“Oi vizinhos, como vocês estão na quarentena? Eu tô bem, junto da minha família”, diz um adolescente à câmera enquanto segura placas que dizem o contrário. “Estamos sendo machucados”, lê-se em uma delas. O vídeo termina com a indicação de canais de denúncia para violência doméstica e faz parte de uma campanha do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) veiculada em rádios, TVs, jornais impressos e na internet – especialmente em canais de YouTube.
Segundo levantamento da Pública, o ministério investiu R$ 270.814,04 de dinheiro público por meio do sistema de anúncios do Google – Google Ads – na divulgação da campanha contra violência doméstica em 119.251 canais de YouTube no período de 1o a 28 de maio de 2020. Além da plataforma de vídeos, as redes sociais Facebook, Instagram e Twitter também veicularam anúncios, adicionando R$ 522.256,81 de gastos à pasta.
A reportagem examinou os 450 canais de YouTube que mais receberam verbas do MMFDH no período. Juntos, receberam R$113.484,27 e foram visualizados 8,6 milhões de vezes, gerando 1,45 milhões de cliques – uma taxa de interação de 16,4%.
Os anúncios contra a violência doméstica foram veiculados em 100 canais de música, 72 de videotutoriais, 62 videoblogs ou vlogs e 43 de entretenimento. A reportagem constatou ainda que a campanha foi impulsionada em pelo menos oito canais que publicaram conteúdos desinformativos, seis canais religiosos e três que foram excluídos ou banidos do YouTube por violação das regras.
Muitos deles foram beneficiados também em campanha da reforma da Previdência, promovida pela Secretaria de Comunicação do Governo (Secom), veiculada entre junho e agosto do último ano. Na época, o governo patrocinou campanhas para canais infantis, religiosos e investigados pela Justiça, como mostrou levantamento da Pública.
Os dados foram obtidos em agosto pela Fiquem Sabendo, agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI).
Campanha voltada para religiosos
O MMFDH utilizou a plataforma Google Ads para a veiculação de campanha contra a violência doméstica no YouTube. Nela, anunciantes podem delimitar o público-alvo para suas campanhas e os tipos de canais onde suas propagandas serão exibidas. “Você pode segmentar para quem você quer que o anúncio apareça. Você consegue segmentar idade, pessoas, região, assuntos e uma série de segmentações que o Google oferece”, explica Ildeberto Rodello, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP em Ribeirão Preto (FEA-RP).
A segmentação escolhida pelo MMFDH fez com que a campanha fosse veiculada principalmente em canais de música. Dos 450 principais canais que mais receberam repasses, 100 eram desse tipo e apresentaram o anúncio mais de 2 milhões de vezes. Entre eles, 25% eram de música gospel ou religiosa.
Foi também em canais de música que a campanha contra a violência doméstica teve mais interações – a cada cem pessoas que assistiram à propaganda nesses canais, 29 clicaram no anúncio.
A segunda categoria que rendeu maior taxa de interação com a campanha foi a de canais religiosos. Entre 1o de maio e 28 de maio, mais de 132 mil acessos aos vídeos do MMFDH foram feitos em seis canais desse tipo – com faturamento de R$ 1,8 mil. A cada 100 pessoas, 25 clicaram com os anúncios.
Canais de música gospel tiveram taxa ainda maior – 32% – e trouxeram à campanha contra a violência doméstica mais de meio milhão de visualizações, com um faturamento de R$ 7.338,69 em dinheiro público.
Rodello entende que pelas segmentações disponibilizadas pelo Google é possível que a campanha tenha sido direcionada a um público-alvo com interesse em religião. Contudo, especialmente após a Lei Geral de Proteção de Dados – que entrou em vigor em setembro e estabelece limites para o uso de informações pessoais –, acredita que “esse tipo de segmentação não deveria ser feito”.
Entre os canais associados a religião que veicularam os anúncios do MMFDH está o da gravadora gospel MK Music. A empresa pertence ao grupo MK de Comunicação, da família do senador bolsonarista Arolde de Oliveira, investigado no inquérito que apura a organização de atos antidemocráticos. O grupo MK administra vários veículos de mídia, como a Rádio 93 FM e o site Pleno.News, um dos que mais disseminam desinformação, conforme apurado por esta reportagem da Pública.
A gravadora ainda foi recentemente acusada de romantizar a violência doméstica em um clipe musical de uma de suas artistas, Cassiane. Na produção, uma mulher sofre agressões do marido alcoólatra, mas entrega uma bíblia e um bilhete dizendo que o perdoa, em vez de denunciar o agressor. Depois das críticas, uma nova versão do clipe foi lançada. Nele, a mulher denuncia e mais tarde perdoa o marido.
“Jamais romantizaríamos qualquer crime. Violência contra mulher é crime e repudiamos veementemente. Inclusive, consta no referido clipe todas as referências para denunciar através do Disque 180”, respondeu a gravadora, omitindo que a primeira versão do clipe não continha o canal de denúncia.
O clipe foi lançado em julho, dois meses depois de o canal da MK Music ter veiculado os anúncios do MMFDH contra violência doméstica, atingindo 121 mil pessoas, com um faturamento de R$ 1.651,27. Foi o terceiro canal de YouTube que mais recebeu pela campanha.
Em resposta à reportagem, o grupo MK disse que “não procede” a informação de que receberam dinheiro público em seu canal de YouTube, alegando que “a distribuição de anúncios de qualquer natureza e o direcionamento aos canais ou vídeos são de competência exclusiva do YouTube”.
Sobre a acusação de disseminação de desinformação pelo grupo, a empresa respondeu que a gravadora MK Music “há mais de 35 anos trabalha levando mensagem de paz, amor e fé através da música, com seriedade, idoneidade, respeito e credibilidade”.
Pelo AdWords, o MMFDH financiou canais de desinformação e associados a atos antidemocráticos
Além do grupo MK, outros oito canais associados à disseminação de desinformação foram beneficiados pela campanha do MMFDH. Juntos, eles apresentaram os anúncios contra a violência doméstica mais de 122 mil vezes e receberam R$ 1,6 mil do governo.
Destes, o canal mais beneficiado foi o DR News, que veiculou a campanha mais de 20 mil vezes e atingiu um faturamento de R$ 303,55 em dinheiro público. “Descoberto o plano internacional contra o povo brasileiro”, diz um vídeo do canal, no qual apresenta fala do deputado Osmar Terra, um dos políticos bolsonaristas que negam a gravidade da pandemia de coronavírus no Brasil.
Grande parte dos canais desinformativos beneficiados pela campanha do MMFDH é partidária do presidente. O canal Brasil Acima de Tudo, que rendeu 21 mil visualizações à campanha do MMFDH e faturou R$ 241,50, classifica Bolsonaro como “um dos maiores fenômenos eleitorais da história”.
Já o Vista Pátria, que apresentou anúncios contra a violência doméstica mais de 12 mil vezes e faturou R$ 146,77 de dinheiro público, mantém relações próximas com o presidente. Em 23 de maio, enquanto a campanha era veiculada, o youtuber responsável pelo canal, Allan Frutuozo, se reuniu com Jair Bolsonaro, a quem chamou de “o único líder legítimo aqui da pátria”, e gravou um vídeo chamando para manifestações em favor do presidente e contra as instituições.
Procurados, os canais DR News, Brasil Acima de Tudo e Vista Pátria não responderam até a publicação da reportagem.
Também está associado aos atos antidemocráticos o Foco do Brasil, que gerou 13.694 visualizações aos anúncios do MMFDH e recebeu R$ 194,73. Apesar disso, em sua descrição no YouTube o canal diz que “não recebe e nunca recebeu nenhum recurso financeiro de políticos, empresários ou quem quer que seja”.
Com 2,25 milhões de inscritos, o canal posta vídeos de Jair Bolsonaro e de um jornal denominado JB News, que comenta as principais notícias do dia sob a ótica bolsonarista. Um vídeo publicado em maio mostrou durante seis minutos atos em apoio ao presidente e contra as instituições, e o apresentador afirma que “manifestações de apoio a um presidente não foram vistas no Brasil desde as Diretas Já”. A informação é falsa. Em 2016, milhares de pessoas foram às ruas em apoio à presidenta Dilma, que sofria processo de impeachment.
O Foco do Brasil, que deletou vídeos e mudou de nome, é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em inquérito que apura a organização de atos antidemocráticos desde maio, período em que circulou a campanha. Questionado, o canal disse que está colaborando com as investigações e para a reportagem “não se preocupar quanto a isso”.
Quando questionado sobre a veiculação de anúncios do governo, o canal acusou a reportagem de “não dominar o assunto pelo qual está perguntando”.
Disseram ainda que “nenhum criador de conteúdo na plataforma tem qualquer ingerência sobre os anúncios veiculados pelo YouTube via Google Ads. Também não temos a possibilidade de estabelecer filtros sobre isso”. No entanto, o YouTube permite que canais bloqueiem anúncios de categorias ou de anunciantes específicos, conforme explicam no suporte da plataforma.
Sobre o assunto, a reportagem consultou também o pesquisador Ildeberto Rodello, que explicou que, apesar de o Google Ads não permitir que os canais escolham que anunciantes exibirão vídeos em seus canais, “eles saberiam quais anúncios foram exibidos [em seus vídeos]”.
MMFDH repetiu erros da Secom em campanha
Além da campanha de enfrentamento da violência doméstica, o Foco do Brasil veiculou anúncios governamentais da Nova Previdência promovidos pela Secretaria de Especial de Comunicação Social do governo federal entre junho e agosto de 2019, quando ainda se chamava Folha do Brasil. O canal exibiu a campanha mais de 57 mil vezes e faturou R$ 726,25 de dinheiro público na ocasião.
Mais de 3,7 mil canais veicularam as duas campanhas – 3,1% de todos os canais beneficiados pelo MMFDH. Entre eles estão canais envolvidos em problemas judiciais distintos, como o do youtuber Renato Garcia, investigado por posse ilegal de armas, munição e drogas, encontradas em sua casa em maio de 2019. Ele veiculou os anúncios governamentais mais de 170 mil vezes e faturou R$ 2.097,16 com as duas campanhas.
Outro exemplo é o Fran para Meninas, canal que recebeu R$ 1.084,34 por 91 mil acessos no anúncio da Nova Previdência e R$ 129,15 por 8,6 mil acessos na campanha do MMFDH. O canal está sendo investigado pelo Ministério Público (MP) pelo que o Conselho Tutelar chamou de “exposição vexatória e degradante” de crianças, como revelou a revista Veja em maio deste ano.
Procurados, os canais Fran para Meninas e Renato Garcia não responderam até a data de publicação da reportagem.
As duas campanhas direcionaram recursos públicos também a canais que foram banidos do YouTube por violação das regras da plataforma. O YouTube exclui conteúdos que violam direitos autorais ou disseminam discurso de ódio, entre outros. No total, R$ 3.321,33 foram gastos com esses conteúdos.
Segundo estudo conduzido pela Universidade de Oxford, a maioria de sites e canais de baixa credibilidade utiliza o Google AdWords como sua principal forma de faturamento. Isso porque “grande parte desses veículos são de acesso gratuito, enquanto a mídia tradicional se esconde atrás de paywalls”, explica Emily Taylor, pesquisadora do Instituto de Internet da universidade.
Por isso, empresas e governos precisam atentar para os tipos de sites e canais que estão financiando por meio de anúncios. “Que tipo de empresa você está mantendo online? Com que sua mensagem está sendo associada?”, questiona a pesquisadora.
Rodello concorda: “O governo não deveria veicular anúncios em canais que sejam de outro propósito, que tenham fake news e não sejam sérios”. A campanha da Nova Previdência promovida pela Secom gerou investigação na Polícia Federal (PF) para apurar se a publicidade governamental estaria sendo utilizada para financiar sites que apoiam o governo. No mais recente relatório da PF, a delegada Denisse Dias Ribeiro afirmou que o objetivo da investigação é identificar se o governo federal agiu por ação deliberada ou omissão no financiamento das páginas, conforme noticiou o jornal O Globo. O secretário Fábio Wajngarten, chefe da Secom, responsabilizou o Google pela veiculação dos anúncios em sites de desinformação.
O mesmo relatório indicou que existem “vínculos, ainda não totalmente esclarecidos”, entre o grupo investigado por relação com os atos antidemocráticos e o MMFDH, comandado por Damares Alves.
O MMFDH não respondeu sobre a segmentação utilizada na campanha de enfrentamento à violência doméstica veiculada no Youtube. Também não pronunciou sobre as investigações da PF sobre a associação do ministério com atos antidemocráticos.
Campanha foi veiculada em outras redes sociais
Além do YouTube, a campanha de conscientização contra a violência doméstica foi veiculada em outras plataformas, que foram identificadas pelo MMFDH como “sites” – incluem redes sociais, plataformas de rádio e podcast e outros sites de distribuição de conteúdo.
Entre as redes sociais, o Instagram foi o que mais recebeu dinheiro do governo; apresentou a campanha 45.650.063 vezes entre 1o e 28 de maio de 2020 e recebeu mais de R$ 215 mil por isso, com 0,17% de taxa de interação.
O Facebook aparece em seguida, tendo veiculado o anúncio cerca de 44 milhões de vezes, com 0,57% de taxa de interação no período, o que rendeu mais de R$ 170 mil de dinheiro público. O Twitter gerou a maior taxa de interação (5,13%) e trouxe à campanha mais de 11 milhões de visualizações por quase R$ 150 mil.
Além dos anúncios nas redes sociais, o MMFDH veiculou uma versão em áudio da campanha contra violência doméstica em plataformas de distribuição de conteúdo, como rádios e podcasts, que também classificou como “sites”. A mais bem remunerada entre essas, a TuneIn recebeu R$ 28 mil e a menos, a Radiopolis, uma rádio colombiana em espanhol, faturou quase R$ 2.500 de dinheiro público no mês de maio.
Sete das plataformas de rádio e podcast mais bem pagas receberam mais de R$ 11 mil cada uma por apresentar a campanha do governo entre 1º e 28 de maio; gerando entre 64 mil e 160 mil impressões e 3.685 e 22.886 interações.
Após publicação da reportagem, o MDH solicitou pedido de resposta sobre seu conteúdo. O órgão diz que “o recurso destinado ao Google é pago diretamente a ele que, posteriormente, faz a remuneração dos sites. Os critérios adotados são definidos pela referida plataforma.”
Ainda, argumenta que a partir da matéria, “presume-se que o Ministério fez pagamentos diretamente aos canais, o que não aconteceu. Observamos todas as atribuições legais e institucionais para veiculação da campanha.”
No entanto, na primeira retranca do texto, “Campanha voltada para religiosos”, a reportagem explica que os anúncios ficaram a cargo da plataforma Google Ads e que os anunciantes só podem delimitar um público alvo, não os canais específicos. “O MMFDH utilizou a plataforma Google Ads para a veiculação de campanha contra a violência doméstica no YouTube. Nela, anunciantes podem delimitar o público-alvo para suas campanhas e os tipos de canais onde suas propagandas serão exibidas”, diz a reportagem.
Também durante a apuração o MDH foi procurado e questionado, entre outras coisas sobre a segmentação utilizada na campanha, ao que o ministério só respondeu após a publicação. “Reafirmamos que a seleção dos canais na internet ocorreu de forma automatizada, segundo os critérios de visibilidade dos aplicativos utilizados”, disseram.
Confira a nota na íntegra:
Solicitamos, por meio desta, direito de resposta em razão da reportagem intitulada “Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos patrocinou anúncios em canais religiosos, desinformativos e investigados pela Justiça”, assinada pelas jornalistas Ethel Rudnitzki e Laura Scofield, publicada dia 28 de setembro de 2020 pela Agência Pública.
A matéria diz que “A reportagem examinou os 450 canais de YouTube que mais receberam verbas do MMFDH no período.” Ao contrário da afirmação, o recurso destinado ao Google é pago diretamente a ele que, posteriormente, faz a remuneração dos sites. Os critérios adotados são definidos pela referida plataforma.
Diante disso presume-se que o Ministério fez pagamentos diretamente aos canais, o que não aconteceu. Observamos todas as atribuições legais e institucionais para veiculação da campanha.
Reafirmamos que a seleção dos canais na internet ocorreu de forma automatizada, segundo os critérios de visibilidade dos aplicativos utilizados. Portanto, não houve direcionamento de veiculação das mídias, como afirma a matéria.
Conforme a Lei nº 13.188/2015, § 1º, art. 2º, apresentamos o presente pedido de direito de resposta para esclarecer aos leitores da Agência Pública as verdadeiras informações sobre o pagamento direcionado aos canais, com igual destaque dado pelo Portal e pelo mesmo período em que a matéria foi veiculada, ou por quaisquer outros meios utilizados pelo Portal para a propagação da notícia.