Quinze municípios de Alagoas contrataram as duas empresas investigadas pela Polícia Federal por participarem de um suposto esquema de desvio de recursos públicos federais na prefeitura de Rio Largo — a Litoral Construções e Serviços e a Reauto Serviços e Comércio de Peças Automotivas. Dados obtidos pela Agência Pública revelam que, entre 2019 e 2022, essas prefeituras pagaram R$11,8 milhões às empresas.
Além disso, desde 2020, todas as 15 prefeituras receberam recursos de emendas do orçamento secreto, as chamadas emendas de relator. Segundo a reportagem apurou, o parlamentar que destinou a maior quantidade de dinheiro para esses municípios foi o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP). Ao todo, ele indicou R$ 58,5 milhões em emendas para 11 das 15 prefeituras.
Na prefeitura de Rio Largo, segundo investigação da PF, o esquema funcionava da seguinte forma: contratadas pelo município, as duas empresas seriam pagas com recursos federais da saúde e educação. O dinheiro era sacado na boca do caixa por representantes da Litoral e entregue dentro de pacotes aos seguranças pessoais do prefeito Gilberto Gonçalves (PP), em um beco, à luz do dia, conforme flagrado pelos agentes.
A polícia identificou 185 saques na boca do caixa das contas das firmas no valor de R$ 49 mil cada um, entre 2019 e 2022. Essa seria uma forma, de acordo com a PF, de “driblar” a regra do Banco Central que prevê que todas as retiradas acima de R$ 50 mil são comunicadas automaticamente ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Alguns desses saques teriam sido realizados imediatamente após repasses de recursos públicos efetuados pelo município de Rio Largo.
As informações do inquérito, às quais a Pública teve acesso, foram publicadas em 28 de julho na reportagem “Aliado de Lira favorecido por orçamento secreto teria desviado verba da saúde e educação”. Só neste ano, Lira indicou R$ 8,9 milhões de emendas do orçamento secreto para o Fundo Municipal de Saúde de Rio Largo. Ao todo, ele admitiu ter destinado R$ 16,7 milhões para o município, como mostrou a Revista Piauí: foram R$ 3,7 milhões em 2020 e R$ 4 milhões em 2021.
“O deputado Arthur Lira, assim como todos os deputados e senadores, liberam emendas para todas as prefeituras que justificam as necessidades. Isso traz benefícios para o povo, que é o mais importante. Cabe aos órgãos de controle a fiscalização eficiente para o bom uso dos recursos”, informou a assessoria de imprensa do presidente da Câmara. A prefeitura de Rio Largo não respondeu às perguntas encaminhadas pela reportagem.
O prefeito Gilberto Gonçalves, também conhecido como GG, é um antigo aliado de Arthur Lira. Os dois foram alvos da Operação Taturana, em 2007, acusados de desviar verbas da Assembleia Legislativa de Alagoas. Eles foram indiciados e Lira condenado por improbidade administrativa – o parlamentar ainda recorre da sentença no Superior Tribunal de Justiça (STJ). As redes sociais de GG estão abarrotadas de postagens em agradecimento ao “apoio” do deputado federal e outdoors foram espalhados nas ruas da cidade para divulgar a parceria com o presidente da Câmara.
No último dia 11, o prefeito de Rio Largo foi novamente alvo da PF, na operação batizada de “Beco da Pecúnia”, em referência ao local onde ocorria o pagamento da propina, conforme flagrante dos investigadores. Assustado com a chegada dos agentes, Gilberto Gonçalves jogou seu celular por cima do muro. O aparelho foi encontrado pelos policiais no terreno vizinho. Ele e outros quatro secretários municipais foram afastados por 60 dias de seus cargos por decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Ao todo, a PF cumpriu neste dia 36 mandados de busca e apreensão em seis municípios alagoanos e em um endereço de São Paulo.
Lavanderia com dinheiro do SUS e da Educação
Além dos possíveis crimes de desvio de recursos públicos federais, a operação investiga lavagem de dinheiro e organização criminosa. A suspeita da PF é de que ao menos R$ 12 milhões, dos R$ 20 milhões pagos pela prefeitura de Rio Largo às empresas Litoral e Reauto, tenham sido desviados. A investigação apontou que os recursos vieram do Fundo Nacional de Saúde/SUS, do Fundo Municipal de Saúde e também do Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb).
A Polícia Federal identificou que as duas empresas, pertencentes à mesma família, possuem estrutura incompatível com os valores que transitaram em suas contas. De acordo com os investigadores, elas emitiram notas fiscais “que não correspondem ao fornecimento de qualquer produto, servindo apenas e tão-somente para lastrear os desvios de recursos públicos”.
A Reauto, segundo a PF, existe, apesar de não ter capacidade operacional para prestar o volume de serviços contratados. Já a Litoral, nunca possuiu funcionários formalmente registrados no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) e tem como sede “uma pequena sala no 2º andar de um hotel, em nada compatível com a comercialização de material de construção”.
E não foi apenas a prefeitura de Rio Largo que contratou os serviços da Litoral e da Reauto com verbas federais. A PF destaca em seu relatório que as duas empresas “receberam valores de outros municípios alagoanos”. Foram R$ 5,9 milhões pagos à Litoral e R$ 5,8 milhões para a Reauto, conforme informações obtidas pela Pública. Parte dessa verba também saiu da saúde, da educação e da assistência social.
Em 2020, por exemplo, a prefeitura de Palmeira dos Índios, administrada pelo prefeito Júlio Cézar (MDB), fechou um contrato com a Reauto no valor de R$ 1 milhão para “a manutenção preventiva e corretiva com fornecimento de peças e acessórios originais e sem uso, para a frota oficial de veículos automotores”. Em 2021, foi assinado um termo aditivo ao contrato.
De acordo com informações publicadas no Diário Oficial do Município, a fonte dos recursos para o pagamento dos serviços foram o Fundo Municipal de Educação, o Fundeb e verbas do Transporte Escolar.
Só em 2021, R$ 4,9 milhões de emendas de relator do Ministério da Educação foram empenhados para a prefeitura – do total de R$ 15,7 milhões. Não foi possível identificar a autoria destas emendas devido à falta de transparência do orçamento secreto.
Os parlamentares que admitiram a indicação do dinheiro para Palmeira dos Índios no ano passado foram: Tereza Nelma (PSDB/AL), que destinou R$ 500 mil do Ministério de Desenvolvimento Regional para a construção de reservatório de água em uma reserva indígena; e Arthur Lira. O presidente da Câmara garantiu R$ 552,5 mil do Fundo Nacional de Saúde para a APAE da cidade e R$ 4 milhões para o Hospital Regional Santa Rita.
Ainda em 2020, a Reauto fechou negócio com a Secretaria Municipal de Gestão Pública e Patrimônio de Palmeira dos Índios no valor de R$ 200 mil.
O procurador da empresa que assina os documentos de 2020 e 2021 é Adson Lima da Silva. Ao lado de Gisele Verissimo Bezerra, ele faz parte do quadro societário da Litoral. Segundo as investigações da PF, os dois moram em um imóvel simples em São Paulo e há indícios de que eles sejam “laranjas” do esquema de corrupção em Rio Largo.
Adson é filho do dono da Reauto, Ailton José da Silva que, por sua vez, representa a empresa no mais recente contrato firmado com Palmeira dos Índios, em 10 de maio de 2022. O gestor da cidade, Júlio Cézar, está em segundo mandato e participa da assinatura de todos os contratos com a Reauto identificados pela reportagem. Procurada, a prefeitura não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.
Empresa sem funcionários registrados ganhou contratos milionários
Também neste ano, em 9 de maio, a Litoral Construções – que não tem nenhum funcionário registrado e no qual a sócia foi beneficiária de auxílio emergencial pago pelo governo federal durante a Pandemia de Covid, em 2020 e 2021 – venceu licitação na prefeitura de Santana do Mundaú no valor de R$ 5,7 milhões, para o fornecimento de material elétrico.
A empresa já havia sido contratada em setembro de 2019, quando ainda se chamava GV Bezerra Serviços e Comércio, para a aquisição de “materiais de construção elétrico destinados às Secretarias Municipais de Santana do Mundaú”. O valor do negócio: R$ 405 mil. Os dois contratos foram assinados na gestão do prefeito Arthur de Freitas (MDB), reeleito em 2020.
Entramos em contato com a assessoria dele, que não retornou até o fechamento desta edição.
O município foi o destino, no ano passado, de R$ 2,4 milhões em emendas do orçamento secreto indicados pelo presidente da Câmara, do Fundo Nacional de Saúde. Em 2022, foram R$ 1,5 milhão pelo senador Fernando Collor (PTB/AL).
“Com uma boa relação e diálogo com os nossos representantes da bancada alagoana em Brasília, asseguramos aporte para darmos continuidade aos investimentos já em andamento, como também, para outros projetos que ainda estão por vir”, disse Arthur Freitas após viagem a Brasília, em 18 de fevereiro deste ano. Na ocasião, ele se reuniu com Lira: “Foi uma agenda muito produtiva, e para fechar com chave de ouro, nos reunimos com o presidente Arthur Lira, onde garantimos recursos para duas importantes áreas. Quem sai ganhando com isso é o nosso município”, acrescentou.
A Pública revelou em abril que Santana do Mundaú está na lista de municípios que contrataram a Megalic, empresa de um aliado político de Lira, com recursos do orçamento secreto do MEC para o fornecimento de Kits de Robótica.
Nessa lista também estava a prefeitura de Branquinha, que em agosto do ano passado, homologou a Litoral como vencedora da licitação para o fornecimento de material de construção para as secretarias municipais, conforme publicação no Diário Oficial.
No mês seguinte, a Litoral venceu licitação feita pela prefeitura de Feliz Deserto, no valor de R$ 49,9 mil. O município, administrado pela prefeita Rosiana Beltrão (PP), também fez negócio com a Reauto, de R$ 9,8 mil, para “manutenção preventiva, corretiva e assistência técnica para os veículos e máquinas, com reposição/fornecimento de peças/acessórios, pertencentes à frota da Prefeitura Municipal”.
De acordo com a assessoria de imprensa da prefeitura de Feliz Deserto, apesar das licitações, o município não usou os serviços das duas empresas. “Feliz Deserto não está nessa lista (de investigados da Polícia Federal)”, acrescentou. A prefeitura de Branquinha não retornou aos contatos da reportagem.
Correligionária de Arthur Lira, Rosiana Beltrão garantiu para seu município junto ao presidente da Câmara em 2021, duas emendas do Fundo Nacional de Saúde no valor de R$ 350 mil e R$ 26,6 mil e outras duas da Codevasf de R$ 1,5 milhão e R$ 1 milhão.
Um dos responsáveis pelas indicações de emendas do orçamento secreto às prefeituras de Alagoas, Arthur Lira tem cobrado a fatura dos gestores beneficiados. “Nós temos aqui a possibilidade de ser o único estado do Nordeste pintado de azul”, disse a uma plateia de aliados em Maceió no dia 8 de agosto. Azul seria uma referência ao apoio à candidatura de Jair Bolsonaro, contra o vermelho de Lula. “Depende da coragem de prefeitos que tiveram durante este mandato maior recursos (sic) divididos entre o governo federal, governos estaduais e governos municipais. Eu desafio aqui todos os deputados e senadores para dizer qual foi o governo que transferiu mais recursos para os prefeitos em toda a época da democracia no Brasil. Foi este”, acrescentou.
Orçamento secreto facilita fraudes, segundo especialistas
A professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas e Procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane Pinto, destaca que o orçamento secreto aumenta o risco de apropriação do dinheiro público e lavagem de dinheiro. Ela avalia que o “orçamento secreto é uma execução privada do dinheiro público”.
“O parlamentar, além de não aparecer como autor da emenda, escolhe quem vai receber o dinheiro. Essa entidade, se apresenta nota fiscal fria ou não, ninguém consegue rastrear. Você não sabe, por exemplo, se essa entidade que vai receber o repasse tem no seu quadro societário algum parente do parlamentar, filiação político-partidária, esses vínculos de proximidade”, argumenta. Ela destacou ainda a falta de transparência no percurso do dinheiro, “que não está nos bancos de dados públicos, não está no Siafi, não está em nenhum sistema informatizado que permita o acompanhamento da execução orçamentária”.
Para o professor de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da USP, José Maurício Conti, a falta de transparência de quem indica a emenda, pode gerar o incentivo à fraude. “Fica mais difícil de você ligar a fraude com o responsável pela autoria da emenda. Então, acaba gerando alguma facilidade a mais – não digo para haver a fraude – mas para que o parlamentar se sinta mais à vontade, caso ele resolva e queira fazer uma fraude, porque fica mais difícil descobrir”, observa.