Já dizia o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues que “o pior cego é o míope, e pior que o míope é quem enxerga bem mas não entende o que enxerga”. Atuando como correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo desde 2000, percorri mais de 70 países, viajei com papas, chefes de Estado, secretários-gerais da Organização das Nações Unidas (ONU), visitei campos de refugiados, acompanhei resgates de vítimas de conflitos, apertei a mão de criminosos de guerra e de heróis.
Em praticamente todas essas ocasiões, nas diferentes culturas, religiões e línguas que conheci, sempre que eu me apresentava como brasileiro meu interlocutor abria um sorriso e fazia um comentário sobre a camisa amarela mais conhecida do planeta. Lembro-me de estar no interior da Tanzânia, um país da África oriental, numa reportagem sobre a falta de remédios essenciais para a população. Mas, num bar miserável, um pôster na parede mostrava, com um orgulho surreal, a imagem de Cafu levantando a taça da Copa de 2002. Como é que aquele pôster tinha ido parar ali, se nem mesmo existiam voos ou estradas asfaltadas que levassem até o local?
Nesse périplo pelo mundo, um fato sempre me surpreendeu: como nós, brasileiros, somos identificados pela nossa seleção. Sim, trata-se de uma visão simplória, injusta, estereotipada. O Brasil é muito mais que isso. Mas essa realidade revela também que aquela camisa amarela faz parte de nossa identidade e vai muito além de representar um time de futebol. Faz parte de quem somos no mundo, gostemos ou não.
Na fronteira entre meu trabalho diário de repórter e uma curiosidade intelectual, estabeleci como objetivo entender o que está por trás do que eu e milhões de torcedores enxergamos em campo. Por trás do que sentimos.
O que eu descobriria pouco a pouco é que aqueles senhores que controlavam o futebol mundial também espoliavam nossas emoções. Aqueles que zelavam pela nossa identidade nacional, no fundo, a exploravam.
O futebol foi sequestrado e se transformou em uma máquina de fazer dinheiro para um grupo pequeno de oligarcas.
Nelson Rodrigues insistia em apontar que a vitória do Brasil na Copa de 1958 dera um desfecho aos longos anos em que vivemos um “complexo de vira-lata”, um período de Jeca Tatu, de baixa autoestima. “O brasileiro se punha de cócoras diante do mundo. Isso aconteceu no curto período entre 1500 e 1958, de Cabral a Garrincha”, escreveu o cronista. Para 2014, os governantes colocaram de novo como meta o fim desse complexo de vira-lata, mostrando ao mundo que o Brasil fazia parte das nações civilizadas e que era capaz de organizar grandes eventos.
De fato, a Copa foi um teste para a imagem internacional do Brasil. Que se revelou diferente daquela que os dirigentes fizeram questão de pintar. O que esteve em jogo foi nossa capacidade de questionar e cobrar os dirigentes, de não permitir que estádios públicos fossem contemplados com nomes de políticos. Também foi testada a capacidade de a sociedade pressionar para que esses eventos beneficiassem a todos – não apenas um grupo de dirigentes e seus cúmplices na política. O Brasil confrontou a si mesmo no espelho e, sem complexos, mostrou ao mundo que ser o “país do futebol” não é sinônimo de ser o país dos tolos.
Assim que a Copa de 2014 terminou, a Fifa fez as malas e partiu para seu empreendimento seguinte. Mas a revolta que começou nas ruas brasileiras contra a entidade seria o início de um processo muito mais amplo de oposição à organização. De maneira indireta e inesperada, foram os protestos de 2013 no Brasil que chamaram atenção de dirigentes estrangeiros e mostraram que não havia mais lugar para tolerar esquemas corruptos. Que democracias não poderiam mais se aliar ao futebol sem prestar contas aos torcedores-cidadãos.
Até mesmo um dos candidatos à presidência da Fifa, com eleição marcada para fevereiro de 2016, Jérôme Champagne, admitiu isso. “A Copa no Brasil foi um sinal de alerta claro para a Fifa”, reconheceu.
O sentimento de indignação seria confirmado menos de um ano depois do fim do Mundial de 2014. Em 27 de maio de 2015, uma operação das polícias suíça e americana contra dirigentes do futebol fez desmoronar um império.
O ressentimento de países como os Estados Unidos e a Inglaterra, por terem perdido o direito de sediar as Copas de 2018 e 2022, pode ter influenciado a iniciativa da Justiça americana. Mas a ação só foi possível quando ficou claro que a credibilidade da Fifa era inexistente entre milhares de torcedores do mundo inteiro, inclusive aqueles – os brasileiros – que têm o futebol como parte de sua identidade nacional.
Ao final de 2015, enquanto estamos vendo José Maria Marin, ex-presidente da CBF ser extraditado, não se pode ainda prever o destino de cada um dos cartolas indiciados pela Justiça dos EUA. Mas a única certeza é de que o golpe foi profundo.
Os advogados da Fifa
Hoje, o império que por 40 anos comandou o futebol está desgovernado. A corrupção deixou o futebol mundial sem um futuro claro, enquanto patrocinadores, advogados e mesmo o Comitê Olímpico Internacional decidiram intervir para tentar socorrer a Fifa.
Numa decisão sem precedentes, a entidade suspendeu por 90 dias seu presidente, Joseph Blatter, e o secretário-geral, Jérôme Valcke. Mas anunciou também uma punição contra os dois principais candidatos ao comando da organização, Michel Platini e o magnata coreano Chung Moon-jong, que ficará seis anos afastado do futebol por tentar comprar votos para que seu país recebesse a Copa de 2022.
A decisão abriu uma disputa política feroz em Zurique e jogou o mundo do futebol em um caos diante da indefinição sobre quem assumirá a entidade a partir do dia 26 de fevereiro, data da eleição.
Criada há 111 anos, a Fifa hoje não tem um comando e mesmo seus funcionários, em comentários dentro da entidade, admitem que foi “engolida pela corrupção”.
Com seus computadores confiscados e sob a ameaça da polícia, a Fifa passou a ser de fato controlada por escritórios de advocacia. Blatter contratou a peso de ouro o advogado americano William Burck, do poderoso Quinn Emanuel Urquhart & Sullivan. Ex-conselheiro de George W. Bush na Casa Branca, Burck já defendeu políticos africanos e coleciona casos de corrupção.
Desde a prisão dos cartolas em maio, tudo passa por ele na Fifa, até mesmo as declarações à imprensa e decisões de viagens de dirigentes. O controle de segurança para acesso ao prédio também foi reforçado.
Para uma reunião regular e sorteio esvaziado do Mundial de Clubes, jornalistas foram obrigados a passar por revistas e impedidos de entrar no saguão de entrada da Fifa, aberto tradicionalmente a todos. A Fifa fechou também suas portas para turistas.
Todos os jornalistas tiveram de se registrar com dias de antecedência, malas foram abertas antes da entrada no edifício e o saguão da Fifa foi fechado à imprensa, obrigada a entrar por uma porta lateral.
As medidas foram tomadas depois que, em julho, um comediante britânico conseguiu entrar em uma coletiva de imprensa concedida por Blatter e, antes do evento, jogou notas de dinheiro sobre o cartola. As imagens rodaram o mundo e, visivelmente afetado, Blatter exigiu mudanças profundas no acesso ao prédio.
No lugar de cartolas, os assuntos do futebol passaram a ser dominados por um exército de advogados. Timothy Treanor, do escritório Sidley Austin, passou a assumir a Concacaf, enquanto o ex-vice-presidente da Fifa Jeffrey Webb recorreu a Edward O’Callaghan, ex-chefe do Combate ao Terrorismo da Unidade de Manhattan do Ministério Público americano.
Já a família de Jack Warner, acusado de receber propinas na escolha das sedes da Copa, contratou o escritório Brafman & Associates, de Nova York, responsável por conseguir retirar da prisão o ex-gerente do FMI Dominique Strauss-Kahn, em um caso de suposto assédio sexual.
O brasileiro José Hawilla foi defendido ainda pelo advogado Lewis Liman, enquanto José Maria Marin montou uma equipe com advogados da Suíça, Brasil e EUA.
Se há um ano esses dirigentes eram considerados “intocáveis” e seus negócios pessoais se confundiam com o da organização, hoje a lista de cartolas suspensos revela a dimensão da crise. Blatter, Platini, Valcke, Makudi, Webb, Teixeira, Adamu, Figueredo, Villar, Beckenbauer e Leoz foram obrigados a se afastar do futebol, escancarando o tamanho da corrosão na gestão do esporte.
Nos bastidores, as grandes multinacionais que financiam o futebol também dispararam telefonemas para pedir que uma transição rápida seja estabelecida e que não haja “um retorno de Blatter”. Todas aquelas que por décadas haviam apoiado o “sistema Fifa” hoje passaram a se preocupar com o impacto financeiro para suas marcas e, acima de tudo, com eventuais repercussões legais. No mês passado, Coca-Cola, Visa e outras empresas haviam exigido a queda do suíço.
Nos corredores da entidade, o clima é de permanente tensão. Muitos funcionários passaram a buscar outros trabalhos, na esperança de sair de um terremoto que não tem prazo para terminar. Poucos se atrevem a tomar novas decisões, e a ordem é justamente evitar novas polêmicas. Os contratos comerciais estão paralisados, e o objetivo estabelecido no início do ano pela Fifa para arrecadar US$ 200 milhões com patrocinadores para a Copa de 2018 não deve ser atingido. Afinal, quem hoje estaria disposto a assinar um contrato com uma administração sob intervenção policial?
Quem fica com o poder?
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O vácuo de poder abriu uma guerra para definir quem vai assumir a Fifa a partir de fevereiro. Sete nomes estão na disputa: um príncipe, um xeique, um ex-prisioneiro do Apartheid, um diplomata, cartolas e ex-jogadores.
Para participar da eleição, cada candidato precisava de cinco apoios, entre as 209 federações. O sistema foi criado ainda por Joseph Blatter para impedir que nomes de fora da Fifa se apresentassem, e, em diversos casos, a estratégia funcionou já que dezenas de federações temem ser punidas por dar apoio a verdadeiros opositores do sistema.
Zico, por exemplo, com um discurso que pedia uma reforma completa do futebol, acabou sendo vítima desse sistema que impede que a estrutura de poder seja questionada por um nome independente. Sua candidatura não conseguiu o apoio suficiente nem mesmo para ser validada. O ex-jogador não obteve apoio nem do Brasil nem da Conmebol.
Mas, mesmo entre aqueles que estão na corrida, o clima é de incerteza. Michel Platini foi suspenso do futebol por 90 dias diante de suspeitas de um pagamento de US$ 2 milhões entre Blatter e ele. Enquanto seu processo não for julgado, ele não pode fazer campanha.
Com Platini no limbo, a corrida está aberta e críticos da Fifa chegaram a advertir que o afastamento do francês foi uma estratégia de Blatter para criar um caos nas eleições e até impedir que elas ocorressem. Seu plano, ao anunciar que renunciaria em junho, era minar todos os potenciais nomes e mostrar que apenas ele poderia fazer a reforma necessária na entidade.
Mas seus planos desmoronaram quando a Justiça suíça abriu investigações contra ele por gestão desleal e apropriação indevida de recursos.
Agora, um dos nomes de maior influência passou a ser o do xeique Salman Al Khalifa, do Bahrein, presidente da Confederação Asiática de Futebol e até o mês passado um aliado incondicional de Platini. Com a capacidade de reunir dezenas de votos e um amplo cofre para financiar sua campanha, o xeique é um dos nomes mais fortes. Mas seu envolvimento na repressão contra dissidentes no Bahrein e a prisão de 150 esportistas e técnicos por participarem de protestos por maior democracia o colocaram em uma lista negra de entidades de direitos humanos.
O limbo vivido por Platini ainda obrigou a União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) a lançar seu secretário-geral, o suíço Gianni Infantino, na corrida. Braço-direito do ex-jogador francês por seis anos, ele foi quem tocou o dia a dia da Uefa na maior explosão de renda da entidade. Nas duas últimas semanas, porém, Infantino esteve em duas ocasiões em Doha, sede do escritório do xeique. Ambos poderiam fechar em uma candidatura única, com Infantino como secretário-geral da Fifa.
Ainda assim, seu nome é associado ao poder da Uefa, algo que nomes de diversas partes do mundo querem evitar. Um deles é o sul-africano Tokyo Sexwale, ex-prisioneiro da ilha de Robin ao lado de Nelson Mandela. Sua promessa como candidato é garantir que a Fifa não seja dominada pelos interesses europeus.
O príncipe Ali Bin Hussein, da Jordânia, é outro que se apresenta como alguém que estaria disposto a reformar a Fifa. Ele já havia sido apoiado pela Europa em maio nas eleições. Mas foi derrotado por Blatter.
Quem também assegurou sua candidatura é David Nakhid, ex-jogador de Trinidad e Tobago e visto como um “laranja” de Jack Warner, o ex-cartola do país caribenho e acusado de corrupção.
Por fim, o ex-diplomata francês Jérôme Champagne também está na corrida. Único a apresentar de fato um plano de governo para reformar a Fifa, ele se beneficia de amplo conhecimento dos bastidores do futebol e atuou por anos como assessor da Fifa. Seus críticos, porém, o acusam de ser um “homem de Blatter”, algo que ele nega.
Seja qual for o vencedor, o teste real da Fifa começará quando a nova administração assumir o poder. Ela terá de responder a perguntas que tocam na alma de uma entidade que viveu acima da lei: até que ponto a Fifa será reformada para evitar um novo abalo? Até que ponto a nova coalizão no poder aceitará rever as práticas corruptas dos últimos anos e punir os responsáveis? E até que ponto o sequestro do futebol por uma oligarquia que se enriquece com a emoção do torcedor será mantida?
As respostas a isso determinarão se a Fifa sobreviverá ou não como o governo do esporte mais popular do planeta. “O futebol, e não apenas a Fifa, está no precipício de um desastre”, resumiu Chris Eaton, ex-diretor da Fifa e hoje executivo do Centro Internacional para a Segurança no Esporte.