“Quando a nossa história chega, é possível desfazer os preconceitos”, diz autora Glicéria Tupinambá
“Os donos da terra” aborda em quadrinhos episódios históricos e recentes da luta dos Tupinambá da Serra do Padeiro no sul da Bahia
As sete histórias retratadas nesta HQ colocam uma lupa na Serra do Padeiro, no sul da Bahia, região que revela uma resistência indígena que extrapola o local, muito mais ampla, que não se deixa abater, mesmo diante de um governo anti-indígena. “Desde que os Tupinambá da Serra do Padeiro e eu iniciamos nossa relação de pesquisa, há dez anos, temos experimentado diferentes linguagens para comunicar os dados e análises produzidos. Em 2016, o Vitor Flynn, que assina a arte do livro, publicou Xondaro, também pela Editora Elefante, debruçando-se sobre a mobilização dos Guarani Mbyá em São Paulo. A boa recepção do livro é um dos fatores que nos animou a produzir Os donos da terra. Com essas sete narrativas, procuramos navegar por aspectos da memória social, da territorialidade e da cosmologia tupinambá, reconstituindo lances da mobilização política recente e episódios mais recuados, contribuindo para a desconstrução da historiografia hegemônica e da memória oficial”, explica Daniela Alarcon, antropóloga e uma das autoras do livro junto com Vitor Flynn, quadrinista e ilustrador e Glicéria Jesus da Silva, mais conhecida como Glicéria Tupinambá, uma das lideranças da aldeia Serra do Padeiro.
Desde 2004, os Tupinambá vêm realizando ações diretas conhecidas como retomadas de terras, que se converteram na principal estratégia política do povo. O processo de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença foi iniciado há mais de 16 anos e, mesmo comprovada a tradicionalidade da ocupação indígena e cumpridos todos os requisitos, ele ainda não foi concluído, violando-se reiteradamente os prazos legais. “Sob o atual governo, as tensões e violações pioraram muito”, explica Daniela. “Em janeiro de 2019, veio à tona um intrincado plano visando o assassinato do cacique Babau (Rosivaldo Ferreira da Silva, irmão de Glicéria) e de outros parentes. Em outubro do mesmo ano, tornou-se público que o presidente da Embratur estava fazendo lobby para a construção de um resort pelo grupo português Vila Galé em plena terra indígena. São só dois exemplos, mas, desde a eleição de Bolsonaro, o quadro só se deteriorou”, diz a antropóloga.
Na prática, a pesquisa de Daniela que deu origem ao roteiro da HQ enfatiza que a luta dos Tupinambá da Serra do Padeiro também é muito bem-sucedida. “Em minha pesquisa de doutorado, concluída em fevereiro deste ano, fiz um levantamento fundiário que mostra que, antes das primeiras retomadas de terras, os Tupinambá da Serra do Padeiro detinham menos de 10% da área que conforma a aldeia. Hoje, 95 ações de retomada depois, tendo recuperado cerca de 5 mil hectares, eles estão em posse de pouco menos de três quartos da extensão da aldeia. Na pesquisa, pude etnografar como numerosos parentes que estavam na diáspora, em função do esbulho, puderam finalmente retornar”, conta.
Na ponta dessa luta, está a outra autora do livro, Glicéria Tupinambá, que por sua atuação na luta pela terra, em 2010, foi encarcerada, junto a seu bebê de colo, o que suscitou veementes críticas de entidades do Brasil e do exterior. Em 2019, pronunciou-se na 40a Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, denunciando as violações de direitos contra povos indígenas pelo Estado brasileiro. Glicéria é uma das lideranças da aldeia Serra do Padeiro e professora no Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (CEITSP). Com Cristiane Julião, do povo Pankararu, dirigiu o documentário Voz das Mulheres Indígenas (2015), premiado pelo público do Festival Cine Kurumin em 2017. Ela enviou à Agência Pública o seguinte depoimento:
“Ser uma das autoras do livro, desenvolvendo a pesquisa junto à Daniela, significa realizar o sonho de minha mãe [Maria da Glória de Jesus]. Porque ela fala que as histórias da gente dariam um livro… Ela sempre falava que, se ela soubesse ler e escrever, ela escreveria nossas histórias. Nós somos uma família muito grande. E mainha sempre fez um esforço enorme para nós estudarmos, ela sempre lutou para que pudéssemos frequentar a escola [Glicéria está avançada na Licenciatura Intercultura Indígena no IFBA – campus Porto Seguro, pesquisando a revitalização da língua na aldeia e a reconstrução do manto de penas tupinambá].
É muito prazeroso acompanhar os pesquisadores que surgem aqui na aldeia, contar a nossa história, relatar a nossa luta. É muito prazeroso ver a nossa história impressa no papel. E ser coautora, assinar junto, é mais emocionante ainda. É uma parceria, uma junção de conhecimentos, de sensibilidades e entendimentos – e a sensibilidade de cada um é imensurável. É uma forma de mostrar o que sentimos e buscamos. Não tenho palavras para descrever a emoção que eu sinto ao ver essas narrativas tomando forma em imagens. Penso que o livro vai ter um retorno muito positivo, não só para a luta, mas para nós, em nosso dia a dia, em nossos estudos. No momento, eu estou escrevendo um livro infantil. Eu descobri que quero escrever.
O maior desafio para o nosso povo hoje é a conclusão do processo de demarcação do nosso território [Terra Indígena Tupinambá de Olivença]. Mesmo que o processo não tenha chegado ao fim, nós não paramos de trabalhar, de plantar, de cultivar a terra, cuidar das nossas crianças, da fauna e da flora, que precisam de defensores, do ambiente. É isso que nos fortalece, que nos mantém em pé e nos dá saúde. Quando nós cuidamos da nossa mãe natureza, ela retorna para nós. Mesmo enfrentando todas as adversidades, nós fazemos esse processo no nosso território, mesmo enfrentando pressões, ameaças de morte, perseguições. Se você chegar à aldeia, vai ver a roça plantada de feijão, de milho, o pessoal arrancando mandioca, fazendo farinha, colhendo os pomares… A luta vale muito a pena. Não vamos desistir, mesmo que os desafios sejam maiores que a gente, porque os nossos encantados sempre estarão junto, nos guiando. Nós não lutamos por nós, nós lutamos por algo maior, nós lutamos para além de nós, para além das pessoas. A luta faz todo sentido quando você luta pelos encantados, pelo lugar sagrado, pela morada dos encantados. Nunca desistimos de defender a nossa história e defender o nosso povo, principalmente os encantados, porque eles nos põem de pé todos os dias.
Os impactos do livro já estão acontecendo. Quanto mais pessoas conhecerem a luta, mais pessoas se sensibilizarão pela causa e entenderão o que a gente está fazendo, o que pode nos ajudar a conseguir aliados, parceiros para a luta, dos quais precisamos cada dia mais. Quando a nossa história chega, é possível entender e desfazer os preconceitos. E essas histórias são as histórias de outras pessoas também – outras pessoas passaram e passam pelo que nós passamos. Elas vão poder se ver nas narrativas. Tem muito impacto ter esse livro publicado, saber que escolas terão acesso. Isso coloca outro lugar para os povos indígenas no Brasil. Não vai ver só aquela história de “era uma vez…”, “aqui existiam povos indígenas”, não vai ser no verbo passado, vai estar no verbo presente. As pessoas que tiverem esse livro nas mãos poderão ver a realidade que os povos indígenas vivem. Se você for para o Amazonas, o Mato Grosso, a Bahia, você vai ver povos indígenas sendo massacrados e lutando até os dias de hoje”.
A briga do arreal
A primeira HQ de Os donos da terra é a principal história do livro. Segundo Daniela, ela trata de um conflito em andamento, já que a exploração de areia “segue ocorrendo, violando os direitos tupinambá e piorando os impactos socioambientais”. Ao mesmo tempo, ela diz, “nos permitiu explorar dimensões históricas e cosmológicas da atuação política tupinambá, inserindo as ações recentes em uma temporalidade mais profunda”.