Buscar
Reportagem

Quilombolas denunciam exclusão do espaço de decisões na COP30

Comunidades contribuem para o combate à crise climática, mas faltam credenciais para representantes na conferência

Reportagem
6 de novembro de 2025
12:00
José Cícero/Agência Pública

A poucos dias do início da Conferência do Clima da ONU, a COP30, lideranças das comunidades quilombolas brasileiras ainda não têm acesso garantido à zona de negociação diplomática, ameaçando a participação efetiva e ampla no debate climático de um dos principais grupos que preservam a natureza no Brasil.

Centenas de quilombolas de diferentes partes do país estarão em Belém, capital do Pará, para a conferência, que começa no dia 10 de novembro. Eles vão participar de eventos na chamada zona verde, área de acesso livre destinada à sociedade civil, empresas e governos subnacionais. Os quilombolas também estarão na Cúpula dos Povos, evento paralelo à programação oficial, organizado por mais de mil organizações nacionais e internacionais.

Para a zona azul, porém, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) possui menos de dez credenciais – número muito abaixo do garantido a outros grupos, como os povos indígenas, e baixo diante da quantidade de quilombolas no país e, especialmente, na Amazônia.

A zona azul é a área restrita às delegações dos quase 200 países que fazem parte da conferência, por isso, para acessá-la é preciso estar credenciado junto à uma delegação nacional. Tradicionalmente, o Brasil vai às COPs com uma delegação grande, que inclui não só os negociadores, mas também representantes de empresas e de organizações sociais, que acompanham as negociações e procuram sensibilizar os diplomatas para suas demandas. Como as credenciais são limitadas, elas costumam ser disputadas entre diferentes atores.

“Sabemos que o espaço da zona verde vai ser liberado, mas a gente precisa que o nosso povo esteja também na zona azul, que é o espaço das negociações”, disse Biko Rodrigues, coordenador nacional da Conaq, à Agência Pública.

“Esse número [de credenciais] é baixíssimo, perante as demandas dos quilombolas e perante a nossa importância não só para o bioma amazônico, mas para todos os biomas brasileiros”, afirmou ele, que é do quilombo Ivaporunduva, um dos mais antigos do país, no Vale do Ribeira, em São Paulo.

Áreas quilombolas preservam floresta

Um estudo inédito, lançado no final de outubro pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Conaq, mostrou que 92% das áreas dos territórios quilombolas na Amazônia Legal (formada pelos nove estados da região Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão) é de florestas e vegetações nativas preservadas.

Desde 1985 até 2022, esses territórios perderam apenas 4,7% de sua vegetação original, enquanto as áreas privadas perderam 17%. Os territórios titulados perderam menos ainda: apenas 3,2%. Esses números colocam os quilombolas na liderança da preservação ambiental no Brasil, ao lado dos povos indígenas, e mostram a contribuição deles para o clima. Isso porque a vegetação em pé absorve dióxido de carbono (CO2), principal gás do efeito estufa. Quando ela é queimada para desmatar, esse gás é emitido para a atmosfera. Por isso, historicamente, a maior parte das emissões brasileiras foi causada pelo desmatamento, principalmente da floresta amazônica.

“É um índice [de manutenção da vegetação] muito bom no sentido da gente preservar, cuidar da floresta”, disse José Silvano, do território Bacabal, titulado em 1997 e localizado em Oriximiná, no Pará.

Apesar de ser da coordenação da Conaq e da direção da Malungu (Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará), até esta quarta-feira (5 de novembro), Silvano ainda não tinha uma credencial para acessar a zona azul.

“E a gente precisa mostrar isso para o mundo, para as autoridades que pensam a questão climática, para que a gente possa garantir algum tipo de retorno do ponto de vista econômico e social para que a gente possa continuar preservando”, completou ele à Pública.

“Esses territórios não apenas conservam a biodiversidade, mas também regulam o clima, protegem nascentes, evitam emissões de carbono e garantem segurança alimentar para suas comunidades”, afirma o documento elaborado pela Conaq com as demandas do grupo para as metas climáticas do Brasil.

O documento, chamado de NDC dos Quilombos do Brasil, é uma resposta à NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) do Brasil, apresentada à Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas, com os objetivos do país de reduções de emissões dos gases do efeito estufa que causam o aquecimento global.

“Quando o Estado Brasileiro escreveu sua NDC, no ano passado, ficou explícita a invisibilidade dos povos indígenas, quilombolas, do campo, da água e da floresta. Diante dessa ausência, a nossa NDC se fez necessária, para falar do nosso potencial e do que nós temos para contribuir”, afirmou Rodrigues em entrevista à Rádio Nacional dos Povos.

Essa invisibilidade corre o risco de se repetir agora no espaço formal da COP30 com a pequena quantidade de credenciais para os representantes quilombolas. Para comparação, o número de representantes indígenas brasileiros credenciados na zona azul deve chegar a 500, com 360 credenciados na própria delegação brasileira, a partir de um trabalho articulado pelo Ministério dos Povos Indígenas junto às organizações de base dos povos indígenas.

Segundo fontes ouvidas pela reportagem, ministérios e órgãos do governo federal, em especial o Ministério da Igualdade Racial (MIR), não deram a devida atenção à pauta quilombola e falharam em garantir uma maior participação do grupo na COP30. Procurados pela reportagem para esclarecer quantas credenciais serão concedidas aos quilombolas, Ministério da Igualdade Racial, Secretaria Geral da Presidência e Secretaria Extraordinária da COP30 não responderam até a publicação deste texto.

O mal estar vem desde o começo do ano, quando, em sua primeira carta à sociedade, o presidente da COP30, o embaixador André Corrêa do Lago, não citou quilombolas, nem a população negra de forma geral, nem o tema do racismo ambiental, o que provocou críticas do movimento negro.

Depois, a Conaq realizou uma pré-COP, em Macapá, no final de setembro, com lideranças de diferentes estados para fortalecer a participação quilombola nos debates da COP30. Autoridades do governo federal e o presidente da COP30 foram convidados, porém não compareceram.

“Passados já muitos anos, o estado brasileiro ainda tem dificuldade de tratar o tema da população negra”, resumiu Rodrigues à Pública.

Quilombolas: por que participar importa?

Para os quilombolas, é fundamental estar presente na área de negociação da COP30 para mostrar ao mundo a importância das comunidades na manutenção da sociobiodiversidade e da vegetação nativa e na produção de alimentos saudáveis, para assim garantir mais proteção aos seus territórios, hoje ameaçados por conflitos territoriais e sem acesso pleno a direitos básicos.

Por isso, mesmo sem credenciais suficientes, eles pretendem participar do evento e da programação paralela o máximo possível.

Nos últimos anos, os quilombolas brasileiros vem se articulando, por meio da Conaq, com outros povos afrodescendentes da América Latina, o que levou à criação da Citafro, uma coalizão internacional dos territórios afrodescendentes para uma participação coordenada nas diferentes conferências da ONU, como a do clima e da biodiversidade.

No ano passado, essa articulação obteve sua primeira grande vitória na 16ª Conferência da Biodiversidade, realizada na Colômbia, que, pela primeira vez, citou explicitamente os afrodescendentes na decisão final, reconhecendo a contribuição desses grupos para conservação da biodiversidade – a exemplo do que já acontecia para os povos indígenas.

Para organizações quilombolas e afrodescendentes, esse reconhecimento é um passo importante na proteção, pelo direito internacional, dos conhecimentos, práticas e territórios tradicionais da população, que soma mais de 153 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe.

Em junho, na conferência preparatória para a COP30, realizada na Alemanha, as comunidades afrodescendentes tiveram outra conquista: foi a primeira vez que um documento preliminar da diplomacia climática global mencionou diretamente os afrodescendentes como um grupo vulnerável e relevante para a adaptação climática e para uma transição justa rumo a economias menos emissoras de gases do efeito estufa. A Conaq considerou o texto um “marco histórico na nossa luta por justiça climática e racial”.

É para garantir que essa menção se mantenha agora nas decisões finais da COP30 que os quilombolas querem estar na zona azul. Não se trata apenas de uma questão simbólica. O reconhecimento explícito dos afrodescendentes pode possibilitar avanços em outras demandas importantes, como o financiamento direto, a ampliação da presença nas próximas conferências e o reconhecimento de práticas culturais desses grupos como essenciais para a proteção da natureza, além de dar maior proteção a eles no direito internacional.

A presença na conferência também é relevante para que o governo incorpore a titulação de territórios quilombolas como uma política nacional de redução das emissões – uma demanda comum aos povos indígenas, que também pedem o reconhecimento da demarcação de Terras Indígenas como política climática oficial.

“Se a COP fosse só uma questão comercial, o presidente Lula podia ter levado para São Paulo. Mas a COP, além de olhar o futuro, olha todo o equilíbrio da balança climática. Por que está em Belém? Porque é onde a maioria do nosso povo predomina, onde há uma grande diversidade cultural, lá tem indígena, quilombola, seringueiro, pescador, que são responsáveis por proteger todo aquele bioma”, disse Rodrigues à Rádio Nacional dos Povos.

‘Invisibilizados’ para além da COP

Mais de 1,32 milhão de pessoas se identifica como quilombola no Brasil, o equivalente a 0,65% da população nacional. Elas estão presentes em 24 estados, sendo que o Pará, sede da COP30, é o quarto estado com a maior população, segundo dados do Censo Nacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022.

Apenas na Amazônia Legal, a Conaq e o ISA mapearam 632 territórios quilombolas, quase quatro vezes o número registrado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão do governo federal responsável pela titulação dessas áreas. Juntos, esses territórios somam mais de 3,6 milhões de hectares (uma área equivalente ao tamanho de Alagoas), 88% a mais do que os dados públicos oficiais.

“A invisibilidade nos dados oficiais é uma das expressões mais graves do racismo ambiental. Quando o Estado não reconhece esses territórios, nega às comunidades o direito à terra e desconsidera o papel que elas cumprem na proteção da floresta”, afirmou Antonio Oviedo, pesquisador do ISA e um dos autores do estudo.

No entanto, apenas 160 territórios na Amazônia Legal estão titulados integralmente. No Brasil como um todo, há 347 territórios em processo de regularização fundiária para a obtenção do título. No Incra, são mais de 1,9 mil solicitações para a identificação e regularização de áreas ocupadas por quilombolas no país. Cálculo da organização Terra de Direitos aponta que, no ritmo atual, a titulação total das terras quilombolas pode levar mais de 2 mil anos.

Edição:
José Cícero/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública
Joedson Alves/Agencia Brasil

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Vale a pena ouvir

EP 46 COP30: está dada a largada

Podcast comenta últimos preparativos para conferência e tensões na reta final

0:00

Leia de graça, retribua com uma doação

Na Pública, somos livres para investigar e denunciar o que outros não ousam, porque não somos bancados por anunciantes ou acionistas ricos.

É por isso que seu apoio é essencial. Com ele, podemos continuar enfrentando poderosos e defendendo os direitos humanos. Escolha como contribuir e seja parte dessa mudança.

Junte-se agora a essa luta!

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes