Desde a última segunda-feira, 9 de janeiro, grupos bolsonaristas têm circulado a imagem do empreendedor e ativista de direitos humanos, Raull Santiago, 33 anos, com a afirmação falsa que ele seria um “infiltrado da esquerda”. Nas postagens, que foram checadas como falsas pela agência de checagem Lupa, ele é acusado de estar se fingindo de “patriota e segurança do Alvorada” para invadir e depredar os prédios dos três poderes em Brasília, durante os ataques de domingo.
Segundo Santiago, ele passou o dia no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a mais de mil quilômetros da capital federal. “Neste dia, a gente estava recebendo a visita de um parceiro nosso, de um projeto de São Paulo. Eles passaram uma manhã com a gente, deu um rolê pelo CPX em várias áreas, mostrando para eles um pouco da favela e finalizamos almoçando lá no CPX da Penha por volta das 16h e depois disso, a gente foi pra um aniversário de um amigo nosso em outra favela. A gente ficou lá por volta de até umas 22h da noite — de onde a gente acompanhou pela televisão o que estava acontecendo em Brasília”, relata.
Os prints com as acusações falsas rapidamente circularam em diversos grupos e perfis de redes sociais. Um perfil que colaborou para a disseminação da notícia falsa foi o cantor gospel Nani Azevedo. Ele tem 380 mil seguidores no Twitter e 822 mil no Instagram. Na manhã desta terça-feira (10), Azevedo publicou um vídeo no Twitter que mostra Raull Santiago com três amigos e a frase “a verdade vindo a tona”. Em seguida, o vídeo mostra o ativista sozinho de terno. Depois, em outra foto, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As cenas seguintes mostram outras pessoas acusadas de serem infiltradas. A Agência Pública tentou contato com Azevedo por telefone e redes sociais e até o fechamento da matéria não tivemos retorno.
O ativista conta que a foto em que aparece de terno, na qual é acusado de se disfarçar de segurança do Alvorada, foi tirada no dia 1º de janeiro, por volta das 6h, no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. “Eu estava indo para Brasília, pra posse do Lula, eu fui convidado pros três atos: posse no Palácio, pro jantar no Itamaraty e para outras agendas. Permaneci até o dia 2 à tarde”.
Segundo Santiago, ele está reunindo todos prints das postagens para fazer um dossiê e registrar um Boletim de Ocorrência. “Existe um risco à nossa imagem ou risco físico diante dessas fake news, e a gente vai entrar com processos individuais e coletivos com cada uma dessas pessoas e páginas que identificarmos”, diz.
Não é a primeira vez que lideranças jovens do Complexo do Alemão são associadas a notícias falsas. Em outubro de 2022, durante a campanha eleitoral, o então candidato Lula esteve na comunidade e recebeu de presente um boné com a sigla CPX (que significa Complexo) do líder comunitário Renê Silva — fundador do jornal a Voz das Comunidades. Na ocasião, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) compartilharam a informação falsa de que a abreviação seria usada apenas por membros de facções criminosas. O próprio ex-presidente associou falsamente o Complexo a facções criminosas durante entrevista após o debate do 2º turno na rede Globo.
“As pessoas já estão acostumadas com a nossa imagem sendo vítimas de fake news, então a gente consegue desfazer e equilibrar com uma velocidade até interessante. Porém, é sempre cansativo. Os nossos familiares, nossas esposas, nossos filhos, amizades, as pessoas sentem isso muito e ficam preocupadas com a gente”, desabafa Santiago.
Evangélico, motorista de aplicativo e mototaxista são alvo de fake bolsonarista
Três homens aparecem na foto usada por bolsonaristas para acusar falsamente Raull Santiago de participar das invasões em Brasília: são eles o produtor cultural Tiago da Purificação, o mototaxista e o empreendedor social Rildo Rielle e o diácono e líder de jovens da Assembleia de Deus do Bonsucesso de Nova Canaã, Anthony Benné. Segundo Benné, a foto foi tirada na laje da sua casa no sábado, dia 7 de janeiro, após os amigos passarem a tarde fazendo planos para este ano.
Benné ficou sabendo que estava sendo acusado de ter participado do ato em Brasília no domingo à noite, logo após sair de um culto. “Eu passei o dia com minha família e, como é uma rotina minha, à noite fui para um culto na minha igreja. Quando eu saí, um monte de gente começou a mandar mensagem perguntando se eu era na foto”, conta.
O jovem diz que a disseminação da notícia falsa “teve um impacto ruim na sua imagem” porque a fake circulou em grupos evangélicos. Ele critica que Nani Azevedo tenha compartilhado o post no Twitter. “Ele é um cara muito admirado pelo público evangélico, como ele associa a gente a uma fake news? A pessoa repassou uma história sem saber quem são as pessoas que estavam na foto – isso é muito feio -, ainda mais eu sendo da própria denominação dele, cristã”, relata.
Para Raull Santiago, a exposição dos amigos é mais preocupante porque são pessoas que trabalham diretamente com o público. “Eu sou uma figura pública, eu consigo ativar uma rede rápido — o que não é a realidade dos meninos. Ali tem um mano que trabalha como Uber, outro mototaxista, um que faz trabalhos sociais com a igreja e estão o tempo inteiro na rua. Eles são pessoas públicas da favela. Está todo mundo numa situação de choque, pelo nível do absurdo, da gravidade, de nos apontarem como lideranças, puxadores de quebra-quebra e pessoas que estavam infiltradas no ato. A gente podia esperar qualquer tipo de fake: ‘ah, são pessoas envolvidas com o crime’, que é o que o racismo e o preconceito sempre trazem pra nossa realidade. Agora, nos tirar no complexo do Alemão e te colocar em Brasília, acho que foi algo que ninguém de nós esperava que fosse acontecer. É bem chocante”, conta.
Postagens sobre “infiltrados” cresceram após imagens da invasão circularem nas redes
A Pública analisou mensagens publicadas nas redes sobre a presença de infiltrados nos ataques de domingo. A análise considerou as mensagens enviadas a partir do dia 8 em 125 grupos bolsonaristas no Telegram e Tweets publicados entre os dias 8 e 10 de janeiro com os termos “infiltrado pt” e “infiltrado esquerda”, usados para se referirem aos atos de vandalismo no Congresso.
No dia 8, nos grupos monitorados, variações do termo “infiltrado” apareceram em 183 mensagens. O maior número de ocorrências se deu às 17h, cerca de duas horas após a invasão do Palácio do Planalto. No dia seguinte, a menção aos infiltrados esteve presente em 255 dos textos enviados.
A pesquisa no Twitter retornou 3.439 tweets. Entre as pessoas chamadas de infiltrados, estão nomes como “Hugo do MST” e Marcelo, “sobrinho do Zeca do PT” – este último, mencionado em um dos tweets com maior engajamento na busca, com aproximadamente 5 mil interações A agência de checagem Aos Fatos já desmentiu que ele seria um infiltrado nos ataques.
O vídeo que acusa falsamente Raull Santiago como um infiltrado nos atos de vandalismo do último domingo também foi compartilhado no Gettr, rede social utilizada pela extrema direita. Um dos perfis postou o vídeo com a mensagem “Foi tudo arquitetado os infiltrado pela esquerda #PTPCC #CPX JÁ TAVA TODOS LÁ DENTRO ! FOTO NO PRIMEIRO COMENTÁRIO ! Olha la!”.
A foto do primeiro comentário é uma montagem feita com uma publicação do Instagram de Raull Santiago do dia 1° de janeiro. Na imagem aparecem ele, Renê Silva, Preto Zezé – presidente da Central Única das Favelas (CUFA) – e o ministro Alexandre de Moraes. A foto já tinha sido alvo de bolsonaristas, que alegavam que os três seriam “chefões” do PCC e amigos de Moraes, o que já foi desmentido.
Nos comentários, usuários repetem a acusação falsa que: “esse aí mais abaixo de óculos estava na manifestação quebrando tudo.”
O CEO da Gettr é Jason Miller, ex-assessor de Donald Trump. Nos atos do dia 7 de setembro em 2022, Miller veio para o Brasil e participou dos eventos em Copacabana, no Rio de Janeiro. Na ocasião, a empresa mudou a cor do logo de vermelho para verde e fez uma cobertura dos eventos ao vivo durante o dia.