Buscar
Crônica

Uma senhora com um vaso atravessa a rua

A depender do nosso estado de espírito, o tempo demora a passar — todo mundo precisa esperar em algum momento

Crônica
25 de outubro de 2025
06:00

Enquanto meus olhos ainda me acompanham, leio. A leitura como o prazeroso resgate do maravilhamento e da curiosidade. Por isso, dentro da sacola que carrego comigo, guardo objetos de uso prático e um livro como uma pequena coisa sem utilidade aparente. Nessa sacola, eu poderia carregar frutas, verduras e hortaliças, mas armazeno um poema chamado “Batata quente”, de Ana Martins Marques. Gosto da metáfora e de pensar no amor como um objeto incandescente entre as mãos. Enquanto meus ouvidos ainda não desistiram de mim, escuto música no fone (“Leão”, de Joyce Alane) e também tento compreender a vastidão de coisas que as pessoas têm a dizer. Meus sentidos estão prestes a atravessar a rua junto comigo em um momento tumultuoso da história – como o são todos os momentos quando examinamos lentamente o seu afastar-se.

O trânsito da minha cidade é intransigente. O sinal está laranja e os veículos aceleram ainda mais. Os carros, para lá e para cá, dão voltas e voltas para desbravar uma nova direção, para colonizar uma rua desconhecida sob o Sol. O universo segue em expansão, mas nas ruas temos nossos limites. Na calçada, as pessoas conversam livremente entre si. Perto de mim, alguém ergue a voz e arregala os olhos contra algo que julga insultuoso e pergunta a uma pessoa ao meu lado em um tom que permite a todos ouvir: – Pacificar o quê? – Então olha para os lados e faz gestos com as mãos para constatar que todo mundo está vivendo simplesmente suas vidas. – Eles querem reestabelecer o direito de cometer crimes e não serem alcançados pela justiça, é isso? O sinal fecha para os carros, que podem ser armas mortais. A viatura da polícia tem pressa e passa mesmo assim, zunindo, fazendo uiu-uiu.

Falta pouco para eu alcançar a faixa de pedestres, mas quando chego lá, o sinal fecha para mim. Eu não costumo pensar no tempo em sua forma de segundos até parar diante do semáforo e encarar a luz acesa com sua cor e seu imperativo convite à espera. Todo mundo precisa esperar em algum momento. Dentro de um carro, alguém enfurecido buzina com insistência pela lentidão do trânsito ou por um aborrecimento que não sou capaz de decifrar. A depender do nosso estado de espírito, o tempo demora a passar. Quando é minha vez de esperar, para me distrair, tenho o costume de olhar para o céu. Desde que ouvi pela primeira vez a expressão rios voadores, tento encontrar lá no alto um longo curso d’água que cintila e serpenteia, movido pela força invisível do vento. As nuvens vêm e vão dizendo e desdizendo coisas.

No chão, as faixas brancas e paralelas entre si estão se apagando. É preciso que a prefeitura renove a pintura e as pessoas se lembrem das leis e de atravessar em linha reta. Do outro lado da pista, na extremidade do movimento incessante de pessoas que se juntam e esperam, observo uma senhora baixinha e corpulenta que protege com seus braços e mãos um vaso bojudo de cerâmica.

Desejo conhecer as olarias de Maragogipinho, no interior da Bahia. Nesse instante, porém, o vaso que aquela senhora carrega com tanto cuidado me faz pensar em Kintsugi, uma arte japonesa que consiste em reparar objetos quebrados realçando as marcas do remendo com certo charme ao invés de tentar esconder suas rachaduras. O sinal abre para nós. A senhora avança em minha direção com um olhar distraído, mas segura de sua tarefa. Reparo cada vez mais de perto no vaso que ela ampara. É visível a beleza e a fragilidade dessa arte milenar. Passo por ela como um gesto comum. Secretamente, sigo meu caminho tranquilo e contente, pensando que testemunhei uma senhora carregar com firmeza um vaso bonito e frágil em meio à confusão da vida urbana.

Edição:

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Vale a pena ouvir

EP 191 Soberania em risco: o papel dos EUA na Lava Jato

Uma análise sobre a interferência dos Estados Unidos na Lava Jato e seus desdobramentos

0:00

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Quer escrever uma crônica para esta coluna? Mande um email para cronicadesabado@apublica.org e coloque no assunto Crônica para Avaliação e seu nome completo.

Leia de graça, retribua com uma doação

Na Pública, somos livres para investigar e denunciar o que outros não ousam, porque não somos bancados por anunciantes ou acionistas ricos.

É por isso que seu apoio é essencial. Com ele, podemos continuar enfrentando poderosos e defendendo os direitos humanos. Escolha como contribuir e seja parte dessa mudança.

Junte-se agora a essa luta!

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes