No último dia 7 de setembro, o comentarista de extrema direita Charlie Kirk, apoiador do governo Trump, foi assassinado a tiros em um evento público no Colorado. O autor do crime, um jovem de 20 anos com histórico de participação em fóruns radicais como 4chan e Discord, defendia posições ainda mais violentas do que as do próprio Kirk. Este acontecimento expôs os radicalismos políticos da ultradireita estadunidense, ao mesmo tempo, em que, no Brasil, também reverberam discursos de ódio nas redes sociais sobre a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo STF por tentativa de golpe.
Para analisar as conexões entre Brasil, Estados Unidos, redes sociais, extrema direita, e também o papel importante das big techs neste tabuleiro, Andrea Dip recebe no Pauta Pública da semana o pesquisador David Nemer. Ele é professor da Universidade da Virgínia e integra o Programa de Estudos Latino-Americanos da instituição.
Segundo o pesquisador, a extrema direita está se alimentando dela mesma, a partir de espaços digitais onde a radicalização se tornou regra. “A violência deixa de ser consequência e vira pré-requisito de pertencimento”, analisa. Nemer também alerta para o papel das plataformas digitais nesse cenário: “O ódio dá mais engajamento. As Big Techs lucram com isso e se veem acima de qualquer Estado. Hoje, usam governos como o de Trump apenas como meio para alcançar ainda mais poder.”
Leia os principais pontos e ouça o podcast completo abaixo.
EP 186 Trump, Bolsonaro e as redes do ódio
Desde que voltou ao poder, Trump tem radicalizado muito os seus discursos e ações e relações com o resto do mundo. Parece que está em busca de um caos geopolítico. E recentemente, o assassinato do Charlie Kirk revelou uma ultradireita estadunidense que se fortalece com discursos de ódio e promovendo o caos também nas redes sociais. Como você avalia isso?
O Trump opera pelo caos. É o modo de governar e de manter o protagonismo político dele. Não é um erro de cálculo ou má gestão, é uma estratégia. Ou seja, ele aposta no desarranjo como uma forma de reposicionar os Estados Unidos como centro absoluto da ordem mundial, mesmo que isso signifique isolar aliados.
Já o caso do Charlie Kirk escancara uma fissura que estava latente. Quando um ideólogo como o Charlie Kirk, que sempre propagou e tem falas racistas, misóginas, ataques à diversidade, passa a ser considerado um moderado por setores ainda mais radicais, isso é sinal de que a ultradireita está se alimentando dela mesmo.
Esses grupos mais violentos e sectários, nascem e são nutridos nos espaços digitais como o 4chan, Discord e Telegram, eles passam a ter e cobrar uma posição cada vez mais extremada. Isso cria uma espiral em que a violência não é consequência, mas acaba virando um pré-requisito de pertencimento dessa ultradireita, desses grupos radicais.
É uma corrida pelo fundo do poço, no sentido em que esses grupos, para ganhar notoriedade e para ganhar essa identidade reconhecida, se manifestam através dessa radicalização, nessa competição pela radicalização, para que possam ocupar esse posto. O que eles tentam ter orgulho de ser chamados de ultradireita, de uma direita conservadora, mas que, na verdade, é uma direita ultrarradical.
Pensando na conexão da extrema direita com as Big Techs, esses atores pretendem transformar a política como a conhecemos, disputar espaço institucional, ou preferem seguir apenas como forças de influência? Para onde esse movimento aponta?
As Big Techs hoje são parte fundamental do ecossistema que nutre a ultradireita. Plataformas como YouTube, Twitter, Instagram e Facebook foram e continuam sendo um terreno fértil, onde essa radicalização se espalha, muitas vezes com o incentivo dos próprios algoritmos, que amplificam o discurso de ódio porque gera engajamento.
Mesmo quando há medidas de contenção, elas são seletivas e muito tardias, não resolvem nada. Então, essas empresas sempre tentaram se apresentar como neutras. Hoje, nem mais elas se apresentam como tal e, na prática, elas lucraram com essa infraestrutura do ódio, da desinformação, que ajudou a catapultar o Trump e a ultradireita. O governo Trump permite que elas consigam fazer o que fazem, mas elas não veem um governo do tipo Trump ou Estado americano como um aliado para sempre. Elas se veem acima de qualquer Estado, acima de qualquer governo e estão em processo de concretizar esse plano de serem supranacionais. E o único governo que vai permitir isso é o governo Trump, porque entende que esse estado das Big techs é quem vai favorecer esse tipo de ideologia, esse tipo de governo, para se manter eternamente no poder.
O preço a ser pago é ver as Big Techs se tornando ainda maiores e mais poderosas, até o ponto em que não vão mais se submeter ao governo ou ao Estado americano. Elas vão se enxergar acima de qualquer decisão estatal ou judicial. Hoje, portanto, as Big Techs veem no governo Trump apenas um meio para alcançar esse objetivo: consolidar-se como entidades supranacionais, acima de qualquer governo.
Como o julgamento do Bolsonaro está sendo visto e recebido nos Estados Unidos?
O julgamento do Bolsonaro tem sido acompanhado de perto pelo governo americano. Vale destacar isso porque, para o cidadão comum nos EUA, o Brasil praticamente não existe no mapa. É triste dizer, mas o Brasil está na periferia da atenção e do discurso americano.
Já o governo, sim, está preocupado, vê na condenação um sinal de que o país está disposto a enfrentar suas próprias ameaças autoritárias. Para setores democráticos, é um exemplo de como instituições podem e devem reagir diante de líderes que atentam contra a ordem democrática. Isso contrasta fortemente com a paralisia americana em relação a Trump, e fragiliza ainda mais a imagem dele no exterior.
A comparação é inevitável: se o Brasil consegue responsabilizar um ex-presidente de extrema direita por atentar contra a democracia, por que os Estados Unidos, que se apresentam como exemplo democrático para o mundo, não conseguem fazer o mesmo com Trump? Essa simetria incomoda muito o ex-presidente americano.
Trump se vê no destino de Bolsonaro. Ele sabe que não pode se reeleger indefinidamente e enxerga na punição do brasileiro um possível futuro para si. Por isso busca deslegitimar o processo contra Bolsonaro, criando a percepção de que qualquer condenação é injusta. É a mesma estratégia que ele usa hoje: atacar juízes constantemente, exceto a Suprema Corte, onde tem maioria conservadora com três indicados seus. Já os juízes das instâncias mais baixas, que barram suas ações, viraram alvos frequentes dos ataques dele.