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Avenida Liberdade: a nova via de Belém que não nasceu com COP30

Planejada há mais de dez anos, obra promete desafogar trânsito, mas expõe disputa sobre legado da conferência climática

Reportagem
19 de agosto de 2025
12:00
Pedro Guerreiro/Agência Pará

Nas últimas semanas, a Avenida Liberdade, uma das principais obras de infraestrutura e mobilidade urbana em curso na Região Metropolitana de Belém, voltou ao centro do debate público, não por seu traçado de 13 quilômetros ou pelas promessas de desafogar o trânsito, mas por estar, de forma controversa, associada à Conferência do Clima da ONU, a COP30, que Belém sediará em novembro. A avenida virou alvo de críticas sobre o verdadeiro legado pós COP que Belém receberá.

As críticas ao projeto surgem de diferentes movimentos sociais, que apontam incoerências nos números e justificativas apresentadas pelo estado. Entre elas, estão a falta de consulta prévia, livre e informada, que é um direito de toda comunidade tradicional de ser consultada sobre os projetos e políticas públicas que os atingem. A obra também é acusada de gerar um paradoxo ecológico, já que o estado está promovendo arborização artificial em outras áreas da cidade enquanto derruba vegetação nativa para a estrada.

Em redes sociais e reportagens, a via foi citada como parte de um suposto “pacote de obras” para a conferência. Mas a história da Avenida Liberdade, de fato, começou bem antes de Belém se tornar vitrine global para as discussões climáticas e seu projeto inicial não faz parte do que foi divulgado como ‘legado da COP’.

E a COP30 com isso?
  • Apesar de não fazer parte do pacote oficial de investimentos para a COP, a avenida Liberdade é uma obra considerada importante para a mobilidade urbana em Belém – um dos desafios logísticos associados à conferência climática da ONU;
  • Além do corte de mata preservada na Área de Proteção Ambiental Belém, a estrada impacta comunidades ribeirinhas, que vivem do extrativismo e da pesca artesanal.

Avenida Liberdade: projeto antigo, promessa antiga

O projeto da Avenida Liberdade nasceu em 2012, ainda sob o governo de Simão Jatene (PSDB). A proposta era abrir um corredor entre Marituba, município vizinho de Belém, e a Avenida João Paulo II, na capital, facilitando o fluxo de veículos que congestionam as avenidas Almirante Barroso e Mário Covas e desafogando a BR-316, principal via de entrada e saída de Belém.

Mais de dez anos depois, a via reapareceu no discurso oficial do atual governo como resposta a engarrafamentos crônicos na saída da capital pela BR-316. Em 2020, o projeto ganhou corpo nos estudos de mobilidade do governo estadual e foi lançado como Eco Rodovia Liberdade.

Em 2023, vieram as audiências públicas, exigidas para o licenciamento ambiental. Moradores, lideranças comunitárias, representantes do Ministério Público e órgãos ambientais participaram dos debates. O traçado acompanha um antigo corredor de linhas de transmissão de energia o que, segundo o governo, reduz a necessidade de supressão de vegetação.

As obras se iniciaram em junho de 2024 e foram paralisadas por dois dias em outubro, após protestos da comunidade que exigia ser consultada sobre a obra.

No início de julho deste ano, moradores destas mesmas comunidades interditaram a via e a passagem de máquinas paralisando temporariamente a obra. Moradores e a Defensoria Pública denunciam que não houve consulta adequada e que o projeto ignora os protocolos previstos para obras que impactam comunidades quilombolas, como a Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI), garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é um instrumento fundamental para proteger os direitos de povos tradicionais, assegurando que tenham suas vozes ouvidas nos processos que os afetam diretamente.

Em julho, a Defensoria Pública ingressou com uma ação civil pública solicitando a suspensão das obras na área da comunidade até que o governo realize a consulta prévia com os moradores, cadastre as famílias afetadas e produza estudos sobre os impactos da construção.

Além disso, o órgão requer que o Estado indenize os ribeirinhos pelas perdas sofridas, reconheça a posse coletiva do território e avance no processo de regularização fundiária da comunidade Nossa Senhora dos Navegantes, uma comunidade ribeirinha que fica nas margens do rio Guamá, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Belém, e será impactada pelo projeto com a remoção de 120 residências.

Além disso, a Avenida Liberdade irá cortar uma das últimas grandes áreas de floresta urbana da região da Grande Belém.

O governo estadual afirma que a Avenida Liberdade trata-se de uma “via estruturante, planejada há anos, sem relação com a COP30”. A Secretaria de Infraestrutura afirma que a obra integra o Plano Estadual de Mobilidade e não o pacote de compromissos com a conferência climática.

O projeto foi idealizado ao mesmo tempo do prolongamento da Avenida Independência, inaugurada em 2013. Via que soma nove quilômetros e liga Ananindeua a BR 316, custou R$ 150 milhões e também trazia a promessa de desafogar o trânsito oferecendo uma nova rota de entrada e saída da cidade.

“Uma grande mentira” para abrir caminho ao lucro

Para o ativista socioambiental Maurício Santos, a Avenida Liberdade escancara uma contradição que Belém repete há décadas: destruir o verde que resta em nome de uma suposta modernidade.

“O governo alega que a obra resolverá congestionamentos na saída de Belém (BR-316), mas na verdade é um corredor para facilitar a vida das empresas de transporte de carga da Estrada Nova, ligando os portos privados direto à Alça Viária. Os números de veículos mudam o tempo todo. Não tem estudo confiável. É confundir a população de propósito”, afirma.

A crítica de Santos se apoia em números que mudam conforme a versão oficial evolui: em 2020, o governo estimava que 5 mil veículos iriam passar diariamente pela via finalizada. Poucos meses depois o número subiu para 6 mil. Em 2024, o número saltou para 23 mil. Em uma audiência pública em 2023, chegou a 100 mil veículos ao dia.

“E não é só o volume de tráfego que causa desconfiança. A maior promessa, a economia de tempo para quem cruza Belém, também se fragmenta sob a lupa de quem estuda mobilidade. A propaganda fala em reduzir 43 minutos de trânsito, mas simulações mostram que a economia real seria de 3 a 5 minutos em vários bairros ou até aumento de tempo em algumas rotas”, rebate Santos.

Para André Farias, pesquisador do Núcleo de Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (UFPA), os impactos imediatos da Avenida Liberdade incluem, por exemplo, o aumento considerável no transporte de cargas. Atualmente, mesmo com a Avenida Perimetral, já enfrentamos muitos problemas com o fluxo intenso de caminhões que levam mercadorias para embarque no porto de Vila do Conde, usando a Bernardo Sayão como rota. Com a nova avenida, esse trânsito de cargas deve crescer ainda mais.

“Embora o governo defenda a obra com o argumento de melhorar a mobilidade urbana, o verdadeiro objetivo por trás da construção da Avenida Liberdade é facilitar o escoamento de mercadorias. Na prática, trata-se de criar uma rota mais curta, rápida e barata para o transporte de produtos até o porto de Vila do Conde. No fim das contas, essa é a motivação real por trás da obra, não é uma avenida feita para as pessoas, mas para atender aos interesses do mercado e da logística de cargas”, afirma o pesquisador.

O verde que vira asfalto

O maior custo, segundo ambientalistas, não cabe na planilha de obras: 68 hectares de floresta urbana, parte deles dentro da Área de Proteção Ambiental da Bacia do Una, serão cortados para abrir o traçado. O governo promete compensações: 30 passagens de fauna: viadutos e túneis para reduzir impactos sobre a fauna e ciclovias de piso permeável. Para quem vive na cidade, a contradição salta aos olhos.

“Vão desmatar 68 hectares de floresta urbana, gastando R$ 400 milhões de dinheiro público enquanto vendem a obra como ‘sustentável’. É pura propaganda verde. Fora o risco de contaminação do principal manancial que abastece Belém de água. “O traçado passa perto dos lagos Bolonha e Água Preta, que abastecem grande parte das torneiras de Belém. Um acidente com carga química pode contaminar nossa água. E quem vai fiscalizar isso?”, pergunta Santos.

Além do impacto ambiental, o projeto carrega outra marca que preocupa quem vive na rota da obra: a Avenida Liberdade será uma rodovia de classe zero, ou seja, uma via expressa com pistas duplas e acesso totalmente controlado. Muretas e alambrados serão construídos nas laterais, proibindo a entrada de pessoas, animais ou qualquer travessia. “Você entra ali perto da UFRA [Universidade Federal Rural da Amazônia], na Avenida Perimetral, e só sai lá na Alça Viária, não tem cruzamentos, não tem interligação com os bairros vizinhos. Na prática, quem mora ao longo do traçado poderá ver a estrada passar pela janela, mas não terá como acessá-la. Ela será uma via que corta, mas não conecta”, alerta Santos.

A nossa equipe entrou em contato com a Secretaria de Estado de Infraestrutura e de Logística do Pará (SEINFRA) solicitando entrevista com o engenheiro responsável pela obra a fim de esclarecer as contradições apontadas pelas nossas fontes. Até a publicação desta reportagem não tivemos resposta.

Avenida Liberdade interfere na liberdade de quilombolas e populações tradicionais

A previsão é que a Avenida Liberdade passe a cerca de um quilômetro do Quilombo Abacatal, onde vivem 121 famílias, bloqueando a principal estrada de acesso à comunidade.

Segundo lideranças quilombolas, a rodovia irá passar por uma área que era o berçário da fauna local. Eles denunciam que a obra já causou impactos no rio e que o desmatamento tem forçado animais a invadirem plantações em busca de alimento, devido à perda de seus habitats. Para Vanuza Cardoso, liderança da comunidade, o impacto da Avenida Liberdade é mais um capítulo de um histórico de violações acumuladas pelo território, já pressionado por outros empreendimentos como linhões de energia e grandes projetos de mineração.

“A Avenida Liberdade, mesmo com o estudo de componente quilombola e o PBAQ [Programa de Melhoria da Qualidade do Ar] apontando impactos diretos, não teve compensações executadas. Os animais estão sendo atropelados, o calor aumentou muito, a produção de açaí e pupunha caiu, e a especulação imobiliária já chega na porta”, denuncia.

Cardoso afirma que, além de ignorar o direito de consulta, o Estado não cumpriu nem mesmo as poucas compensações prometidas, como expansão do território, posto de saúde e infraestrutura básica. Para as famílias, o projeto, que deveria ser discutido como legado sustentável, expõe um racismo ambiental escancarado na Região Metropolitana de Belém, atingindo diretamente a segurança alimentar, os modos de vida tradicionais e os direitos territoriais do quilombo, aprofundando desigualdades históricas que as lideranças se esforçam para denunciar e resistir.

Segundo ela, é um projeto pensado pela via do capital, uma avenida que beneficia a iniciativa privada e que em nenhum momento respeitou o meio ambiente, mesmo no ano da COP30.

Alternativas que não cortam árvores

Para o ativista Mauricio Santos, não faltam soluções mais baratas e que não devastam a floresta para a questão da mobilidade. A crítica vai além do traçado: questiona o modelo de cidade que se repete e se esgota. Para ele, o planejamento viário com terminais de cargas em Ananindeua, circulação de caminhões fora do horário de pico, uso das avenidas já existentes, melhoria no transporte público e uso da malha hidroviária resolveria o problema sem abrir uma nova estrada.

“A gente precisa de uma cidade que pare de ficar de costa para o rio. Uma cidade que se volte para a preservação dos rios, dos igarapés, das suas florestas urbanas. E que utilize, inclusive, esses rios, os igarapés, como meio de transporte. Uma cidade com mais sombra, com mais árvores nas calçadas, que permita que você ande, que você ande de bicicleta. Nós precisamos de uma Belém que pare de derrubar árvores e comece a replantá-las”, afirma.

O pesquisador André Farias diz que a construção desta avenida não responde a demanda de mobilidade na cidade. Para ele, construir mais vias expressas só atrai mais carros, mais engarrafamento, mais destruição. “Belém precisa de menos carro e mais área verde, mais transporte público decente, mais ciclovias, mais sombra. Precisamos andar a pé, usar o rio, parar de derrubar árvore pra inventar obra. Enquanto nós tivermos esse modal na Amazônia, que é um modal rodoviário, os problemas de mobilidade urbana não vão se resolver. Nós poderíamos pensar as políticas públicas de modal misto, modal que tivesse rodoviário e hidroviário, pelo menos”, afirma.

Esta reportagem foi produzida através de uma parceria entre os veículos Agência Pública, Amazônia Vox, Carta Amazônia e Lupa na cobertura da COP30. O material pode ser republicado sem edições com o devido crédito.

Pedro Guerreiro/Agência Pará
Igor Mota/Agência Pará

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