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Para entender as altas taxas de suicídio entre os jovens indígenas é preciso levar em conta os ciclos de violência

Da Redação
14 de dezembro de 2015
09:00
Este artigo tem mais de 9 ano

Tímido, ele não olha diretamente para a câmera. Tem uma lanterna na mão para iluminar a densa noite na beira do rio Negro. Ali, quando não há lanternas, só se veem as estrelas que se apagam nas cidades grandes. Enquanto responde às perguntas de Miguel Seabra, um adulto, ele liga e desliga a lanterna, um pouco constrangido pela posição de interlocutor.

Estamos no Beiradão, nome popular dado aos acampamentos sazonais que indígenas Hupd’äh e Yuhupd’eh montam durante os meses de férias, de dezembro a março, nas beiras de praia de São Gabriel da Cachoeira. A cidade fica na região conhecida como “Cabeça do Cachorro”, no extremo noroeste do estado do Amazonas. Faz divisa com a Colômbia e a Venezuela e abriga uma população 93,2% indígena, com mais de 22 povos diferentes.

A região é marcada, historicamente, pelas missões catequizadoras empreendidas por missionários salesianos do início do século 20, que até hoje estão presentes. Além dos católicos, também estão os evangélicos. A própria cidade de São Gabriel foi fundada como missão, em 1916, pelos salesianos. Por ser região de fronteira, que se limita a oeste com a Colômbia e a norte com a Venezuela, ali também se instalaram bases do Exército Brasileiro para proteger as fronteiras da imensa São Gabriel. São mais de 109 mil km² que abrigam terras indígenas e da União, com um diminuto núcleo urbano onde a cidade realmente acontece. (Para ler mais sobre a dinâmica de São Gabriel, relembre a reportagem São Gabriel e seus demônios)

O rapaz adolescente que nos concede a entrevista improvisada no Beiradão, em fevereiro deste ano, conta que está ali com a família. “Moro em Boca do Traíra, rio Japú”, fala ele na língua Hupd’äh. A comunidade fica distante cerca de três dias de viagem numa canoa com motor e rabeta. Como tantos outros rapazes, moças, crianças, idosos e adultos, ele está ali com a família para ter acesso a documentos e benefícios sociais oferecidos pelo governo federal (bolsa-família, auxílio-maternidade, auxílio-doença, aposentadoria…). A permanência na cidade por tempos prolongados se intensificou a partir de 2004, quando foram contratados os primeiros agentes de saúde e professores da etnia. “Fizemos essa viagem para vir ver se o dinheiro da aposentadoria saiu”, diz. O dinheiro ainda não havia saído e a canoa deles, afundado. Não tinham como voltar para a comunidade, nem como pagar pela comida. O jeito era esperar.

São 452 pessoas, de 73 famílias Hupd’äh e Yuhupd’eh vivendo em 14 acampamentos em situação de extrema vulnerabilidade. As famílias Hupd’äh eram oriundas de comunidades dos rios Tiquié, Uaupés, Japu e Papuri e havia um acampamento da comunidade de Vila Fátima, que fica em Iauareté, no limite da fronteira com a Colômbia. A maior parte dessas pessoas não domina a língua portuguesa nem a maneira de lidar com as instituições burocráticas locais. Os acampamentos na beira da praia próxima ao porto da cidade não têm água potável, nem oferta de caça para se alimentarem. Ali também há alta incidência de malária, diarreia, DSTs e espaço aberto para o consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Não é difícil ouvir relatos de crianças Hupd’äh mortas por desnutrição.

Quando vão para a cidade, os Hupd'äh acampam em praias próximas ao porto de São Gabriel da Cachoeira, como essa da foto. Ao fundo, se vê o caminho do rio Negro que leva para as aldeias. Foto: Alice Riff
Quando vão à cidade, os Hupd’äh acampam em praias próximas ao porto de São Gabriel da Cachoeira, como essa da foto. Ao fundo, se vê o caminho do rio Negro em direção às aldeias. Foto: Reprodução do documentário Beiradão/Hup Boyoh

A dificuldade em retornar para as comunidades pela demora no atendimento burocrático ou por falta de meios de transporte faz com que os Hupd’äh se endividem junto aos comerciantes locais, que os ameaçam, retêm seus cartões bancários e documentos, e os forçam a trabalhar nos roçados – é a servidão por dívida, que constitui situação análoga à escravidão. A situação não é exclusiva de São Gabriel da Cachoeira como mostra a série de reportagens especiais “Favela Amazônia”, publicada pelo Estadão. Em outubro, Moisés Freire da Cunha, um dos comerciantes que atuava em São Gabriel, foi preso pela Polícia Federal com 284 cartões do bolsa família.

Suicídios de jovens indígenas no Mapa da Violência

A entrevista do início deste artigo faz parte do curta-documentário “Beiradão/Hup Boyoh”, realizado por mim e uma documentarista independente. Estivemos em São Gabriel para registrar a situação dessas famílias. Desde o início, porém, o que havia atraído minha atenção para a cidade, havia sido o alto índice de suicídios ali cometidos. Eu queria entender porque a cidade era a líder no ranking de suicídios por habitantes no Brasil, a maior parte deles cometidos por jovens indígenas.

Em 2014, o Mapa da Violência elaborado pela Secretaria-Geral da Presidência, cujo título é “Os Jovens do Brasil”, colocou São Gabriel como a cidade com maior taxa de suicídios por 100 mil habitantes no país. Através da análise de dados fornecidos pelo Ministério da Saúde até o ano de 2012,  o relatório concluiu que a taxa de suicídios aumentou no Brasil de 2002 a 2012, chegando a ser três vezes maior do que a taxa de crescimento da população brasileira no mesmo período. O documento também classificou como preocupante o significativo aumento de suicídios na região Norte, onde houve um crescimento de 77,7% nesse período.

A diferença de padrão entre suicídios da população total e da população jovem ocorre em todas as unidades da federação, mas foi também na região Norte que se constatou um grande aumento nas taxas de vitimização juvenil por suicídio. Segundo os dados do relatório, o índice mais que duplicou em relação ao restante da população. Encabeçam o ranking referente às taxas de suicídio por 100 mil jovens os estados de Roraima (12,9), Mato Grosso do Sul (12,1), Acre (10,4) e Amazonas (9,5). Em relação à população total (ou seja, jovens e adultos), as maiores taxas de suicídio por 100 mil habitantes são do Rio Grande do Sul (10,9), Santa Catarina (8,6), Mato Grosso do Sul (8,4) e Roraima (8,1).

Na listagem dos 100 municípios brasileiros com os mais altos índices de suicídio, o documento da Presidência da República atenta para o fato de que nos primeiros lugares do ranking “temos alguns municípios com taxas acima dos 30 suicídios em 100 mil casos, que é a marca de países como Lituânia ou República da Coreia, que encabeçam a listagem no nível internacional”.

Também chama a atenção nestes rankings a presença de altas taxas de suicídio em cidades com assentamentos indígenas, como São Gabriel da Cachoeira, São Paulo de Olivença e Tabatinga, no Amazonas, e Amambaí, no Mato Grosso do Sul. Em São Gabriel da Cachoeira, assim como no restante dos municípios com assentamentos indígenas (com exceção de Dourados, no MS), os suicídios cometidos por indígenas representam mais da metade no total de suicídios cometidos nestes municípios.

O documento destaca: “O total Brasil da tabela nos oferece uma primeira constatação: segundo o Censo Demográfico de 2010 tínhamos um total de 821,5 mil indígenas, o que representa 0,4% da população total do país. Mas os suicídios indígenas representam 1,0%: duas vezes e meia do que seria de se esperar pela participação demográfica. Mais ainda: esse mesmo Censo verifica que no Amazonas os indígenas representam 4,9% da população total. Mas (…) nos últimos anos, 20,9% dos suicidas são indígenas. Acima de quatro vezes que o esperado.

Em Mato Grosso do Sul, a participação indígena nos suicídios é ainda mais chocante. Enquanto eles representam 2,9% do total da população, são indígenas 19,9% das vítimas de suicídio: quase sete vezes mais.

Um último fato significativo: pelas PNADs [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE] desse período, a média de jovens indígenas de 15 a 29 anos de idade representava 26% do total da população indígena. Mas dos 475 suicídios indígenas registrados pelo SIM [Sistema de Informação sobre Mortalidade, registrado pelo SUS] nesses cinco anos, 289 eram jovens na faixa de 15 a 29 anos de idade, isto é, 60,9% do total de suicídios indígenas, mais que o dobro do que seria esperado.”

Jovens do povo Hupd'äh em um dos acampamentos do Beiradão, assistindo às gravações feitas por mim e pela cineasta Alice Riff. Foto: Alice Riff
Jovens do povo Hupd’äh em um dos acampamentos do Beiradão, assistindo às gravações do documentário Beiradão/Hup Boyoh.

No caso de São Gabriel da Cachoeira, o índice de suicídios foi de 51,2 por 100 mil habitantes em 2012. 75% dos suicídios indígenas foram de jovens entre 15 e 29 anos. Em relação aos Hupd’äh, especificamente, um levantamento feito em 2012 por pesquisadores em diferentes comunidades, documentou 25 suicídios entre os anos de 2008 e 2012 (em 2006, eram 1.500 moradores dessas comunidades). O número representa aproximadamente um terço do total de mortes contabilizadas no mesmo período em São Gabriel da Cachoeira (73 mortes entre os anos de 2008 e 2012, segundo o Mapa da Violência). A principal forma que encontram para dar fim a suas vidas são o enforcamento e o envenenamento. Até 2005, a prática do suicídio era inexistente entre os Hupd’äh.

Experiências e reflexões

A experiência no Beiradão me mostrou que para refletir acerca dos suicídios cometidos por indígenas da etnia Hupd’äh em São Gabriel da Cachoeira é importante considerar tanto as dimensões simbólicas desse povo, como a situação social a que estão submetidos hoje, com contatos mais frequentes e prolongados com a vida urbana. Um fato parece se destacar nessa realidade: a violência permeia todas as situações de convívio na cidade.

Minha impressão é de que o jovem Hupd’äh vive hoje sob tensão entre dois espaços, carregados por conteúdos simbólicos. Em um deles, eles são os moradores tradicionais da floresta, integrados às comunidades, os jovens que percorrem os caminhos da mata com os anciãos para aprender sobre a caça, a coleta de frutos e as propriedades das plantas. “Nós caçamos lá porco, cotia, nambu… Aqui é mais diferente. Só compra frango no dia do almoço.  Um ranchinho que pegou com dinheirinho. É assim aqui na cidade”, como nos contou em português o indígena Miguel Seabra, que também faz parte dessa etnia.

O outro espaço é a cidade, uma realidade em que são vistos de forma pejorativa e incômoda pelas pessoas que ali circulam. Não são aceitos. Nesse tempo e espaço que ocupam na cidade, os Hupd’äh ficam submetidos a uma lógica de extrema dependência e vulnerabilidade em relação aos atores locais. Eles são alvo de violências cometidas por comerciantes e outros moradores citadinos, por agentes públicos do governo federal e, em última instância, pela própria ausência de um tratamento social e institucional que respeite sua identidade enquanto povo indígena.

Crianças da etnia Hupd'äh brincam com estilingues e pedras na beira do rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira. Foto: Alice Riff
Crianças da etnia Hupd’äh brincam com estilingues e pedras na beira do rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira. Foto: Reprodução do documentário Beiradão/Hup Boyoh

Pois, afinal, o que há em comum entre as cidades com alta taxa de suicídio indígena no Mato Grosso do Sul ou no Amazonas? Situadas as devidas diferenças em relação ao litígio territorial e especificações culturais, existe uma grave situação de vulnerabilidade social dos povos indígenas, ligada à expulsão de suas terras ancestrais ou à atração para contextos mais urbanos – justamente por estarem ou terem sido expulsos – e à relação mambembe com os poderes locais – públicos e privados.

É por isso que o alto índice de suicídios na cidade de São Gabriel da Cachoeira e, especificamente, entre os jovens, pode ser visto como um indicador desse processo violento. Estaria nessa vulnerabilidade social a chave para entender os suicídios cometidos em São Gabriel da Cachoeira? De que maneira o discurso e a prática discriminatória a indígenas, frutos de um processo colonizador que repercute e é mantido ainda hoje, pode infligir a morte a esses corpos?

Voltei a me fazer essas perguntas no dia 27 de novembro passado ao receber a notícia de que aquele jovem que entrevistei na beira do Rio Negro havia se suicidado. Mais um.

Seja qual for a explicação completa para o suicídio de tantos jovens indígenas, o olhar precisa se abrir, e o respeito perante esses povos, prevalecer. As instituições públicas precisam garantir o tratamento que merecem de acordo com suas peculiaridades, assim como a sociedade civil, para que cada uma dessas comunidades indígenas alcance a sua autonomia de acordo com seus valores e crenças – ou tantas vidas de jovens indígenas serão perdidas, relegadas às estatísticas.

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