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Entrevista

Por que tanta gente apoia uma chacina como a do Rio de Janeiro?

Daniel Hirata fala ao Pauta Pública sobre a naturalização da barbárie e como o Brasil se acostumou à lógica das chacinas

Entrevista
9 de novembro de 2025
17:00
Acervo pessoal

Logo após a Operação Contenção, que deixou 121 mortos no Rio de Janeiro, pesquisas de opinião mostraram um dado alarmante: ainda que parte da população avalie como uma chacina executada pelo Estado, a maioria da população aprova a ação policial. Segundo a Genial/Quaest, 64% dos fluminenses consideraram a operação positiva; a Atlas/Intel registrou apoio ainda maior, com 87% de aprovação entre moradores de favelas cariocas.

Com objetivo de atacar pontos estratégicos da facção Comando Vermelho em bairros dos complexos do Alemão e da Penha, a operação realizada em 28 de outubro foi a mais letal da história do Brasil. As imagens de tiroteios e corpos enfileirados na Praça São Lucas chocaram parte do país, mas também foram celebradas por muitos como símbolo de eficiência no combate ao crime.

Para analisar esse cenário e as atuais políticas de combate às facções criminosas, o Pauta Pública desta semana recebe Daniel Hirata, sociólogo, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana. Para ele, a percepção de insegurança e o cotidiano de medo ajudam a explicar por que tantas pessoas passaram a ver operações letais como a única resposta possível à violência, mesmo entendendo que não soluciona o real problema.

“Uma das perguntas da Quest era sobre onde acha que estão os chefes, as lideranças dos grupos criminais do Brasil e 80% dizia que não era em favelas. Porque isso é evidente. A pessoa morando ou não morando na favela, sabe que quem tem as posições mais importantes de redes políticas e econômicas tão poderosas está em outros lugares, e que ali você está só atuando na ponta pobre e precária, racializada, dessa história toda.”

Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.

EP 193 Por que tanta gente apoia uma chacina?

Daniel Hirata fala sobre a naturalização da barbárie e como o Brasil se acostumou a viver sob a lógica das chacinas

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No dia seguinte à operação, vimos imagens brutais de corpos expostos em praça pública.  Familiares desesperados, depoimentos comoventes de moradores da Penha e do Alemão, mas essa dor parece não sensibilizar grande parte da sociedade, como mostram os números revelados nas pesquisas. Por que e como a gente chegou nesse ponto?

Em primeiro lugar, temos uma adesão por parte das pessoas mais abastadas. Normalmente brancas, que moram em lugares onde esse tipo de violência não ocorre e o que aparece na televisão é uma espécie de espetáculo para elas. Tanto no momento durante quanto no pós-operação daquele tamanho, com aquele nível de brutalidade. Essas pessoas fazem uma associação entre o que elas têm como percepção para a segurança pública, como, por exemplo, ter o celular roubado, e aquilo que elas estão vendo na televisão. É muito estranho, mas essa questão da percepção de segurança pública, isso, diversas pesquisas já mostraram que está diretamente relacionada à violência objetiva.

Tem lugares mais abastados, mais ricos e mais brancos que têm taxas de roubos, de furtos, de homicídios, que são muito mais baixas do que outros locais. Mas, a percepção de uma violência fora do controle é maior do que em áreas que têm crimes objetivamente observáveis.

Então, tem toda uma relação de exotização e, mais do que exotização, de quebra da alteridade dessas pessoas com relação a outros lugares que elas não conhecem, ignoram. Tem uma série de preconceitos que a gente sabe muito bem que estruturam a sociedade brasileira.

Por outro lado, tem uma coisa que é, do meu ponto de vista, até mais preocupante: a adesão de pessoas que moram em favelas e periferias urbanas. Parece que tem alguma coisa que se relaciona ao cotidiano dessas pessoas que tem a ver, muito concretamente, com o controle do território armado, com a violência dos grupos armados. Muitas vezes eu já conversei com mulheres, mães nesses locais, que vão reiteradamente falar da seguinte maneira: o meu filho não sai na rua. Ela está querendo dizer, por um lado, que ela está protegendo o filho da violência que está do lado de fora da casa. Por outro lado, que ela tem medo do filho também se aproximar muito desse mundo do crime.

Por uma razão ou outra, o que nós estamos falando aqui é que a casa se torna uma prisão, que as pessoas estão com medo, que as pessoas têm raiva, que as pessoas não gostam da maneira pela qual esses grupos atuam sobre a sua vida mais rotineira. Isso sem falar de outras coisas. Como o preço do botijão de gás, que é sobretaxado por esses grupos (facções e milícias), os serviços também que, muitas vezes, são prestados por esses grupos na internet etc. Tem uma série de coisas que eu acho que explica uma reação a esses grupos que é bastante violenta e não há muito outra alternativa que [não seja a que] está posta na mesa nesse momento.

Acaba que essas operações aparecem para essas pessoas como a única alternativa. Alguém está fazendo alguma coisa. E como a gente sabe que nesse estado de desespero fazer alguma coisa parece melhor do que não fazer, eu acho que é por aí que caminha um pouco as respostas dessas pessoas a essas pesquisas de opinião que foram feitas. De um lado, uma classe média assustada e extremamente preconceituosa, e, de outro lado, classes mais baixas, negras, que vivem um cotidiano que é de terror.

Como você está vendo a cobertura da imprensa sobre a chacina no Rio?

Acho que é uma das piores coberturas que eu já vi na pior chacina da história do Brasil. Nós temos, claro, setores, mesmo dentro da grande imprensa, dedicados. Existem pessoas que têm trabalhado de forma a dar visibilidade para o que aconteceu. Mas, na maneira geral, quando a gente olha os editoriais, que é quando os jornais se posicionam, ou então, quando a gente olha, mais ou menos, a média do que vai sendo dito, do tipo de matéria que vai sendo produzida, me parece que a cobertura está sendo muito ruim. Ruim no sentido de não falar sobre a atrocidade que aconteceu.

Depois alguém tem que fazer uma análise com mais objetividade, mas sinto que essas pesquisas que saíram também acabaram induzindo a imprensa a atuar de forma cada vez mais recuada. Por um lado, temos um sistema político que se posiciona a partir das pesquisas, mas também a imprensa, de maneira geral, está atenta ao que está acontecendo e ao que as pessoas estão pensando.

Esse adesionismo à barbárie vai contaminando todo mundo. A imprensa, o sistema político, as pessoas que falam sobre o assunto. Fica todo mundo um pouco refém de dizer bom, veja, as pessoas estão aceitando, estão achando que a operação foi legal, que é isso mesmo que tem que ser feito. Agora, acho que tem também um papel, de todos nós, de defender posições mínimas. Não são posições políticas partidárias. Eu não tenho compromisso político partidário, por exemplo, mas tenho compromisso com o fato de que algumas garantias de direitos são conquistas civilizacionais que não tem como abrir mão disso.

Tem uma série de coisas que a gente esgarçou nos últimos anos no Brasil, por conta desse avanço do autoritarismo. Nós já esgarçamos uma série de pontos que são fundamentais, do meu ponto de vista, e agora isso vai ganhando adesão e base social. Tem um momento que não adianta, que não vai estar tudo bem, que a gente vai se esborrachar e, na hora em que sentir isso, vai ser importante olhar para trás. Não para fazer revanchismo, mas para olhar para quem se manteve firme na defesa dessas garantias e quem estava rifando em prol da conjuntura mais imediata.

O que ainda é capaz de mobilizar as pessoas diante dessa banalização da violência, especialmente quando as vítimas continuam sendo, em sua maioria, pessoas negras e periféricas? Como a gente consegue transformar essa fúria diante dos massacres e dessa espetacularização da morte em pressão política de segurança que seja efetiva, que não mate, que impeça que os mais jovens entrem para o crime?

Uma das perguntas da Quest que eu achei que oferece uma pista interessante, é uma pergunta sobre onde você acha que estão os chefes, as lideranças dos grupos criminais do Brasil e 80% dizia que não era em favelas. Porque isso é evidente. A pessoa morando ou não na favela, todo mundo sabe que quem tem as posições mais importantes de redes políticas e econômicas tão poderosas está em outros lugares, e que ali você está só atuando  na ponta pobre e precária, racializada, dessa história toda. É uma coisa que me chamou atenção no meio dessa maré tão obscura que estamos atravessando agora. Isso é uma questão importante do ponto de vista do enfrentamento dos grupos criminais do Brasil.

Ou seja, como é que a gente atua de forma a desmantelar essas redes criminais? Primeiro, o que é uma rede criminal? Até onde vão as redes criminais? O que estruturam as redes criminais? Quais são as conexões que organizam essas redes criminais? E como é que a gente desmantela essas redes criminais? Fazer isso é o feijão com arroz da atividade policial. Porque, veja bem, todo mundo sabe, não adianta você matar essa ponta pobre e precária porque tem uma reposição muito rápida, Então, o que é que mantém esses grupos estruturados? O que faz essas redes criminosas terem tamanha resiliência ao longo do tempo?

Faz tempo que estamos insistindo, mas tem posições intermediárias, de intermediação com o sistema político, sistema político partidário especificamente, e com os grandes negócios formais e informais que têm que ser atacados. Esses são os locais de sustentação, são as bases políticas e econômicas desses grupos. Em resumo, é possível, sim, a gente atuar de forma efetiva no enfrentamento à criminalidade, e fazer com que a população entenda, concorde e apoie o que está sendo feito. Acho que isso é absolutamente possível. Agora, precisa botar a mão na massa e começar a trabalhar.

Segurança pública, tem muito uma lógica de apagar incêndio e situações conjunturais específicas que todo mundo discute e passa. Já não pensa mais no assunto. Tem uma outra situação específica, outro incêndio, aí se discute e saem essas soluções mágicas. Vamos falar o português claro, assim as coisas não caminham. Então, eu acho que atacar as redes criminais e pensar essas redes criminosas de uma maneira mais próxima de como elas funcionam de fato, seria alguma coisa bastante efetiva e que teria, sim, apoio na opinião pública, em geral. Tentando ser otimista.

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