A partir desta segunda-feira (7), milhares de pessoas de mais de 200 povos indígenas do país estarão reunidas em Brasília para o Acampamento Terra Livre (ATL), considerado a maior assembleia nacional do movimento indígena.
São esperadas cerca de 7 mil pessoas para a 21ª edição do acampamento, que, neste ano, tem como um dos seus principais objetivos articular a participação indígena na Conferência do Clima da ONU, a COP30, marcada para novembro, em Belém, no Pará.
Serão debatidos vários temas relacionados à agenda climática, como a demanda pelo fim da era dos combustíveis fósseis (principais responsáveis pelo aquecimento global) e por uma transição energética justa; a necessidade de planos ambiciosos para enfrentar as mudanças climáticas e a reivindicação para que os recursos de financiamento climático sejam repassados diretamente aos povos indígenas.
Além da expressiva participação dos povos brasileiros, o evento contará com a presença de delegações internacionais indígenas do chamado G9, o grupo de nove países da bacia amazônica (Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname), além de lideranças do Canadá, da Austrália e das Ilhas do Pacífico.
Segundo Toya Manchineri, coordenador-executivo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o ATL é um momento importante para que os povos dos diferentes países possam se aproximar e construir uma aliança internacional para a COP30, no que pode vir a se tornar um dos principais legados da conferência climática.
“A aliança dos povos indígenas da Amazônia e do Pacífico, em uma união em prol do clima, pode fortalecer as nossas lutas comuns”, disse Manchineri em entrevista à Agência Pública. “Uma pauta que nos conecta é a defesa dos territórios, outra é o saber indígena sobre as mudanças climáticas.”
Um dos objetivos é fazer com que o Brasil e os outros países da região amazônica passem a incluir a demarcação de territórios indígenas em suas metas climáticas – uma das demandas da campanha “A Resposta Somos Nós”, lançada pelas principais associações brasileiras para garantir uma participação indígena efetiva na COP30.
“É comprovado que a demarcação é uma barreira natural contra o desmatamento, evitando as emissões de gases do efeito estufa. Se os governos estão realmente preocupados com as florestas, os povos indígenas, o meio ambiente, por que não aparecer em suas NDCs [sigla para Contribuições Nacionalmente Determinadas, que são as metas estabelecidas por cada país] o número de Terras Indígenas que vão ser demarcadas?”, pergunta Toya.
NDCs são os compromisso definidos internamente por cada país com o quanto eles entendem que podem reduzir suas emissões de gases de efeito estufa de modo a contribuir para conter o aquecimento global. Elas foram apresentadas pela primeira vez há dez anos no âmbito do Acordo de Paris e, neste ano, todos os países têm de rever suas metas a fim de torná-las mais ambiciosas.
O Brasil apresentou a sua nova NDC no fim do ano passado, na COP29, em Baku, no Azerbaijão, com a promessa de reduzir suas emissões entre 59% e 67% em 2035, na comparação com os níveis de 2005. Não foi mostrado, porém, como isso vai ser alcançado, o que deve ser definido com o lançamento do Plano Clima, mas um compromisso já assumido pelo Brasil é zerar o desmatamento até 2030. Lideranças indígenas argumentam que transformar a demarcação de Terras Indígenas (TIs) em política climática ajudaria o país a honrar esse compromisso.
Segundo dados científicos compilados pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), as florestas em territórios de povos originários da América Latina respondem por 14% do carbono armazenado em florestas tropicais de todo o mundo. As áreas ocupadas por indígenas também estão entre as menos desmatadas da região.
No caso do Brasil, as TIs, que somam 13% do território nacional, respondem por apenas 1% de toda a perda de vegetação nativa no país entre 1985 e 2023, segundo a análise mais recente do MapBiomas.
A demanda faz ainda mais sentido em um momento em que a própria política nacional de demarcações segue ameaçada pela lei que estabeleceu o Marco Temporal – segundo a qual só poderiam ser demarcados os territórios em que seja comprovada que havia presença indígena em 5 de outubro de 1988.
A tese já foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas é a norma no país desde que o Congresso aprovou, em setembro de 2023, a Lei 14.701. No ano passado, o ministro Gilmar Mendes, do STF, criou uma comissão especial para “debater” o tema e chegar a uma “conciliação”, em um movimento denunciado pelos indígenas, que entendem ser impossível conciliar direitos fundamentais.
Direito ao território
Não à toa, o lema do ATL neste ano é “Apib somos todos nós: em defesa da Constituição e da Vida”.
A Apib é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e uma das autoras de uma ação judicial que contesta a Lei do Marco Temporal. Principal organização representativa a nível nacional, ela reúne sete organizações locais: Apoinme (que reúne os povos indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), ArpinSudeste, ArpinSul, Aty Guasu (a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá), Conselho Terena (organização do Mato Grosso do Sul), Coaib e Comissão Guarani Yvyrupa, que se unem para realizar o acampamento.
Pela Constituição, os indígenas possuem direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo obrigação da União fazer a demarcação, mas há mais de uma centena de territórios esperando há décadas por esse reconhecimento.
“O principal gargalo para alcançar o que o texto constitucional determina é a demarcação [das terras indígenas]. A Constituição é muito clara, ela não deixa dúvida: o direito dos povos indígenas ao território é um direito congênito, que antecede a existência do estado brasileiro”, disse Dinaman Tuxa, um dos coordenadores da Apib, à Pública.
“O tema principal [do ATL] é a demarcação”, concorda Toya. “É um tema que sempre vai estar na pauta, a não ser que o Estado resolva finalmente demarcar todos os territórios.”
Desde que assumiu seu terceiro mandato como presidente, Lula homologou (última fase do processo demarcatório) 13 Terras Indígenas de uma lista de 14 territórios, elaborada ainda em 2022 pelo grupo de trabalho da transição, que apontou as áreas como prioritárias para serem demarcadas nos 100 primeiros.
O governo Lula, porém, levou 704 dias para concluir o processo de 13 delas. Da lista inicial, ainda resta homologar a TI Xukuru-Kariri, em Alagoas.

Segundo dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), 156 terras indígenas estão em fase de estudo (primeira etapa do processo de demarcação), outras 37 já tiveram seus limites delimitados pela Funai e outras 70 foram declaradas pelo Ministério da Justiça (momento que antecede a homologação).
A demarcação desses territórios é uma das demandas enviadas pela Apib a Lula e a outros ministérios do Executivo Federal. A ideia, diz Dinaman, é que o governo apresente respostas durante a realização do ATL, que vai até sexta-feira (11).
A organização convidou o presidente e vários ministros para irem ao acampamento – mas, pelo menos até a publicação desta reportagem, não obtiveram confirmações. Uma presença que esperam estar garantida é a de Sonia Guajajara, que, antes de ser ministra dos Povos Indígenas, foi coordenadora da Apib.
COP30: chance de expor ameaças ao mundo
A presença de autoridades seria uma sinalização importante em um momento político difícil para os povos indígenas. No STF, a comissão especial (também chamada de câmara de conciliação) sobre o Marco Temporal debate uma minuta de projeto de lei, apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, que flexibiliza e enfraquece vários direitos, segundo advogados indígenas e indigenistas ouvidos pela Pública.
Já no Congresso, tramita no Senado uma Proposta de Emenda à Constituição, apoiada pela Frente Parlamentar da Agropecuária, que colocaria o Marco Temporal no texto constitucional. A PEC 48 também está na lista da Confederação Nacional da Agricultura como uma das prioridades para a agenda legislativa deste ano.

“[Queremos] trazer para o debate e para a opinião pública brasileira essas movimentações políticas em Brasília, como a câmara de conciliação, a política de demarcação e os retrocessos debatidos no Congresso Nacional”, diz Dinaman Tuxá sobre o ATL.
Para ele, a discussão desses problemas pelos povos no acampamento pode, posteriormente, ser levada também à COP30, um fórum global importante, considerando que representantes dos governos de 196 países estarão no Brasil para avançar nas negociações de enfrentamento à crise climática.
“A COP30 vai ser um momento ímpar, porque vamos conseguir emanar nossas mensagens para o cenário internacional. Ter a Lei 14.701 [do Marco Temporal] em vigor em ano de COP, sendo que ela só potencializa conflitos, não é bom para o Brasil. É uma oportunidade de levar ao conhecimento do mundo que temos setores das instituições de Estado, como o Congresso, que estão buscando formas de usurpar os direitos dos povos indígenas e seguem com a ideologia do ‘progresso’ a todo custo, aumentando os conflitos, o desmatamento, com consequências para toda a humanidade”, afirma Dinaman.
Nesse sentido, o coordenador da Apib afirma que a organização reitera sua aliança com o atual governo federal, mas que, em troca, precisa que o Executivo faça entregas aos povos indígenas.
“Nós queremos que o governo atenda a política de demarcação e que faça o enfrentamento de uma forma mais incisiva na defesa dos direitos dos povos indígenas”, diz.
Um exemplo disso foi o apelo de Alessandra Korap, uma das principais lideranças do povo Munduruku, para que a ministra Guajajara e a presidente da Funai, Joenia Wapichana, se manifestassem sobre o Marco Temporal e apoiassem um protesto Munduruku. Na semana passada, mais de 150 pessoas de diferentes partes dos territórios Munduruku bloquearam a rodovia Transamazônica para pedir uma audiência com Gilmar Mendes sobre a comissão do Marco Temporal.
O gabinete de Mendes informou à imprensa que se reunirá com representantes da Apib para tratar da situação envolvendo os Munduruku no próximo dia 10, durante o ATL. O acampamento, inclusive, vai dedicar uma sessão plenária para discutir a comissão especial do STF, batizada de “acordo sem voz”.
Duas décadas de Apib
A 21ª edição do ATL também vai homenagear os 20 anos da Apib, que nasceu no 2º ATL, em 2005. Naquele ano, o terceiro do primeiro mandato de Lula, as lideranças indígenas reunidas consideraram que, diante da dificuldade do cumprimento de compromissos então firmados com o presidente, precisavam de uma representação nacional que pudesse unificar a luta indígena.

Desde então, tanto a organização quanto o acampamento cresceram em tamanho e relevância. Se na primeira edição o ATL reuniu apenas 150 pessoas, no ano passado mais de 9 mil indígenas de todas as regiões do país acamparam em Brasília.
“O ATL é um espaço de debate e encaminhamento sobre muitas questões relacionadas aos direitos indígenas”, diz Toya Manchineri, da Coiab. “Dessas conversas saíram a Secretaria de Saúde dos Povos Indígenas e depois o Ministério dos Povos Indígenas”, lembra ele.
Na quinta-feira (10), os participantes do acampamento farão uma grande marcha com o tema da campanha “A Resposta Somos Nós”. Ao longo dos dias, a programação também inclui conversas sobre a exploração de petróleo em áreas que impactam Terras Indígenas (como seria o caso do pleito da Petrobras na região da Foz do Amazonas) e como dar protagonismo à juventude no debate climático.
Haverá, ainda, uma sessão plenária dedicada a debater uma Comissão Nacional Indígena da Verdade para exigir a reparação aos povos indígenas pelos crimes cometidos contra esses povos durante o regime militar. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período – “em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”. O número se refere a apenas dez povos estudados pela CNV – são 305 no Brasil.