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Entrevista

Punir não basta: “temos de definir para que as Forças Armadas servem”, diz especialista

Especialista em Forças Armadas Ana Penido alerta sobre necessidade de “derrubar muros” entre civis e militares

Entrevista
23 de setembro de 2025
09:00
Militares durante desfile de 7 de setembro de 2025
Fernando Frazão/Agência Brasil

Duas semanas após os ataques às sedes dos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, o general Tomás Paiva assumiu o comando do Exército sob a expectativa, pelo governo Lula, de afastar militares da política e controlar os ânimos internos com o que viria adiante, em especial a investigação da trama golpista e do papel de oficiais militares.

O fato ajuda a explicar o silêncio do Exército após a condenação dos generais Augusto Heleno Ribeiro, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Neto, ex-membros do Alto Comando do Exército pela tentativa de golpe. Para a especialista em Forças Armadas Ana Penido, porém, o combate do general Tomás e da cúpula militar contra a politização erra o alvo, sem prevenir futuras aventuras golpistas.

“O controle civil das Forças Armadas acontece ‘derrubando os muros’, fazendo com que eles tenham a mesma diversidade de raça, de classe, regional, étnica e política que a população tem, mas dentro dos quartéis”, acrescentou Penido, professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro “Como se faz um militar? A formação inicial na Academia Militar das Agulhas Negras de 1995 a 2012” (Editora Unesp).

Além da politização dos quartéis, a queda no prestígio das Forças Armadas é outro desafio para o comando militar, que pode ficar ainda mais árduo com o julgamento de oficiais da ativa por ligação com a trama golpista, muitos com passagens pelas Forças Especiais, lar dos “kids pretos”.

Desde a posse de Lula, pesquisas apontam aumento da desconfiança quanto aos militares. Há quem veja nos dados uma confirmação da fala de 2019 do senador e general vice-presidente de Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão (Republicanos-RS): “se o nosso governo falhar demais, (…) essa conta irá para as Forças Armadas”.

Para a professora, o julgamento do golpe deveria servir como uma “oportunidade” para que militares se aproximem da população. Penido analisou ainda a relação das Forças Armadas com o governo e os desafios militares em “um mundo cada vez mais multipolar”. Confira a seguir os principais trechos da conversa:

A condenação de oficiais da cúpula militar, sejam eles da ativa ou da reserva, no caso da trama golpista, é suficiente para evitarmos novas tentativas de golpe com participação de militares?

Temos visto um raciocínio que sugere que punir militares resulta, quase que automaticamente, em acabar com novas tentativas de golpe. Punir é uma coisa, modificar a estrutura das Forças Armadas para que golpes não aconteçam novamente é outra, bem mais complexa.

Por um lado, o sentimento de impunidade é, sim, um fator motivador para novas tentativas. As medidas que estão sendo tomadas, corretamente, pelo Judiciário são direcionadas aos ‘CPFs’ [indivíduos militares], mas elas precisam ser acompanhadas por medidas direcionadas ao CNPJ [Forças Armadas]. Quem deve conduzir essas medidas são tanto o poder Executivo, quanto o Legislativo, com ambos aumentando o controle civil sobre os militares. O controle civil das Forças Armadas só acontece ‘derrubando os muros’, fazendo com que eles tenham a mesma diversidade de raça, de classe, regional, étnica e política que a população tem, mas dentro dos quartéis.

Vários fatores pressionam o Alto Comando do Exército desde a posse do presidente Lula (PT): o golpe frustrado de 8 de janeiro; as investigações que revelaram envolvimento de militares da ativa e da reserva na trama; o julgamento da tentativa de golpe, com a histórica condenação de generais quatro-estrelas; e mais recentemente a tensão entre Brasil e Estados Unidos, com implicações na relação entre os exércitos dos dois países. Como avalia a postura do Alto Comando?

Primeiro, vamos olhar para dentro dos quartéis: apoiar os golpistas e ter votado na candidatura de Bolsonaro não são, necessariamente, a mesma coisa. Toda nossa preocupação com os militares passa pelo resultado das eleições em 2022 porque, do ponto de vista ideológico, o ideal é esperarmos que eles acompanhem o movimento da sociedade. Se a sociedade, de maneira geral, pende para a direita, faz sentido que os militares também estejam junto com essa escolha – como estamos acostumados a ver. O problema é que em 2022 a maioria da sociedade pendeu para uma aliança entre a esquerda e partidos de centro, mas os militares não seguiram esse caminho. Defendo que a cúpula militar deveria se unir aos poderes civis para investir em múltiplas iniciativas que as aproximem da população, permitindo que mais militares frequentem universidades e mais civis frequentem os quartéis, por assim dizer. Isso inclui maior participação social nas políticas de defesa, tornando-as amplas e diversificadas no ambiente doméstico ou internacional, algo que ainda não vimos acontecer.

Além disso, acho que o Brasil deixou uma lacuna gigantesca na América Latina nestes dois anos e meio de governo. Nossa capacidade de coordenação de processos militares no continente não foi explorada. Podíamos ter investido mais no resgate da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-Americano como instâncias de união com os países vizinhos e amigos, fortalecendo a construção da soberania nacional, com boas relações com os nossos vizinhos e laços mais estreitos, construindo programas comuns com México, Argentina, Venezuela… do ponto de vista militar, ainda há espaço para o Brasil ampliar sua interlocução regional sem estar atrelado a interesses militares dos Estados Unidos e da China, algo que seria muito importante no cenário internacional.

O interlocutor das Forças Armadas na estrutura do Executivo é o Ministério da Defesa, que no atual governo voltou a ser comandado por um civil. Qual sua avaliação da gestão do ministro José Múcio até aqui?

Acho que não devemos esperar muito do Múcio. No fim de agosto, aconteceu a Conferência de Defesa Sul-Americana em Buenos Aires, com a presença do chefe do Comando Militar Sul dos Estados Unidos e de ministros de Defesa de todos os países ao sul do Panamá no continente, exceto a Venezuela. Mas o que aconteceu? O ministro não compareceu, enviando o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas [Almirante de Esquadra da Marinha Renato Freire] em seu lugar. Na área militar, todos sabem que o governo dos Estados Unidos usa este evento para alinhar uma doutrina militar para toda a região, mas o responsável imediato das Forças Armadas do Brasil não compareceu.

Acho que temos um problema objetivo porque, se há necessidade de controle civil sobre os militares, temos de definir para que as Forças Armadas servem, com quem elas devem ou não se relacionar… digamos assim: e se o Ministério das Relações Exteriores conduzisse sua política externa à parte do Estado brasileiro?

Na área militar, devemos manter relações com os Estados Unidos, a China e também com nossos vizinhos, mas é necessário termos, de fato, controle civil e um rumo bem definido para encarar este mundo cada vez mais multipolar em que vivemos.

Quais as principais medidas que o governo deveria tomar para melhorar o controle civil sobre militares?

Primeiramente, precisamos levar a sério a ideia de multipolaridade, diminuindo a influência dos Estados Unidos em nossa área militar e nos aproximando de nossos vizinhos. Temos de diversificar nossas relações a nível internacional, como fazemos em nossa parceria com a França no desenvolvimento de submarinos, ou aumentar nossa participação em exercícios militares conjuntos com a China, por exemplo. Quanto à nossa Política de Defesa, precisamos conduzi-la de modo participativo, o que implica em discussões sobre reindustrialização do país, sobre o que de fato ameaça e o que não ameaça o Brasil, sobre um projeto de defesa robusto, cabendo ao Executivo o protagonismo deste debate – porque as Forças Armadas não abrirão novos espaços de participação sozinhas.

No âmbito doméstico, entendo que precisamos de iniciativas que ajudem a integrar civis e militares, e precisamos de um Ministério da Defesa fortalecido e civil de fato, não uma pasta que sirva apenas como uma espécie de ‘representante’ das Forças Armadas junto ao governo, como temos hoje em dia. Acredito ainda na necessidade de interrompermos o ciclo da ‘porta giratória’ na área da defesa, com um vai-e-vem que sempre existiu no ministério, com ex-integrantes ingressando em empresas privadas sem qualquer tipo de controle – o que, para mim, é uma forma de corrupção.

Também defendo a importância de maior cobrança sobre o Legislativo, onde há forte atuação militar e um monte de pautas estratégicas para o país totalmente paradas, sem sinal de avanço. Precisamos de mais espaço para a política de defesa no debate, pois se trata de uma política pública que precisa de acompanhamento e fiscalização, uma política com um orçamento enorme dentro das contas do governo federal.

Por fim, acho que a sociedade precisa se engajar mais na pauta da defesa. Toda vez que alguém do movimento estudantil me convida para participar de eventos e pede sugestões e rumos, eu lembro, por exemplo, do alistamento obrigatório aos 18 anos e pergunto: “gente, se isso aqui não é pauta para vocês, da juventude, não sei mais o que é pauta”. Grandes mudanças ocorrem somente com pressão social e organização, e na área militar isso não é diferente.

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