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No STF, Big Techs perdem de 7 x 1

Supremo tem maioria para responsabilizar plataformas por conteúdo de usuários; crimes contra honra podem ficar de fora

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16 de junho de 2025
17:00

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Primeiro, agradeço às muitas respostas à minha última coluna e pela generosidade das suas palavras por terem me escutado. Não posso responder a todas individualmente, mas quero dizer que foram lidas, e foram importantes. Hoje, voltamos à nossa programação normal: tecnologia e política.    

Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a votação do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que determina que as plataformas de redes sociais, mensageria e busca só podem ser responsabilizadas por conteúdo de usuários se houver uma decisão judicial a respeito. 

A base do processo são duas reclamações: na primeira, uma professora reclama indenização por ter tido um grupo criado por alunos no finado Orkut; na segunda, uma dona de casa reclama por um perfil falso criado em seu nome onde um anônimo xingava vizinhos. No centro, qual é a responsabilidade das plataformas em situações como essas. 

André Mendonça havia pedido vistas, e retomou o julgamento avisando que seu voto duraria dois dias. Defendeu, seguindo a linha bolsonarista, que o Artigo 19 é constitucional e a liberdade de expressão nas redes sociais não pode ser tolhida por decisão do STF, pois “é preciso tomar cuidado redobrado com a inibição, por meio da excessiva intervenção sobre o indivíduo – seja por meio direto do Estado, seja por meio de organizações particulares –, da sua livre manifestação em arenas digitais”. Chamou, ainda, a liberdade de expressão de “liberdade das liberdades” e citou a legislação americana a rodo. Apelou ainda que o Congresso, quando legislar sobre o tema, adote a autorregulação das plataformas – música para os ouvidos das Big Techs. 

Não deu certo. 

A corte já formou maioria para acolher a inconstitucionalidade pelo menos parcial das plataformas, o que as obrigará a retirar proativamente conteúdos ilegais – de que tipo, ainda está em debate. Mas o entendimento pela inconstitucionalidade do Artigo 19 tem sido alcançado de lavada: foram 7 votos a favor e 1 contra, do próprio Nunes Marques.

Vale dizer que as Big Techs estão prestando muita atenção – e extremamente ansiosas – com a decisão. Vai ser a primeira vez, aqui no nosso triste continente, que elas serão obrigadas a gastar seu vasto capital para buscarem uma moderação mais proativa, provavelmente feita por seres humanos, essa coisa demodê. 

O Google já mandou seu recado à lá militares na época do governo Bolsonaro, quando assopravam à imprensa que “a caserna está de bom humor” ou “militares sobem tom, descem o tom”. Sem assumir seu nome, cargo ou que chefe que o mandou conversar com o jornalista, um “executivo do Google” soprou para o colunista do UOL Helton Simões Gomes que “definir o que é ofensivo é muito difícil, especialmente em um regime de responsabilização estrita no caso de você não fazer. Basicamente transforma as plataformas em censoras, e essa decisão sobre se algo é verdade ou falso deveria ser feita por tribunais”. (A mensagem era enviada ao mesmo tempo em que o presidente de assuntos globais do Google, Kent Walker, fazia um almoço para jornalistas convidados em Brasília. A Pública tentou participar, mas não foi convidada). 

Por ser o off the record um expediente que deveria ser usado como maneira de obter informações internas reveladoras sobre uma empresa, e não pra propagandear a visão de uma das corporações mais lucrativas da história do capitalismo (100 bilhões de dólares em 2024), não vou gastar mais o seu tempo elaborando o que disse o “executivo em off”. 

Mas, porque o argumento central – que o STF está obrigando as Big Techs a virarem censoras da verdade – foi bem discutido no voto do ministro Gilmar Mendes. 

“Esse paradigma de neutralidade com relação ao conteúdo foi completamente superado nas últimas décadas. Em vez de figurarem como agentes meramente “neutros”, ou como “tubos de comunicação”, fato é que empresas como Facebook, Google e Amazon interferem ativamente na circulação de conteúdo de terceiros”, disse. “Nesse cenário, os atores privados da internet se tornam responsáveis por mediar situações de conflitos entre direitos fundamentais básicos, muitas vezes antes da própria autoridade estatal.”

“A questão central que essas regulações endereçam não é a criação de novas restrições à liberdade de expressão, mas a democratização dos processos pelos quais essa liberdade é atualmente mediada”, disse ainda. “As plataformas digitais já funcionam como verdadeiros curadores do discurso público, determinando através de algoritmos opacos quais mensagens alcançam amplas audiências e quais permanecem invisíveis. Elas já removem conteúdos, suspendem contas e modulam o alcance de publicações com base em critérios internos frequentemente obscuros e inconsistentes”.

“O que as abordagens regulatórias contemporâneas propõem é justamente submeter esses processos decisórios a princípios de transparência, accountability e que são fundamentais em qualquer sociedade democrática”, afirmou. 

O ministro foi além e explicou que “a desagregação política no discurso on-line não é um efeito colateral da atuação das plataformas, mas sim um elemento crítico dos seus modelos de negócios.”

Segundo o caminhar dos votos, crimes de honra, como calúnia e difamação, devem ficar de fora da moderação proativa. 

Ambos os relatores, Dias Toffoli e Luiz Fux, já haviam votado pela inconstitucionalidade do Artigo 19. Luiz Fux abriu exceção para crimes contra a honra – nesses casos, a retirada do conteúdo deveria ter pedido judicial. Até agora, os votos podem ser resumidos da seguinte maneira: quatro ministros votaram a favor de restringir a necessidade de ordem judicial apenas aos crimes contra a honra, enquanto três – Dias Toffoli, Luiz Fux e Alexandre de Moraes – defenderam acabar completamente com essa exigência. 

A inconstitucionalidade do Artigo 19 será uma grande mudança para as Big Techs. Nos Estados Unidos, a Section 230, um artigo semelhante e que abertamente inspirou o artigo, tem sido questionada repetidamente na Corte Suprema, mas elas têm ganhado quase todas. O Brasil é a segunda maior democracia do continente, e pode criar um “spill over effect”, pode incentivar outros países da América Latina a ir no mesmo caminho.   

Alexandre de Moraes foi o último a votar e, como esperado, o voto dele foi o mais duro. Ele deixou transparecer sua irritação pela atuação truculenta das plataformas ao ironizar o seu poder: “Como alguém pode querer impor alguma coisa às Big Techs, que tudo podem e nada respondem?”. Para ele, as plataformas “devem ser legalmente equiparadas aos demais meios de comunicação”, e, portanto, seriam sujeitas às obrigações previstas no artigo 220 da Constituição, que determina que será uma lei federal que vai estabelecer limites legais para a liberdade de expressão – mas que essa deve ser aliada a outros princípios constitucionais.  

“Devemos ignorar todos esses princípios constitucionais protetivos contra a discriminação, contra o racismo, contra o nazismo, contra a homofobia, contra a tentativa de golpes de Estado, contra a agressão a crianças e adolescentes em nome da defesa de uma suposta entidade mitológica, que seria a liberdade absoluta de expressão?”, perguntou. 

Moraes votou pela responsabilidade civil e administrativa, sem necessidade de ordem judicial, a todos os casos em que houver impulsionamento pago, conteúdos publicados por robôs, discurso de ódio ou conteúdo antidemocrático. Também afirmou que as plataformas com mais de 45 milhões de usuários (Google, Facebook, TikTok, Instagram, WhatsApp, Youtube e LinkedIn) devem monitorar e agir para mitigar riscos sistêmicos contra a democracia. 

Cristiano Zanin afirmou que a exigência de ordem judicial para remoção de conteúdo não é suficiente para impedir a publicação de conteúdos ilegais, e por isso o Artigo 19 é parcialmente inconstitucional. Ele propõe que conteúdos manifestamente ilícitos exijam apenas notificação extrajudicial para terem que ser removidos e que casos complexos necessitem de ordem judicial para remoção. Também exige que as plataformas tenham o “dever de cuidado” sobre conteúdos nocivos. 

O ministro Luís Roberto Barroso adotou uma posição intermediária, mantendo a exigência de ordem judicial para crimes contra a honra, mas admitindo a notificação extrajudicial para ilícitos claros.

Já o ministro Flávio Dino defendeu que se adotem relatórios de transparência proativos e educação digital. Ele propôs que apenas conteúdos claramente ilegais fossem removidos por notificação extrajudicial e, como os demais, que crimes contra a honra necessitariam de ordem judicial. 

Ao finalizar, Dino afirmou: “Não existe liberdade sem responsabilidade em termos constitucionais”, concluindo que “liberdade sem responsabilidade é tirania”.

O julgamento será retomado no dia 25 de junho, para os votos de Edson Fachin, Nunes Marques e Carmen Lúcia, e depois haverá uma pausa para que as teses sejam unificadas em um entendimento comum. Provavelmente, teremos um cenário de 8 a 2, com os ministros apontados por Jair Bolsonaro adotando uma visão americanocêntrica e pró-Big Techs. Mas o destino do Artigo 19 já está selado, e isso muda tudo.  

É até possível que a decisão leve a uma retaliação da Casa Branca, que já tem ameaçado o Brasil e o próprio Alexandre de Moraes.  

Outra conclusão incontestável, que aliás já apareceu no voto de vários ministros: o STF vai ter que sair da paralisia e legislar sobre responsabilização das Big Techs. Com o PL 2630, o PL das Fake News, moribundo na Câmara dos Deputados, resta saber como isso vai andar.     

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