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Na guerra, a principal vítima é a verdade

Em tempos meméticos, milhares de pessoas participam na batalha de narrativas online

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22 de outubro de 2023
06:00
Este artigo tem mais de 1 ano

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Em qualquer guerra, as operações de inteligência incluem moldar narrativas, fazer uso de imagens e até criar desinformação para confundir o inimigo ou angariar apoio para a sua causa. Agora, em tempos meméticos, a coisa é sempre multiplicada, porque são milhares as pessoas que podem participar dessa batalha online. Ainda mais quando se trata de um tema que já gera polarização, como é o conflito de Israel com os palestinos. 

São inúmeras as histórias de fake news espalhadas nos últimos oito dias. A mais famosa, claro, é a dos bebês degolados pelo Hamas, mentira na qual caiu até mesmo o presidente americano, Joe Biden, que depois teve que se retratar, afinal não vira as tais “fotos de terroristas degolando crianças” como ele dissera. 

Mas essa foi apenas uma delas.  

No dia 9 de outubro, a história de que aviões de guerra israelenses haviam bombardeado uma igreja histórica em Gaza viralizou, junto com fotos que poderiam convencer qualquer pessoa. A própria igreja teve que postar no Facebook desmentindo o bombardeio. Muitas fotos de outras guerras, como na Síria e no Afeganistão, e até terremotos na Turquia estão sendo apresentadas como evidências de ações brutais de um dos lados. Um vídeo que teve 2,5 milhões de compartilhamentos nos EUA mostrava um carro parando o trânsito em Nova York para exibir uma bandeira palestina, segundo o post, véspera dos ataques do Hamas. Mas a imagem real era, na verdade, de um protesto a favor da independência de Porto Rico – essa era a bandeira exibida.

Em entrevista ao Instituto Reuters, o especialista em fake news da BBC, Shayan Sardarizadeh, disse que os casos mais comuns são vídeos antigos de cenas de guerra, mas que também houve algumas imagens geradas por inteligência artificial. “Mas elas não eram muito boas”, disse.  

O Twitter tem sido um caso especial porque, além de Elon Musk ter demitido membros das equipes de ética, integridade e moderação de conteúdo quando virou o todo-poderoso, o novo modelo de negócios idealizado por ele favorece ainda mais descaradamente a publicação de vídeos virais. Qualquer um que tem o selinho azul (e que paga por ele R$ 60 por mês) tem suas postagens mostradas para mais pessoas através da aba “Para Você”, que é a aba-padrão para usuários do Twitter. Além disso, eles podem monetizar suas postagens. 

Assim, republicar um vídeo horroroso de cinco anos atrás dizendo que é da guerra atual pode trazer dinheiro rápido e fácil. “Nos primeiros dias do conflito, o volume de desinformação no X [antigo Twitter] foi maior do que eu jamais tinha visto”, afirmou Sardarizadeh.

Musk inventou o fast-food da desinformação, no qual não é preciso nem fazer um meme. Só republicar um videozinho velho e esperar o dinheiro cair na conta. 

Isso se espalha como fogo em sociedades que já estão polarizadas e cujos extremistas acreditam que podem se valer do conflito no Oriente Médio para gerar mais engajamento, mais ódio, mais cliques e mais dinheiro. E chega também a outros locais fora das redes. 

Além de Israel, o segundo lugar onde esse círculo vicioso viceja são os Estados Unidos. Por lá, um grupo de estudantes de Harvard que assinou uma carta culpando Israel pelo conflito e, consequentemente, pelo ataque do Hamas está sendo perseguido por grupos de extrema direita, que expuseram seus nomes e rostos em uma van que passou a rodar pelo campus. A exposição de dados pessoais chama-se doxxing e pode levar a violências reais, ainda mais se são associadas a um linchamento virtual – que é o que está acontecendo. Um CEO de uma empresa chegou a exigir pelo Twitter que a presidente de Harvard, Claudine Gay, publicasse o nome dos estudantes “para que nós saibamos quem não devemos contratar”.

Aqui no Brasil, a defesa de Israel alvoroça bolsonaristas e os une num momento em que estão por baixo. 

O episódio de um professor da PUC que deixou uma palestra após um bate-boca com estudantes virou cabo de guerra nas redes e nos sites hiperpartidários. Em resposta, o Instituto Brasil Pela Liberdade, um grupo olavista sediado no Rio de Janeiro, está pedindo que seus seguidores “denunciem” quem “apoia o grupo terrorista Hamas no Brasil dentro e fora das universidades brasileiras” e promete “enviar um relatório para as autoridades”.  

Outros bolsonaristas entraram na onda de vilipendiar o debate acadêmico. Um vídeo filmado na Universidade Federal do Amazonas em agosto deste ano – dois meses antes dos ataques do Hamas – que mostra estudantes pró-Palestina tentando impedir uma palestra de um ativista pró-Israel, o presidente-executivo do grupo StandWithUsBrasil, André Lajst, voltou a ser compartilhado como se fosse novo. O empresário Otávio Fakhoury, que é investigado no inquérito das fake news e foi depoente da CPI da Covid, usou a briga para atiçar seus seguidores. “O brasileiro passou quatro anos escutando as palavras genocídio, fascismo, nazismo, terrorismo e extremismo de pessoas que hoje, diante de exemplos reais, defendem o genocídio, fascismo, terrorismo e extremismo”, escreveu o influenciador bolsonarista, que paga o selinho do Twitter. 

O show de horror de fake news busca simplificar um conflito que é complexo, desumanizar o outro lado e, mais importante, amalgamar populações inteiras. Como se todos os israelenses apoiassem o impopular primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e como se todos os palestinos apoiassem o ato terrorista do Hamas. O resultado – com amplo lucro para gente como Elon Musk – é dificultar ainda mais uma solução que não passe pela violência extrema. 

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