Desde a pandemia de Covid-19 minha família não se reúne mais. É claro que encontro aquela prima distante em um almoço de domingo, ou cruzo com um tio que não via há tanto durante uma passadinha para o café da tarde. Mas não nos juntamos mais para esse cruzamento de gerações que te faz ver seres que você pegou no colo ontem mesmo, seres que hoje já têm até bigode e, com uma voz irreconhecivelmente grossa, te dizem: “Eaê?”.
Mas uma morte é sempre um ápice de roteiro no núcleo da novela das 18h que é minha família. Então, chegou a hora do reencontro. E aconteceu quando meu tio ermitão amanheceu duro e foi encontrado pela própria irmã, minha tia, que garantiu um trauma suficientemente extenso para preencher o processo analítico do restante da sua vida. Ela mesma admitia que suas consultas de terapia eram feitas com a vizinha melhor amiga, na fila do postinho do bairro, na demora interminável para garantir a senha da mamografia semestral, que virava anual; já que ali, quando a máquina de espremer os peitos não quebrava, o médico estava de férias ou abandonava o posto mesmo.
Todos os integrantes da família foram convocados e alguns rumaram na frente para resolver os trâmites burocráticos do enterro (pauso aqui, para deixar minha crítica à indústria da morte que surrupia reservas, limites de cartão e cheques especiais sem rubor algum; muito se fala do custo de vida, mas ouvimos poucas reivindicações do altíssimo custo de morte). O velório durou algumas horas, mas entre rezas e choros, fico sabendo que a cova está lotada. Sim, antes de enterrar o recém-partido precisaríamos organizar quem já tinha ido antes dele.
Alguns seletos abandonaram o velório, para resolver a questão da cova abarrotada, entre eles eu, minha tia terapia-na-fila e sua irmã, minha outra tia, partimos para o jazigo da família. Aquela altura, os coveiros já haviam tirado bastante terra do retângulo herdado e dava pra ver restos de caixão. Não demorou para disporem, um a um, saquinhos parecidos com aqueles de hortifruti, transparentes, contendo os ossos de nossos antepassados e ante-recentemente-idos, na grama do cemitério.
Os coveiros estavam protegidos, trajados quase como apicultores para se aproximarem dos anos de decomposição. Mas nada, nem a possibilidade de ali haver uma bactéria cultivada em décadas abaixo da terra, nem sequer alguma prudência racional, desencorajou minha outra tia a esticar a mão sedenta, sem luva ou proteção, e pegar um crânio de um dos sacos, empunhá-lo em sua maior aproximação com Shakespeare e dizer:
— É a cabeça da mãe!
Astuta, minha tia terapia-na-fila logo põe em xeque a identidade da exumada:
— Como você pode ter certeza? São todos iguais.
— Verdade, aqui é a vó Maria. A mãe da mãe tinha uma placa de platina na perna, lembra?, a outra tia resolve o mistério ao mesmo tempo que levanta uma tíbia amarronzada pelo contato de mais de 40 anos direto com a terra, mas com a placa reluzindo os raios de sol daquele dia (automaticamente penso que mãe e filha se fundindo e confundindo no post mortem poderia ter saído das páginas de um livro da Elena Ferrante).
Os coveiros olham feio em represália para a mão entrona que devolve o osso. Logo em seguida, eles começam a transferir os restos mortais que estavam nos sacos furrecos para um modelo parrudo, azul, com etiqueta, lacre e numeração. Bisavó, avó, tio, padrinho, agregada e irmã. Família reunida em peso, cova organizada e missão cumprida. Amém. Deixo os parentes e andando de volta ao velório ouço atrás de mim:
— Até que a vó virou uma caveira bonitinha, né?