Em uma reunião dos Três Poderes sobre o avanço dos incêndios no Brasil, no dia 17 de setembro, o presidente Lula alertou que tanto os estados quanto as cidades não estão preparados para enfrentar eventos climáticos extremos. Na semana anterior ao pronunciamento, São Paulo, a maior cidade do país, se manteve por cinco dias consecutivos com a pior qualidade do ar do mundo, de acordo com o ranking desenvolvido pelo site suíço IQAir, que monitora a poluição em 120 metrópoles de todo o planeta.
Dias de sol vermelho, poeira, fumaça em consequência das queimadas e frequentes ondas de calor viraram rotina não só em São Paulo, mas em outras cidades brasileiras. As adaptações às mudanças climáticas são urgentes, porém fazê-las “sem levar em consideração os impactos raciais na transformação” vai agravar desigualdades sociais, diz Gisele Brito, jornalista, mestra em planejamento urbano e coordenadora da área de Direito à Cidade Antirracista do Instituto de Referência Negra Peregum. Ela foi entrevistada pelo Pauta Pública nesta temporada de conversas que não podemos mais adiar.
Durante a entrevista, Brito falou sobre racismo ambiental, justiça climática e a importância de desenvolver cidades inclusivas para combater as desigualdades raciais. Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.
EP 139 Justiça climática e cidades antirracistas – com Gisele Brito
O que é pensar uma cidade antirracista?
É importante falar sobre isso, porque cidade antirracista virou uma palavra solta. Como se bastasse dizer “sou antirracista e ponto”. É bom lembrar que isso [o termo] é uma vitória do movimento negro, se a gente levar em consideração que já foi tabu falar em desigualdade racial. Então, hoje isso ser usado como uma palavra mágica também tem algo de importante. Significa que parte da sociedade está sensível.
O enfrentamento ao racismo do Brasil é uma pauta de enfrentamento às desigualdades. Porque, se a gente não coloca a desigualdade racial e as várias dimensões dessa desigualdade como um problema central a ser enfrentado frontalmente, as pautas de desigualdade podem não ser tão efetivas.
A gente tem várias pesquisas que mostram que a percepção da sociedade sobre racismo ainda é muito pautada no xingamento, na ofensa. Mas a gente tem uma série de outras coisas que ainda seguem invisibilizadas, que são as estruturas do racismo. Com isso, uma cidade antirracista precisa olhar para dados muito específicos das desigualdades. Por exemplo, meninos negros são os que mais abandonam o ensino já nos primeiros anos do fundamental. Claramente tem algo acontecendo que os faça se sentirem desencorajados de irem para a escola.
Então, uma política generalizada, que pensa em evacuação escolar, que pensa em permanência escolar, mas que não dá conta dos problemas específicos que são todos atravessados pela questão racial, ignora as desigualdades na própria estruturação da cidade. Inclusive, é histórico que o desenvolvimento tem sido uma ferramenta do embranquecimento e tem um impacto racial imenso que não é visto como importante nem na hora do planejamento e nem na hora da execução.
Fazer melhoramentos em uma cidade, sem levar em consideração os impactos raciais na transformação, muito provavelmente vai agravar as desigualdades, em vez de diminuí-las.
As principais cidades do Brasil vivem uma onda de calor e contaminação do ar comparável às cidades mais poluídas do mundo, como Nova Délhi, na Índia, ou Jakarta, na Indonésia. O país está em chamas, temos focos na Amazônia, no Centro-Oeste e no Sudeste. As inundações no Rio Grande do Sul foram sem precedentes. Mas, apesar disso, a crise ambiental não aparece nas propostas da maioria dos candidatos à prefeitura das cidades e municípios. Por quê? A questão climática não deveria estar no topo da lista dos nossos debates?
A gente tem que entender que essa questão das mudanças climáticas e dos eventos extremos são um dos problemas do nosso modelo de desenvolvimento, não só do Brasil mas do desenvolvimento mundial. Então, a gente precisa discutir este desenvolvimento. Ou seja, discutir a fundo para ter soluções a fundo.
As mudanças climáticas têm duas frentes bem importantes para o enfrentamento. A primeira frente é a mitigação, que vários cientistas dizem que de certa forma passou o tempo, que a gente não tem mais tempo para impedir a multiplicação de eventos extremos, mas ainda assim a gente precisa mitigar a emissão de gases do efeito estufa para não aumentar os desastres. Na cidade, mitigar é, por exemplo, repensar o sistema de transportes que são poluentes e repensar o código de obras, que é muito permissivo, como forma de ventilação que impede a circulação do ar.
Outra frente é a adaptação, no caso da emergência que estamos vivendo agora. É preciso preparar o sistema de saúde, para que ele consiga receber as pessoas que precisam receber atendimento. É preciso preparar as escolas com ambientes adequados, para as pessoas que dão aula e também para os alunos. É preciso preparar, melhorar, as condições dos trabalhadores que estão nas ruas debaixo do sol quente. Isso não está na pauta, porque se trata de enfrentar o modelo de desenvolvimento que temos hoje.
A crise ambiental é também uma crise política?
É uma crise política e uma crise de desenvolvimento. É muito fácil reclamar do que está acontecendo, mas é muito difícil a gente desligar o nosso próprio ar-condicionado. Não estou falando isso para dizer das escolhas individuais, mas que inevitavelmente passa por isso também, pelo que a gente faz agora. A gente precisa sair do campo das ideias, mesmo que a gente já tenha avançado bastante do ponto de vista ideológico, agora também é preciso assumir os BOs.
O Brasil aparece na discussão internacional muito pautado pela Amazônia, pelas queimadas nas florestas, secas no Cerrado, e se fala muito pouco, se cobra muito pouco do Brasil internacionalmente e se financia muito pouco, mitigação e adaptação urbana. É um problema de diagnóstico e um problema político que usa uma lógica muito marqueteira neste debate. A gente precisa ser mais maduros politicamente mesmo.