisa vai na contramão da outra. Os impressionantes ganhos da gestão atual no combate ao desmatamento da Amazônia, que caiu quase 50% em dois anos, podem sucumbir se obras de estradas forem feitas na região sem o devido cuidado, por exemplo. 

Fora o impacto em emissões de gases de efeito estufa que o consumo desse combustível pode causar – é mais do que toda a emissão evitada pela queda do desmatamento.

O PL do licenciamento ambiental tem um artigo que parece ter sido feito sob medida para liberar o fatídico asfaltamento da BR-319, rodovia de cerca de 900 km que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM), cujo “trecho do meio”, de mais ou menos 400 km, está em estado de calamidade e fica intransitável em períodos de chuva.

Asfaltar esse trecho é prioridade dos políticos locais e foi uma das questões por trás dos ataques de senadores à Marina Silva nesta terça-feira (27). O senador Omar Aziz (PSD-AM) disse que ela “está atrapalhando o desenvolvimento do nosso país”. Ponto sobre o qual ela fez questão de retrucar lembrando que ficou 15 anos fora do governo e a obra não saiu do papel do mesmo jeito. Porque, óbvio, ali o risco é gigantesco.

Ninguém nega que a pavimentação é importante para as comunidades que vivem no entorno, muito menos Marina Silva, mas ela sempre diz que, para ser feita, essa obra precisa de muitas salvaguardas, de todo um esforço para blindar a região do efeito mais perverso – e extremamente bem conhecido – de se abrir rodovias na Amazônia, que é o desmatamento promovido não só pela obra em si, mas pelo efeito de espinha de peixe que ele cria no entorno.

Convido o leitor a fazer uma busca rápida na internet de imagens de satélite de rodovias como a Transamazônica. A partir da via principal, a espinha dorsal, se abrem vias transversais, bem como uma espinha de peixe mesmo, por onde avançam grileiros e exploradores de madeira. 

Ocorre que o tal “trecho do meio” da 319 – uma rodovia aberta durante a ditadura militar, que foi asfaltada à época, mas com os anos, sem o devido cuidado, acabou tendo trechos tomados pela mata – corta uma das áreas ainda mais bem preservadas do estado do Amazonas. 

Uma mata extremamente rica em biodiversidade que ainda resiste contra o avanço do arco do desmatamento justamente porque o acesso ali é difícil. O asfalto pode reverter isso. Um cálculo feito por pesquisadores da UFMG estimou que a obra pode quadruplicar o desmatamento nessa região.

Mas perder a vegetação ali pode acelerar o chamado ponto de não retorno da floresta. E a gente poderá testemunhar a Amazônia reduzindo muito sua capacidade de produzir chuva e regular o clima. 

O PL diz que o licenciamento ambiental de pavimentação em instalações preexistentes será realizado mediante emissão de uma simples licença de adesão e compromisso, a LAC, sem realização de estudo de impacto ambiental. O texto abre a possibilidade também para que estradas secundárias sejam licenciadas desse modo.

Fora o efeito simbólico. Só de a lei ser aprovada, já vai ter grileiro se antecipando na especulação de terra no entorno. E isso, gente, não só vai ser o fim dos planos de zerar o desmatamento da Amazônia como ainda vai ser um tiro no pé do agronegócio.

Há uma desconexão clara entre as discussões no âmbito global e no âmbito nacional. Combater o desmatamento é a principal contribuição que o Brasil pode entregar no curto prazo para os esforços globais de combate às mudanças climáticas – resultado que Lula vai querer mostrar na COP30. Mas ele não vai se sustentar pelo rumo que as coisas estão tomando.

De fato é mérito deste governo a queda do desmatamento. Assim como tinha ocorrido na passagem anterior de Lula pelo Palácio do Planalto. Em 2012, já sob Dilma, o desmatamento na Amazônia chegou à menor taxa histórica.

Porém, em uma dinâmica muito parecida com o que estamos vendo agora, naquele ano, também sob forte pressão da bancada ruralista, houve no Congresso a alteração do Código Florestal. Muitos especialistas atribuem àquela mudança, que anistiou desmatamentos antigos, o início da inversão da curva do desmatamento, que chegaria ao ápice depois com Bolsonaro. 

Outra similaridade entre as duas leis é que o novo Código Florestal criou o Cadastro Ambiental Rural, o CAR, que é autodeclaratório e abriu a porteira pra grilagem, do mesmo modo que o PL do licenciamento cria a LAC, também uma autodeclaração por parte do empreendedor. É mais uma lei jogando contra o programa de combate ao desmatamento.

“É um governo cheio de contradições e na agenda ambiental não dá pra ter contradição, tem de ter linha unificada de ação, porque momentos ruins invalidam os momentos bons”, me disse Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. O fato de o desmatamento ter caído ainda deixa o governo bem na fita, mas se voltar a subir, disse ele, a conversa muda de patamar, e aí a pressão, inclusive internacional, pode crescer. 

Marina Silva, que não só é muito coerente, como também fiel, costuma dizer que os resultados bons até o momento só foram obtidos porque o governo todo agiu para conter o desmatamento (o plano de combate na Amazônia, o PPCDAm, é composto por 19 ministérios). É sua forma de argumentar que não está sozinha, apesar das contradições dos companheiros de Esplanada. 

Mas ela bem sabe que só mesmo uma enorme mobilização social pode agora parar o desmonte em curso, como Marina mesma disse ao sair do Senado: “O licenciamento ambiental é uma conquista da sociedade brasileira. Neste momento, sinceramente, só o povo brasileiro pode evitar esse desmonte que está sendo proposto. Eles pensam que estão agredindo uma pessoa. Estão agredindo um povo. O futuro de um povo. Os direitos de um povo. E até mesmo os interesses econômicos e estratégicos de um povo com esse tipo de atitude. Eu quero ver como a gente vai continuar conseguindo os mesmos resultados positivos (…) se demolirem a vértebra da proteção ambiental, que é a lei do licenciamento.”

Yasmin Velloso/Agência Pública

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