Para os policiais do Distrito Federal, os militares estavam atuando com “frouxidão” na contenção dos golpistas que haviam invadido e destruído o Palácio do Planalto na tarde do dia 8 de janeiro. Já para os militares integrantes do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), os policiais estavam “exaltados” e se comportando de forma violenta. O conflito entre as versões é registrado nos documentos internos produzidos pelas duas corporações para investigar a conduta dos agentes. Na hora de assumir a responsabilidade e possíveis falhas relacionadas à invasão, os envolvidos jogam a culpa uns nos outros.
As informações são provenientes de dois conjuntos de documentos acessados pela Agência Pública: um deles apura a conduta dos agentes da Tropa de Choque da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF); o segundo, a dos militares ligados ao Comando Militar do Planalto (CMP). Os documentos foram enviados à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro de 2023, depois de aprovado requerimento do Deputado Delegado Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência do governo de Jair Bolsonaro (PL).
Sequências de desentendimentos
De acordo com o relatado, o primeiro conflito entre a PMDF e o Exército ocorreu ainda na entrada do Palácio do Planalto, quando as duas forças se uniram. Um dos policiais militares, por exemplo, diz que, nesse momento, teve que forçar os militares a “combater os vândalos”, já que, quando teria pedido ajuda, os integrantes da guarda presidencial teriam respondido que não poderiam atuar. Ele alega que, por isso, a PMDF teria sido obrigada a recuar, uma vez que o número de manifestantes teria superado “de forma desproporcional” o efetivo policial.
Os militares dizem que a culpa pela invasão da sede do Executivo Federal foi da “ineficiência na contenção dos manifestantes” por parte da PMDF, ainda na Esplanada dos Ministérios. Isso teria permitido “que os invasores rompessem a cerca próxima ao extremo oeste do estacionamento, adentrando às instalações do Palácio do Planalto”.
Também houve outro desentendimento entre as duas forças no Salão Nobre, no 2º andar do Palácio do Planalto. O conflito teria começado quando a Tropa de Choque adentrou o local afirmando que prenderia “todos” os manifestantes que ali se encontravam, mas teriam encontrado resistência dos integrantes da guarda, que queriam evacuar o prédio. A situação foi gravada em vídeo pelo então sargento Beroaldo Júnior e os conteúdos foram reproduzidos pela imprensa e geraram críticas à atuação do Exército.
Nos documentos, os militares tentam se justificar e dizem que a situação foi “amplamente explorada pela mídia”. Afirmam que a PMDF teria agido com “uso excessivo da força”, o que teria levado a guarda presidencial a reagir. Dois relatos ainda apontam que havia um policial com arma em punho ameaçando os manifestantes — “vai morrer gente”, teria gritado. No início de setembro, a Pública revelou que o então sargento Beroaldo Júnior utilizou munição letal contra uma pessoa que estava espancando uma policial. A informação foi omitida pela PMDF e revelada nos documentos internos acessados pela reportagem.
Responsabilidade relativa?
A conclusão do Inquérito Policial Militar (IPM) aberto pelo Comando Militar do Planalto defende os militares e reproduz um trecho da fala de um dos depoentes, o Major José Eduardo Natale, em que ele afirma que “ao contrário das ações da PMDF, a Tropa de Choque do Exército detinha controle emocional e disciplina para agir conforme prescreve a norma”. Natale ficou conhecido por ter aparecido em imagens do circuito interno do Planalto conversando e oferecendo água aos extremistas sem efetuar prisões.
Quando não a PMDF, o inquérito responsabiliza o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) pelas possíveis falhas do Exército. O órgão à época era comandado pelo General Gonçalves Dias — um dos grandes alvos dos bolsonaristas na CPMI do 8 de Janeiro. O documento diz que o “desentendimento” com a PM ocorreu em função de uma “falta de unidade de comando” do GSI, já que a ordem de prender os manifestantes chegou primeiro para os policiais, e os militares não estariam cientes até aquele momento.
Mesmo quando o Comando Militar reconhece que faltou efetivo e munição, ele isenta a guarda presidencial de responsabilidade pela invasão do prédio que deveria proteger. Ao final do inquérito, conclui que não foram encontrados “indícios de crime militar ou crime comum” entre o efetivo, mas aponta “indícios de responsabilidade” pela invasão atribuídos à Secretaria de Segurança e Coordenação Presidencial (DSeg), órgão vinculado ao GSI.
Futuro incerto
Após o fim das investigações, o inquérito passou pelo Ministério Público Militar (MPM) e agora espera julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) — em função da decisão do magistrado Alexandre de Moraes de que os militares envolvidos no dia 8 de janeiro serão processados e julgados pela corte, após investigação da Polícia Federal.
Em resposta à Pública, o Exército Brasileiro afirmou que “não se pronuncia acerca de procedimentos investigativos ou judiciais conduzidos por outros órgãos”. A Polícia Militar do Distrito Federal não retornou aos pedidos da reportagem. A alta cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal está presa preventivamente desde 18 de agosto por “omissão”. Até o momento, nenhum militar foi condenado pelo episódio.