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É fato. Toda tragédia ou desastre, como a atual calamidade no Rio Grande do Sul, que chega a mobilizar a sociedade e unir as atenções, trará sempre consigo uma realidade alternativa, paralela, criada por redes de desinformação que acharão sempre uma maneira de se beneficiar do caos. Como bem sabe o leitor, vivemos em um ambiente informativo altamente concentrado, privatizado e sem regras, um faroeste digital, em que as mentiras se espalham sete vezes mais que as verdades porque plataformas e mentirosos lucram juntos. Então, enquanto não se regular o ambiente em que viajam as notícias, assim será.
Haverá sempre alguém que ganha ao espalhar mentiras, por exemplo, corroendo a confiança em governos eleitos democraticamente, sejam locais, estaduais ou federal. Haverá quem lucra com o pânico, conseguindo alavancar doações para entidades de reputação duvidosa. Haverá quem lucra com golpes contra aqueles que estão desesperados. E haverá, fruto muito do nosso tempo, quem consegue encaixar todo e qualquer desastre em narrativas de mais longo prazo, como é o caso do bolsonarismo, que usa a atual crise não só para criticar o governo Lula, mas para criar desconfiança em relação a instituições governamentais essenciais, como a própria Anvisa, acusada de impedir a chegada de medicamentos ao Rio Grande do Sul, que teve que desmentir em nota oficial. Haverá ainda aqueles mais radicais e hiperlibertários, que a cada desastre climático insistirão que qualquer governo é ineficaz e, portanto, deveríamos eliminar qualquer governo.
Achei importante escrever esta coluna porque me parece que, a cada nova crise, pessoas, governos e organizações se assustam com o volume de desinformação. Esqueçam esse espanto; prever e mitigar a desinformação é agora parte de gerir a coisa pública.
Então, pensei que poderia contribuir um pouco revisando a literatura acadêmica sobre como governos responderam à desinformação durante a pandemia, já que tais pesquisas começam a pipocar com o distanciamento no tempo.
Um estudo publicado na revista Health Affairs de dezembro do ano passado fez aquela coisa que na academia se chama “revisão da literatura”, ou seja, analisou mais de 50 papers publicados em várias partes do mundo que avaliavam a efetividade de 119 medidas contra a desinformação sobre a covid. Há ali alguns achados. Por exemplo, os autores constataram que desmentidos são eficazes na maioria das vezes, mas são ainda mais efetivos quando se utilizam conjuntamente com outras ações – por exemplo, quando o desmentido traz dicas de como se pode verificar conteúdo na internet.
De um total de 19 intervenções que usaram desmentidos ou “debunking”, 16 foram efetivas em melhorar o julgamento dos participantes sobre a precisão das informações dali para a frente. Outra medida eficiente é a chamada “inoculação passiva”, um termo que, derivado da área de saúde pública, visa “incular” o público ainda antes de ele ser convencido de narrativas desinformativas, também conhecido como “pre-bunking”.
Trata-se de usar, por exemplo, campanhas educativas que alertem as pessoas sobre possíveis fake news antes que elas tenham contato com elas, fornecendo argumentos que explicam seus furos. Os autores ressalvam, entretanto, que teorias da conspiração são mais difíceis de combater porque estão “mais orientadas em crenças pessoais” e “conectam narrativas mais amplas e complexas”.
Para as autoridades que terão que lidar com campanhas desinformativas a cada nova emergência, os autores alertam que é preciso fazer uma priorização sobre o tipo de fake news que se deve atacar primeiro. “Nem toda desinformação é igual. Pode ser útil priorizar esforços que abordem a desinformação que resulta na adoção de comportamentos negativos, em vez de desinformação que apenas influencia crenças pessoais”, escrevem.
Outro estudo, publicado em 2021 no Journal of Health Policy, traz uma série de ações governamentais que foram eficientes em mitigar os efeitos da desinformação sobre a epidemia. O destaque foi o governo de Taiwan, que realizava coletivas de imprensa diárias, distribuía boletins informativos, trabalhava com a imprensa para fazer “pre-bunking” e criou um “Centro de Verificação de Fatos”, serviço público que checava informações enviadas em até 60 minutos.
Na Etiópia, todas as ligações telefônicas eram precedidas de uma mensagem educacional sobre como se prevenir contra a covid-19. Na África do Sul e na Nigéria, governos trabalharam junto com o WhatsApp para enviar mensagens corretas aos seus usuários.
“Esses esforços governamentais estavam alinhados com o direito de receber informações por meio de várias fontes de mídia e o direito de acessar informações detidas pelas autoridades públicas”, escreveram os pesquisadores, ambos relacionados ao artigo 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos.
O paper aponta que, durante a pandemia, o Reino Unido promoveu uma campanha de alfabetização midiática que ajudava as pessoas a ler o que recebiam na internet de maneira mais crítica. Ela incluía uma lista de perguntas que as pessoas deveriam considerar antes de compartilhar uma informação: a fonte é confiável? Você leu o texto, além da manchete? Você analisou ou verificou os fatos? A imagem foi modificada no Photoshop? Há erros de gramática ou ortografia?.
O Reino Unido estabeleceu ainda uma estrutura governamental, uma “célula de combate à desinformação”, composta por especialistas de diversos setores do governo, da academia e do setor de tecnologia. Havia nele uma “unidade de resposta rápida”, projetada para “conter a disseminação de falsidades e rumores que poderiam custar vidas”. Tais esforços multissetoriais já existem, sob a liderança do TSE, em relação às eleições, e podem ser copiados para as emergências climáticas.
O governo do Rio Grande do Sul criou uma página com desmentidos sobre a situação do Estado, mas ele está perdido do meio de diversas outras informações no site sosenchentes.rs.gov.br. Tanto o governo estadual quanto o federal poderiam estar liderando uma iniciativa mais robusta, envolvendo infleunciadores, por exemplo, para combater as repetidas Fake News.
Outro estudo, da Unesco, destaca outra iniciativa simples, que poderia ser facilmente adaptada para a crise atual no Rio Grande do Sul. Durante a pandemia, o governo da África do Sul fez uma norma obrigando todos os sites da internet operando dentro do domínio sul-africano a ter, na sua homepage, um link para o site oficial que trazia informação sobre o coronavírus, publicado pelo governo federal.
Temo que, por aqui, nossas autoridades estejam se acostumando a tomar medidas repressivas apenas, sem investir nas demais ações necessárias para frear a desinformação que prejudica resposta rápida a desastres climáticos.
O Ministério da Justiça já pediu que a PF investigue os perfis que estão, de maneira organizada e reiterada, espalhando desinformação sobre as enchentes. Como mostramos na Pública, os alvos são velhos conhecidos de quem estuda a desinformação no Brasil, incluindo o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Leandro Ruschel, Pavão Misterioso, senador Cleitinho (Republicanos-MG) e Pablo Marçal.
Bem, um “inquérito das fake News do RS” pode ser um instrumento necessário, mas não vai bastar, nem agora nem daqui para a frente. Parece que temos, sempre, no Brasil, a tendência a achar que tratar tudo como um caso de política vai resolver.
Não vai. Será preciso que governos de todos os níveis aprendam a lidar com a desinformação e criar planos de contingência – afinal, a mentira digital veio pra ficar.
Concluo esta coluna com um aviso aos leitores: entraremos em pausa nas próximas duas semanas, mas retorno no dia 3 de junho, prometo, com boas novidades.