Por Sasha Chavkin
Soldados apontaram suas armas para Odoge Otiri e levaram o estudante, de 22 anos, para a floresta que cerca a sua comunidade, no oeste da Etiópia. Então começaram a agredi-lo com seus cassetetes e o deixaram sangrando e imobilizado. “Fiquei inconsciente”, lembra. “Só me deixaram lá porque acharam que eu fosse morrer.”
Naquela noite, os soldados prenderam sua esposa, Aduma Omot. “Os soldados me levaram para o acampamento deles”, conta Omot. “Aí me maltrataram, me estupraram.” Segundo ela, eles a mantiveram presa por dois dias antes de deixá-la ir.
Os soldados atacaram o casal, afirma Otiri, porque ele se opôs à proposta das autoridades etíopes de fazer com que ele e seus vizinhos saíssem forçosamente de suas casas, como parte do esforço de reassentamento do governo etíope, a chamada política de “villagization” (formação de vilas) – um enorme projeto social que levou quase 2 milhões de pessoas pobres a se mudarem para áreas recentemente construídas e escolhidas pelo governo para reassentá-las.
Otiri e Omot estão entre os milhares de anuaks, uma comunidade nativa de maioria cristã da província rural de Gambella, no interior da Etiópia, que fugiram da campanha de reassentamento em massa do país.
O governo etíope financiou as remoções com grandes quantias da mais influente instituição financeira voltada para o desenvolvimento, o Banco Mundial, segundo disseram ao International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) dois ex-funcionários do governo etíope que ajudaram a realizar o programa de reassentamentos. O dinheiro, contam os ex-funcionários, foi desviado de empréstimos que somaram US$ 2 bilhões e haviam sido destinados pelo Banco Mundial para um programa governamental para saúde e educação.
O Banco Mundial contesta veementemente que o seu dinheiro tenha financiado as remoções em massa no oeste da Etiópia. Mesmo depois de ter sido publicamente acusado por vários refugiados anuaks e grupos de direitos humanos, o banco continuou a enviar centenas de milhões de dólares para o mesmo programa de saúde e educação. “Estamos confiantes de que o dinheiro foi usado para os objetivos propostos [pelo programa]”, disse, em março, Greg Toulmin, coordenador de programas do Banco Mundial na Etiópia. “Permanecemos confiantes de que não há nenhuma ligação [entre o dinheiro do Banco e as remoções forçadas].”
Novas evidências apuradas pelo ICIJ enfraquecem as contínuas negativas do banco. Um dos dois ex-funcionários entrevistados pelo ICIJ estava em uma posição privilegiada para saber exatamente como os recursos do Banco Mundial estavam sendo usados: Omot Obang Olom, o ex-governador de Gambella, supervisionou o programa de reassentamento no seu estado.
Olom contou ao ICIJ que orientou pessoalmente o desvio de US$ 10 milhões da iniciativa voltada para a saúde e a educação financiada pelo Banco Mundial, redirecionando o dinheiro para financiar realocações em massa por meio do programa de formação de vilas. Ele disse que funcionários do alto escalão do governo federal etíope o instruíram a desviar o dinheiro e que o montante foi essencial para conduzir o programa de reassentamento. “Se não fosse determinado pelo governo realocar a verba do Banco Mundial para o programa, ele não seria possível”, disse Olom.
Olom, que deixou a Etiópia no ano passado e está pedindo asilo político nas Filipinas, nunca havia falado com a imprensa sobre o programa de remoções. Ele agora reconhece que os despejos em massa foram postos em prática com ameaças e violência. “Os agricultores vieram até mim e disseram: ‘Omot, nós não somos livres porque membros do Exército vêm aqui e nos intimidam’”, afirma. “Há incidentes de maus-tratos e agressões aos agricultores e até estupros das mulheres.” Agricultores que protestaram ou se opuseram às remoções, diz Olom, “foram espancados e torturados pelo Exército”.
As remoções na Etiópia enquadram-se em um padrão. Comunidades deslocadas por projetos do Grupo Banco Mundial na Nigéria, Honduras, Quênia, Indonésia, Índia, Guatemala e Uganda acusam os tomadores de empréstimo de cometer violações de direitos humanos. Governos e empresas apoiados pelo Banco Mundial ou o seu braço de empréstimos para setor privado, a International Finance Corporation (IFC), demoliram e queimaram casas e empregaram soldados ou agentes de segurança privada que prenderam, espancaram e até mataram, afirmam os moradores das comunidades afetadas em reclamações formais e entrevistas para o ICIJ.
Especialistas em direitos humanos dizem que o banco está deixando de lado sua missão de ajudar as pessoas mais pobres do planeta ao não adotar políticas internacionais de proteção dos direitos humanos.
Philip Alston, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para pobreza extrema e direitos humanos, acusou o banco de esconder atrás de “malabarismos argumentativos” que a instituição não pode se engajar totalmente em questões de direitos humanos, porque seu regulamento a proíbe de se envolver em política. Em dezembro, Alston e outros 27 funcionários de direitos humanos da ONU escreveram ao presidente do Grupo Banco Mundial, Jim Yong Kim, para reclamar que a proposta do banco de rever suas políticas de “salvaguardas sociais” para proteger pessoas que estão no caminho do desenvolvimento “evita qualquer referência significativa aos direitos humanos”.
Um porta-voz do Banco Mundial disse que leva “muito a sério” os relatos de abusos de direitos humanos por parte das comunidades afetadas e que esses casos mostram que precisam “continuamente melhorar os esforços de supervisão”. Ele disse que o banco tem sido um líder por décadas na elaboração de salvaguardas robustas para as pessoas que moram em áreas afetadas pelos seus projeto e que as novas regras propostas vão “tão longe quanto ou até além do que quaisquer outros bancos multilaterais de desenvolvimento” fazem para proteger populações vulneráveis.
O coordenador de programas do Banco Mundial na Etiópia, Greg Toulmin, disse que a missão do banco é apoiar iniciativas de combate à pobreza, não de policiar atividades não relacionadas de seus tomadores de empréstimo.
Temendo o pior
Na Etiópia, denúncias de abusos de direitos humanos relacionadas com as remoções em massa em Gambella levaram o vizinho Sudão do Sul – uma nação devastada pela guerra civil – a garantir status de refugiados aos grupos de anuaks que saíram da Etiópia. Otiri e Omot escaparam da violência em Gambella no verão de 2011, caminhando pela fronteira etíope até um campo de refugiados no Sudão do Sul.
O jovem casal fez a jornada separadamente. Quando acordou sozinho na floresta após o espancamento, Otiri se viu diante de um dilema. Se retornasse para casa, provavelmente iria colocar sua mulher e a si mesmo em um perigo muito maior. Decidiu que o mais seguro a fazer era ir em direção à fronteira, em uma caminhada de uma semana para um acampamento de refugiados no Sudão do Sul, onde um crescente número de anuaks procurava refúgio do esforço de reassentamento do governo etíope. Ele esperava que a sua mulher percebesse o que tinha acontecido e o seguisse até lá.
Pouco depois que seu marido desapareceu, um vizinho disse a Omot que os soldados o tinham levado para o meio da floresta. Ela temeu o pior. “O que veio à minha mente foi que eu nunca mais iria ver o meu marido de novo”, relembra.
Mais tarde naquela noite, três soldados chegaram à habitação de seus pais, procurando Otiri. Eles exigiram que ela contasse a eles onde seu marido estava se escondendo. Quando falou que não sabia, eles a prenderam e a fizeram marchar forçosamente através do acampamento militar. Chegaram até a derrubá-la porque ela não estava andando rápido o suficiente.
No acampamento a céu aberto dos soldados na comunidade de Gog Depache, continuaram a interrogá-la. Quando ela insistiu que não sabia de nada, os soldados a estupraram. “Depois daqueles dois dias eles me libertaram”, lembra. “A partir daquele momento, decidi sair do país.” Ela rumou para o Sudão do Sul, sem saber o que encontraria no fim da jornada.
“Amigo do sistema”
O Banco Mundial vê há muito tempo a Etiópia como uma prioridade, direcionando empréstimos para o governo para ajudar o país de 90 milhões de pessoas a deixar para trás o legado de pobreza e fome. Em 2005, o banco cortou o financiamento para a Etiópia depois que os autoritários líderes do país massacraram um grande número de pessoas e prenderam cerca de 20 mil opositores políticos após a disputa das eleições.
Um ano depois, o banco suspendeu a proibição, lançando uma nova estratégia de financiar governos locais e estatais em vez de autoridades federais. Em 2006, a instituição aprovou o financiamento de US$ 215 milhões em empréstimos e subsídios para apoiar um programa chamado Proteção de Serviços Básicos, que deveria fornecer atendimento médico, educação, água potável e outros auxílios a populações rurais da Etiópia. Em maio de 2009, o banco liberou mais US$ 540 milhões para estender o programa.
Pouco depois, o governo etíope começou a pôr em prática a sua ambiciosa campanha de reassentamento. O programa de formação de vilas pretendia realocar 1,9 milhão de pessoas em quatro estados rurais com uma grande população nativa, movendo-os para áreas de reassentamento onde autoridades poderiam oferecer escolas e atendimento médico público. O objetivo, de acordo com um plano de 2010 para o estado de Gambella, era a “transformação socioeconômica e cultural da população”.
O Banco Mundial diz que as autoridades etíopes não o consultaram quando desenvolveram o programa de reassentamento, e a instituição não esteve ciente do plano até outubro de 2010. Em janeiro de 2011, o banco e outros financiadores estrangeiros escreveram para o governo etíope, alertando que os reassentamentos forçados poderiam “impactar negativamente o bem-estar e o estilo de vida daqueles que deveriam ser beneficiados”.
Othow Nyigwo, então secretário de Educação do estado de Gambella, afirmou em fevereiro de 2011 que seus superiores o convocaram, juntamente com outros funcionários da área de saúde e educação, para uma reunião com Olom, o governador de Gambella na época.
No encontro, relata Nyigwo, Olom ordenou a ele que desviasse US$ 1.500 dos fundos do Banco Mundial, que seriam destinados a salas de aula do ensino básico, para o programa de reassentamento. Olom deu a mesma ordem de desvio de fundos a todos os funcionários presentes na reunião, afirma Nyigwo, que agora vive num campo de refugiados do Sudão do Sul.
Como supervisor local do programa de vilas, Nyigwo ouviu reclamações contínuas dos moradores anuaks, que diziam estar sendo forçados a deixar terras férteis em troca de lotes pequenos e infertéis em novas áreas determinadas pelo governo. Quando ele informou seus superiores dessas reclamações, eles disseram que deveria parar de causar problemas.
Olom, o ex-governador, confirmou o relato de Nyigwo sobre a reunião de fevereiro de 2011. Olom afirma que funcionários federais o orientaram a desviar o financiamento depois que ficou claro que o governo não tinha dinheiro suficiente para arcar com todos os custos do programa de reassentamento.
No segundo ano do esforço de formação de vilas, Olom afirma, funcionários de alto escalão disseram que ele precisava sugar outras fontes de financiamento, incluindo dinheiro vindo do Banco Mundial para apoiar iniciativas na área de saúde e educação. Ele diz ter desviado 90 milhões de birrs etíopes – cerca de US$ 5 milhões na época – em cada um dos dois anos seguintes.
Olom disse que seus superiores garantiram que ele não seria punido por desvio de dinheiro do Banco Mundial e outros financiadores – e trabalharam com ele para tornar obscuro o rastro do dinheiro. “Eles sabiam que a forma como nós realocamos o orçamento era ilegal”, afirmou Olom, em uma entrevista por telefone em março, quando estava nas Filipinas. “Então eles fizeram o procedimento em sigilo absoluto.”
Olom é uma figura controversa. Ele próprio um anuak, o ex-governador é criticado por muitos outros conterrâneos por seu papel na realização dos despejos em massa. Também foi acusado de corrupção e de ser cúmplice em um massacre em 2003 de seus conterrâneos anuaks, quando era secretário de Segurança de Gambella, em vias de se tornar governador.
Ele nega essas acusações. Afirma que caiu em desgraça com as autoridades federais da Etiópia depois de mais de uma década de vida pública, sendo inclusive governador e ministro, porque fez questionamentos sobre as ações do governo em relação aos anuaks.
Olom sustenta que ele inicialmente acreditava que o programa de reassentamento ajudaria pessoas pobres em Gambella, então seguiu a determinação das autoridades federais. “Eu era um bom amigo do sistema”, conclui.
Felix Horne, um pesquisador da Human Rights Watch que estuda a Etiópia, afirmou que essas alegações só estão sendo feitas por Olom para recuperar a sua imagem pública. “Está muito claro que ele quer fazer de si mesmo outra vítima do governo”, disse Horne. “[Mas] suas afirmações definitivamente parecem plausíveis. Tudo que nós ouvimos de ex-funcionários do governo em Gambella casam com o que ele disse.”
O governo etíope não respondeu aos questionamentos do ICIJ enviados à embaixada do país em Washington, nos Estados Unidos, ao seu ministro de Relações Exteriores, ou ao gabinete do país no Banco Mundial.
Indagado sobre as avaliações de Nyigwo e Olom, um porta-voz do Banco Mundial disse que a instituição “não estava ciente dessas novas alegações” e solicitou que o ICIJ avisasse a linha direta de corrupção e fraude do banco “e reportasse o assunto sem atrasos”.
Terra de investidores estrangeiros
Enquanto Olom e Nyigwo estavam ajudando a pôr em prática o esforço de reassentamento da Etiópia, o Banco Mundial conduzia uma avaliação do programa. Membros da equipe do banco visitaram o oeste do país em fevereiro e março de 2011 para averiguar como as remoções estavam sendo conduzidas. A equipe visitou Benishangul-Gumuz, um estado ao norte de Gambella que havia sido selecionado para o programa de reassentamento, mas não possuía população de origem anuak. Os funcionários do Banco Mundial concluíram que as realocações naquela região “aparentavam ser voluntárias e não eram uma consequência direta dos projetos financiados pelo banco”.
No fim de fevereiro de 2011, antes mesmo de a equipe de inspeção terminar o seu trabalho, o banco aprovou outro financiamento para o programa de serviços básicos, enviando mais US$ 420 milhões para a Etiópia. Grande parte do dinheiro foi para Gambella e outros estados que faziam parte do programa de reassentamento.
Toulmin, o coordenador do banco na Etiópia, afirmou que a instituição financeira também confiava nas visitas a campo de outros financiadores internacionais que foram a Gambella e compartilharam suas descobertas. Ele disse que essas missões também não encontraram nenhuma evidência de violência ou remoções forçadas.
Quando as visitas de campo acalmaram as preocupações do banco, o governo etíope arrendou grandes porções de terra em Gambella para investidores privados. Os anuaks, que não possuem titulação legal de suas terras ancestrais, não receberam nada em troca. Na Etiópia, o governo oficialmente é proprietário de todas as terras, mas os ocupantes deveriam ter alguns direitos específicos sobre elas.
Ao todo, 42% da terra em Gambella foi arrendada ou vendida a investidores privados, de acordo com um relatório de 2011 do Oakland Institute, um grupo baseado nos Estados Unidos que faz defesa pública de causas sociais e critica transferências generalizadas de terras em países em desenvolvimento para empresas. Entre os maiores arrendatários das terras de Gambella está o Saudi Star, um conglomerado de empresas do homem mais rico da Etiópia, o xeque de cidadania etíope e saudita Mohammed Al-Amoudi.
A terra anteriormente pertencente aos anuaks está agora sendo usada pelo Saudi Star para plantações comerciais, de acordo com dois anciões anuaks entrevistados pelo ICIJ e relatórios do Oakland Institute e do Human Rights Watch. O governo removeu pequenas vilas que estavam situadas na terra posteriormente arrendada pela Saudi Star e realocou os moradores como parte do programa de formação de vilas, afirma o relatório do Oakland Institute.
Uma porta-voz do xeque confirmou que o Saudi Star arrendou 10 mil hectares em Gambella, mas negou que qualquer terra tenha sido anteriormente ocupada pelos anuaks. “Nenhuma pessoa ou agricultor foi reassentado da terra na qual o Saudi Star está operando”, disse. Ela afirmou que quaisquer ilações de que a empresa se beneficiou inapropriadamente das decisões do governo sobre o uso da terra são invenções incentivadas por “grupos com uma agenda política”.
Encontro emotivo
Depois de terem expulsado os moradores anuaks de suas casas, funcionários do governo local recrutaram vários deles para trabalhar na construção das novas áreas. Odoge Otiri, o jovem marido que afirma ter sido agredido por soldados, diz que atraiu a raiva deles porque permaneceu em casa e se recusou a trabalhar cortando mato alto para fazer os tetos de sapé das novas moradias que ele e seus vizinhos não queriam. Os soldados esmagaram seus cotovelos e joelhos com cassetetes até que ele desmaiou. Quando retomou a consciência, percebeu que estava sozinho, sem soldados ou qualquer sinal do seu vilarejo à vista.
Começou a procurar por um abrigo onde pudesse recuperar as forças. Caminhou cerca de duas horas para chegar a outro vilarejo anuak. “Apesar de eu estar andando devagar e estar muito assustado, Deus me guiou pelo caminho”, afirma. Apesar de Otiri ser um estranho, uma mulher no vilarejo cuidou dele por conta da preocupação de um companheiro anuak. Ela cuidou dos seus ferimentos por três dias, enquanto ele retomava as forças.
Com medo de retornar para casa, ele começou a longa e lenta caminhada em direção à fronteira. Não tinha como se comunicar com sua mulher na época e não tinha ideia do que estava acontecendo com ela em sua terra natal. Quando alcançou o acampamento anuak em Pochalla, no Sudão do Sul, pediu a dois executivos que estavam indo para Gambella que procurassem Omot e contassem a ela sobre sua localização.
Depois que foi solta pelos soldados, sua mulher, Aduma Omot, ficou diante de uma escolha dolorosa: permanecer na Etiópia ou voar e esperar encontrar seu marido além da fronteira. Sem notícias do marido, ela também decidiu deixar a Etiópia. E começou a andar em direção a Pochalla.
Ao longo do caminho, na cidade de Pignudo, encontrou os dois homens de negócio. Eles disseram a ela que seu marido estava vivo e esperava por ela no Sudão do Sul. Quando chegou ao abrigo anuak em Pochalla, duas pequenas crianças a levaram à habitação onde seu marido estava hospedado. “Eu a vi entrar e nós choramos muito”, lembra Otiri. “A primeira coisa que me veio à cabeça foi que era um alívio enorme.”
“Concordar em discordar”
No final de 2011, a organização de direitos humanos Human Rights Watch confrontou o Banco Mundial e o governo etíope com denúncias de abusos decorrentes do programa de reassentamento em Gambella. Os relatos, que foram detalhados logo depois em um documento chamado “Esperando aqui pela morte”, descreviam a campanha de despejos reforçados por prisões arbitrárias, espancamento, estupros e assassinatos.
O relatório documenta pelo menos sete casos de pessoas que morreram como resultado de espancamentos por militares. Expõe, também, muitos outros casos que não puderam ser comprovados. Um morador citado no relatório descreve a cena de um jovem de 19 anos que apanhou tanto de soldados com armas e cassetetes que começou a vomitar sangue e morreu em seguida.
A Human Rights Watch acusou o Banco Mundial e outros financiadores de desenvolvimento do Proteção de Serviços Básicos de estarem “envolvidos em um programa que está fazendo mais para lesar os direitos e meios de subsistência da população do que para melhorá-los”.
O Banco Mundial negou que o reassentamento tenha sido feito à força ou que o dinheiro tenha sido usado para dar suporte aos reassentamentos forçados. O banco afirmou que seus investimentos na Etiópia ajudaram a reduzir pela metade a taxa de mortalidade infantil e a melhorar em 13% a frequência na escola primária em menos de uma década. O governo etíope afirmou que o programa de reassentamentos em Gambella realocou 37.883 famílias antes de ser concluído na metade de 2013.
Um funcionário de alto escalão do governo etíope disse à Human Rights Watch que todas as famílias foram realocadas com seu “total consentimento e participação”. Qualquer alegação de coerção policial ou militar, disse o funcionário, eram “invenções arbitrárias” incentivadas por pessoas “antidesenvolvimento”, que estavam trabalhando “em uma campanha orquestrada com o apoio de seus manipuladores estrangeiros”. Com poucas opções, os refugiados anuak se voltaram para a unidade de fiscalização interna do Banco Mundial, conhecida como Painel de Inspeção.
Trabalhando junto a uma organização americana sem fins lucrativos, a Inclusive Development International, um grupo de refugiados anuak fizeram uma reclamação de 21 páginas em setembro de 2012. Eles acusavam o apoio do banco ao programa Proteção de Serviços Básicos de violar suas próprias regras contra reassentamentos ilegais e desapropriação de grupos nativos. No documento, afirmava-se que os serviços financiados pelo banco eram “precisamente” aqueles a serem fornecidos pela campanha de reassentamento, o que significava que os financiamentos do banco eram uma “contribuição substancial” para os despejos.
Em uma série de reuniões com funcionários do Banco Mundial, os refugiados anuak descreveram os abusos perpetrados pelo governo. Toulmin, o diretor do programa etíope do banco, afirmou que os relatos dos refugiados não eram suficientes para prevalecer sobre os achados das missões de campo feitas pelo banco e por outros doadores estrangeiros, que não encontraram evidências de despejos forçados ou abusos de direitos humanos. “No final, nós simplesmente tivemos que concordar em discordar”, disse Toulmin. Um dia depois de a reclamação ter sido arquivada, o banco aprovou outros US$ 600 milhões para serem gastos no programa de serviços básicos.
“O Banco Mundial era responsável”
Em fevereiro de 2014, uma equipe do Painel de Inspeção foi à Etiópia para conduzir uma investigação de campo em Gambella, que continua sendo o lar de dezenas de milhares anuaks.
Mas, quando os investigadores começaram a viajar para as vilas recém-construídas pelo governo para encontrar os anuaks que tinham sido reassentados, descobriram que as autoridades etíopes tinham chegado primeiro. “Todas as pessoas tinham sido instruídas antes de nossa chegada”, conta Eisei Kurimoto, especialista na história anuak da Universidade de Osaka, no Japão, convidado para se juntar à equipe como consultor. “E eles tinham sido previamente intimidados a dizer coisas boas para a gente.”
Enquanto a maior parte da equipe conduziu encontros públicos, Kurimoto decidiu se encontrar privadamente com os moradores, em suas casas. Mesmo nas reuniões formais, os anuak descreviam soldados armados, que acompanhavam funcionários do governo dizendo que deveriam sair. Mas alguns de seus depoimentos em conversas privadas eram muito mais perturbadores.
Nessas reuniões, descreveram tiroteios, prisões arbitrárias e violência sexual, de acordo com as transcrições das conversas de Kurimoto com os moradores. “Teve um homem anuak das Forças Especiais [militares] que se recusou a seguir a ordem de fazer com que fazendeiros se mudassem para a nova localização por força”, contou um anuak, cujo nome não foi revelado, para Kurimoto. “E nós ouvimos um tiro, um policial [federal] atirou nesse homem… até a morte, bem aqui.”
Quando o Painel liberou seu relatório em fevereiro de 2015, as vozes das pessoas que denunciaram ameaças e violência estavam ausentes. O relatório mencionava algumas informações sobre abusos ligados a despejos, mas não os descrevia em detalhes – o que levou a Inclusive Development International, a ONG que ajudou os anuaks a apresentar a reclamação, a afirmar que o Painel tinha “ocultado evidências de abusos a direitos humanos generalizados”.
O Painel de Inspeção disse que não tinha a autoridade para investigar as alegações de violações de direitos humanos cometidas pelos clientes do banco. Seu único papel, afirmou, era determinar se o banco violou as próprias regras. O documento criticou a instituição por ignorar provas de um “link operacional” entre o projeto financiado e a campanha de despejos na Etiópia e por falhar ao não fazer nada para proteger as comunidades afetadas.
Mas não chegou a atribuir culpa ao banco pelos despejos em massa. Isso porque os despejos não eram uma parte “necessária” do programa de saúde e educação, segundo o Painel, e o banco não poderia, em última instância, ser responsabilizado por eles. Kurimoto, especialista que fez parte do Painel, acha que essa conclusão não faz sentido. “Pessoalmente, acho que o Banco Mundial era responsável”, disse ele para o ICIJ. “[O banco] fechou os olhos para o que estava acontecendo no local.”
Em março de 2015, o Banco Mundial aprovou um novo empréstimo de US$ 350 milhões para a Etiópia, que inclui apoio para o governo local em Gambella.
“Nas mãos de Deus”
Em uma manhã de domingo sufocante no Sudão do Sul, no último verão, centenas de refugiados anuaks se abarrotaram no chão sujo de uma igreja pequena e mal iluminada. Na frente da congregação, um jovem alto, com microfone nas mãos, começou a cantar. Primeiro, seu barítono forte ficou suspenso no ar quente, mas de repente um coro começou a cantar com ele.
A congregação então se levantou, batendo palmas ao som da música. Com o suor pingando de seu rosto, o cantor passou pelo corredor estreito, sua voz rouca e poderosa motivando todos à adoração. Alguns levantaram as mãos no ar. Uivos guturais de mulheres sobressaíram da voz do coro.
Na nação do Sudão do Sul, dividida pela guerra, o Campo de Refugiados de Gorom é um bastião da fé para mais de 2 mil anuaks que deixaram a Etiópia. Eles lutam para reconstruir suas vidas em meio à miséria e a um futuro desconhecido.
Odoge Otiri e Aduma Omot vivem num abrigo de dois quartos, ao lado de uma pequena plantação de quiabo e mandioca que Otiri está cultivando. Eles estão em Gorom, mantidos com ajuda da ONU, há mais de dois anos. Otiri conta que não há nada para fazer lá. “A vida no campo de refugiados é muito difícil”, diz. “Não tem comida suficiente.”
Mas eles não desistiram. Sem muita esperança de que possam voltar para a Etiópia, estão fazendo o melhor para ter uma nova vida, em uma nova terra. Desde que chegaram, a família deles cresceu e hoje inclui sua primeira filha, um bebê. A menina se agita nos braços de Omot, às vezes pedindo para ser amamentada.
O nome dela é Annacerjwok – um termo anuak para “nas mãos de Deus”.
Sasha Chavkin é repórter do International Consortium of Investigative Journalists. Ele viajou para a Etiópia e para o Sudão do Sul para escrever esta história.