Famílias brasileiras que reivindicam novos atestados de óbitos de seus mortos e desaparecidos durante o regime militar finalmente receberam uma boa notícia: o Conselho Nacional de Justiça determinou, em dezembro de 2024, que a causa da morte nos atestados de óbito das 434 vítimas da ditadura será corrigida e o Estado vai assumir a sua responsabilidade. Nos novos documentos deverá constar “causa morte não natural, violenta, causada pelo Estado”, como recomendou a Comissão Nacional da Verdade, instaurada em 2012. Mas até agora não foi definida uma data para a entrega dos novos certificados.
“Essa reivindicação é antiga. São 40, 50 anos de espera. A CNJ reconheceu em dezembro que as famílias devem ter um novo atestado de óbito, mas a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos resolveu que só ela deve atestar e entregar as certidões. Então criou-se mais um caminho burocrático e até agora nenhum documento foi entregue.”, explica a jornalista, ex-presa política e militante Maria Amélia de Almeida Teles, conhecida como Amelinha Teles.
Há 30 anos, em 1995, o governo aprovou a Lei 9.140 que reconheceu que os desaparecidos políticos foram mortos pelo Estado. As famílias teriam direito ao atestado de óbito e também a uma indenização simbólica. “Eram valores entre R$ 100 mil e R$ 120 mil aproximadamente. Mas nós não queríamos dinheiro, queríamos informação”, ela diz.
Além da falta de retificação nos documentos, ainda há muito a ser explicado. Dezenas de familiares ainda não sabem quando, como, onde e em que circunstâncias seus filhos, seus sobrinhos foram mortos. Mães e pais que passaram décadas em busca de informação morreram sem saber que os matou. E nenhum assassino foi preso.
O caso de Isis Dias de Oliveira, que desapareceu no Rio de Janeiro em 1972, é emblemático. “É uma tragédia. Não sabemos nada”, reclama o radialista e militante político ítalo-brasileiro José Luiz Del Roio, que foi companheiro de Isis. “Queremos saber o nome dos assassinos. Queremos que eles sejam processados”. São 53 anos à procura de informações seguras.
A certidão da morte de Isis que Del Roio recebeu não traz nenhuma informação relevante. No lugar em que deveria haver a data e hora do falecimento, local de falecimento, causa da morte e nome do médico que atestou o óbito, há apenas um incômodo “não consta”. O local do sepultamento está descrito “local ignorado”.
Por que isso importa?
- Há 30 anos, o Estado brasileiro aprovou Lei garantindo que as mortes e desaparecimentos causados pela ditadura de 1964 alterariam as informações nas certidões de óbito, mas até hoje famílias não conseguiram exercer esse direito

Quase 40 anos a procura de respostas
Isis foi presa no dia 30 de janeiro de 1972 pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) com outro militante chamado Paulo César Massa. “A família só soube que ela tinha sido presa porque uma amiga chamada Aurora Nascimento telefonou e avisou. As Forças Armadas sempre negaram”, conta Del Roio.
Segundo o relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva, Isis foi acusada e julgada à sua revelia por assalto ao Hospital da Ordem Terceira da Penitência, no Rio de Janeiro, depredação de postos de gasolina onde havia cartazes de procurados políticos e assalto à agência do banco Bradesco na rua Miguel Leme, quando foi ferida, sem gravidade. Em três processos ela foi absolvida e os demais foram arquivados por insuficiência de provas.
Foram 38 anos de procura. Dona Felícia, mãe de Isis, escreveu cartas para o governo, tentou contatos com as Forças Armadas. Nunca obteve resposta. Uma informação de que a filha estava em Londres a levou até a capital da Inglaterra. A pista era falsa. “Quando saí da última prisão, muitas famílias de mortos e desaparecidos vinham falar comigo para saber se eu tinha alguma informação”, lembra Amelinha Teles, que entrou para o PCB, foi presa em 1964 e depois em 1972, passou pelo DOI-CODI de São Paulo, pelo Presídio do Hipódromo, pela Casa do Egresso e pelo Carandiru.

“Conheci bem dona Felícia. Ela me marcou. Era uma mulher muito doce, participava dos nossos encontros, que reuniam famílias de mortos e desaparecidos, era assídua nas nossas manifestações, nas nossas viagens a Brasília. Ela levou essa luta até o fim de sua vida. Dona Felícia não tinha as mesmas posições políticas que a filha, mas nunca se queixou da Isis. Pelo contrário, tinha muito orgulho da coerência dela”, completa.
De acordo com investigação da Comissão da Verdade, a morte de Isis e de mais 11 desaparecidos no dia 28 de janeiro de 1979 foi confirmada pelo general Adyr Fiúza de Castro, chefe do DOI-CODI do Rio de Janeiro, em matéria do jornalista Antônio Henrique Lado na Folha de S.Paulo. Em 1994, o livro Os Anos de Chumbo – A Memória Militar sobre a Repressão (editora Relume-Dumará), dos pesquisadores Maria Celina D’Araújo, Glaucio Dillon Soares e Celso Castro o general Fiúza de Castro, trouxe um depoimento cruel do general Fiúza de Castro sobre métodos usados para torturar presos políticos no país durante o regime militar.
Em julho de 2021, a Agência Pública mostrou que 19 militares acusados de crimes na ditadura – entre eles nomes do alto escalão do regime militar – deixaram pensões para seus familiares. A lista trazia o nome do general Fiúza Castro, que deixou duas pensões no valor total de R$ 30 mil a familiares.
O desaparecimento de Isis começou a ser investigado em 2014 pela Comissão Nacional da Verdade. A conclusão é que ela foi assassinada pelos militares na Casa da Morte em Petrópolis, no Rio de Janeiro, a partir da denúncia de Inês Ettiene Romeu, ativista da Vanguarda Popular Revolucionária, única sobrevivente entre os militantes que foram levados para esse lugar.
Del Roio pediu que a Comissão da Verdade solicitasse ao Arquivo Nacional uma cópia da Informação 4.057, de 11 de setembro de 1975, do Serviço Nacional de Informação. No documento consta que ela teria sido morta no mesmo dia em que foi presa. “Para mim ela foi morta no DOI-CODI da Barão de Mesquita, na Tijuca, no Rio. Depois eu estive lá para ver o lugar. Também fui até a Casa da Morte”, ele conta. “Quando as ossadas da vala do cemitério de Perus foram descobertas, procurei ali também”.
Durante a ditadura, 1049 corpos foram enterrados ilegalmente no Cemitério Dom Bosco, em Perus, bairro de São Paulo. Essas ossadas foram descobertas em 1990 pelo jornalista Caco Barcellos.

“Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim”
Del Roio lembra de Isis como “uma mulher corajosa que aderiu à luta contra a ditadura do regime militar por vontade própria e teve papel importante”. Ela entrou para o Partido Comunista Brasileiro em 1965, quando cursava o primeiro ano de Ciência Política na Universidade de São Paulo, deixou o PCB para integrar a Aliança Libertadora Nacional, esteve em Cuba onde recebeu treinamento de guerrilha, voltou ao Brasil, mudou para o Rio de Janeiro e lá foi presa em 30 de janeiro de 1972. Nunca mais foi vista.
Isis nasceu em São Paulo em 29 de agosto de 1941, morou com a família na Lapa, era filha de Felícia Mardini de Oliveira e Edmundo Dias de Oliveira e tinha dois irmãos. Seus pais não eram ricos, pelo contrário, mas ela pode estudar em bons colégios, fez o clássico no Santa Marcelina, aprendeu a tocar piano, também pintava, ela cursou artes na Fundação Armando Álvares Penteado. Como falava inglês, francês e espanhol, trabalhou como secretária bilíngue no frigorífico Swift. “Ela era uma mulher muito bonita, usava um cabelo bem curto, era baixa, não era muito magra. Falava com calma, era muito esforçada e culta. Gostava de pintar, quase sempre rostos de mulheres”, lembra Del Roio, que a conheceu quando ela entrou na USP e foi morar no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP).
Em um ano estavam casados. “Eu costumava ir até o antigo prédio da USP na rua Maria Antonia, às vezes ficava ali jogando xadrez. Um dia uma amiga que tinha acabado de chegar da União Soviética nos apresentou. Isis queria entrar para o PCB”, conta Del Roi, que aos 22 anos já era uma importante liderança do partido. Ele começou bem cedo, aos 17, no movimento estudantil em Bragança Paulista, interior de São Paulo, onde morou. “Nós nos casamos por causa da família dela, só no civil, em um cartório na Lapa, e fomos morar em um apartamentinho na rua das Palmeiras, 261, em Santa Cecília. Pouca gente sabia onde a gente morava. A Clara Charf e o Carlos Marighella apareciam de vez em quando. Isis não sabia cozinhar, a Clara não se conformava e tentava ensinar”, lembra, rindo.
Isis começou a trabalhar arregimentando alunos interessados em lutar contra a ditadura brasileira e ajudar na organização das manifestações de rua que o PCB promovia. Dois anos mais tarde, passou a trabalhar no cursinho do grêmio da faculdade. “Isis era alegre, risonha, apesar da vida dura. Ela coordenava o curso, eu dava aulas de história grega e bizantina”, conta Del Roio. A essa altura ela usava um codinome, como quase todos que militavam naquele período. “Isis era Fátima, ela mesma que escolheu esse nome. Tinha outros nomes, mas não me lembro mais. Eu só a chamava de Isis quando estava sozinho com ela. Também a chamava de Corujinha porque na mitologia grega a coruja representa a busca pelo saber”, explica.
Nessa época, eles montaram uma gráfica clandestina na rua Canuto do Val, também em Santa Cecília. “A gráfica era muito importante para o partido porque ali a gente imprimia todo o material que era distribuído para os alunos e operários nas manifestações, nas passeatas. Eram textos sobre política internacional de Ho Chi Minh, de Che Guevara, de Regis Debray. Eu e Isis também escrevíamos”.

Com a cisão no PCB em 1967, Del Roio rompeu com o partido e se uniu a Carlos Marighella e João Câmara Ferreira para fundar a ALN, um grupo de guerrilha urbana que defendia a luta armada contra a ditadura. Ele lembra que a ALN é conhecida como Aliança Nacional Libertadora, mas na verdade a sigla queria dizer Ação de Libertação Nacional. “Eu sei disso porque estava lá. Nosso objetivo era fazer uma ação, não queríamos aliança com ninguém. Eu segui o Marighella e Câmara Ferreira, fundamos a ALN, Isis veio comigo. Foi um período difíc
No terceiro ano do curso ela trancou a matrícula e foi para Cuba, cuja revolução liderada por Fidel Castro em 1959 havia derrubado o governo do ditador Fulgêncio Batista. Lá, durante um ano, fez treinamentos de guerrilha urbana e contraespionagem. “Ela foi antes, eu fui meses depois. Tinha medo que ela caísse, mas não podia dizer isso. Durante o curso nós aprendemos a lidar com explosivos, a fazer explosivos, aprendemos a manejar armas, a atirar, como usar disfarces, como nos mover na cidade, como falsificar documentos”. Ela não conheceu Fidel Castro, ele o conheceu em uma cerimônia do aniversário da revolução.
Em Cuba, após três anos o casamento acabou. Isis voltou para o Brasil e foi para o Rio de Janeiro, onde voltou a viver de forma clandestina. “Eu fiquei mais algum tempo em Cuba e só voltei alguns meses depois da anistia, em outubro de 1979. Soube do seu desaparecimento quando estava em Lima, no Peru. Foi um choque”, relembra Del Roio. No exterior, ele passou pelo Peru, Chile, Argélia, Itália e a então União Soviética. Em Moscou atendeu a um pedido inusitado de Luís Carlos Prestes, comunista histórico, secretário do PCB: cuidar do arquivo do partido, ameaçado pelas constantes buscas por parte dos militares. Em 1977 ele conseguiu transferir o arquivo para Milão e desde os anos 90 esses documentos se encontram sob a guarda do Centro de Documentação e Memória da UNESP (Universidade Estadual Paulista). “Ninguém quis ficar com esse arquivo. Foi uma operação complicadíssima, retirar do Brasil toneladas de livros e documentos subversivos durante a ditadura. Durante anos minha vida ficou ligada àqueles documentos”.

Na Itália, onde mora até hoje, ele possui dupla cidadania, Del Roio se filiou ao Partido da Refundação Comunista e foi eleito senador em 2006 pela região da Lombardia, depois se tornou membro da Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu, em Estrasburgo e membro da União Europeia Ocidental, em Paris. A partir dos anos 2000 ele voltou muitas vezes para colaborar com a criação da Comissão Nacional da Verdade.
“Mulheres como Isis são heroínas do povo brasileiro”, opina Del Roio. “Nos anos 70 nós fomos para a luta contra a ditadura com a cara e a coragem. Fomos com nossas minissaias, com nosso batom. Era o que precisava ser feito”, lembra Amelinha Teles. Desde 2012 o Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais da USP leva o nome de Isis. Ano passado ela e outros 32 alunos da universidade receberam diplomas póstumos concedidos aos alunos que foram mortos durante a ditadura militar. Nos bairros do Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, e em Macaxeira, no Recife, duas ruas também levam o seu nome. Em São Paulo, Isis Dias de Oliveira é o nome de uma praça que fica perto da casa onde ela viveu com sua família, na Lapa, inaugurada em 1999. Há uma pedra na praça onde está escrito: Quando eu não puder mais falar, vocês falarão por mim. De acordo com Amelinha, essa frase não é dela. Mas poderia ser.