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Movimento apoiado por conservadores motiva sindicâncias contra professores e provoca censura nas aulas em estados e municípios onde a restrição de liberdade de expressão já é lei

Reportagem
30 de agosto de 2016
12:01
Este artigo tem mais de 8 ano

Janeth de Souza terminou de dar suas aulas de inglês no Instituto de Educação Rangel Pestana, em Nova Iguaçu, e estava a caminho de casa quando recebeu um telefonema. Deveria comparecer à Diretoria Regional de Educação Metropolitana I para responder a uma sindicância. Chegando lá, foi informada de que havia uma “denúncia anônima”: um vídeo de 40 minutos de uma de suas aulas, em que explicava aos alunos porque os professores entrariam em greve. Janeth estava sendo acusada de “doutrinação ideológica” – um termo que nunca tinha ouvido em seus mais de 30 anos de profissão.

“Sempre defendi a escola pública e ainda não me aposentei porque acredito que a gente pode melhorar a educação nesse país. Dou aula para futuros professores e acho que nada mais justo do que explicar os motivos das greves, primeiro porque isso os afeta diretamente como estudantes e segundo exatamente por serem futuros professores” diz Janeth, que ainda aguarda o resultado da sindicância aberta em novembro de 2015.

capa com aula na proporção

A alguns quilômetros de distância, outra professora, esta de geografia, também aguarda o resultado de uma denúncia feita à Vara da Infância e Juventude de sua cidade. Alice Aparecida e Silva e seus colegas professores do Instituto de Educação Estadual de Londrina foram denunciados ao Núcleo Regional de Ensino, ao Ministério Público e ao Juizado da Infância e Juventude por um advogado chamado Filipe Barros – hoje candidato a vereador pelo PRB e fundador da página “Endireita Londrina” – por causa do evento “Diversidade e Sustentabilidade”, em junho desse ano, que trouxe temas como violência contra a mulher, homofobia, transfobia e acessibilidade.

“Nós trabalhamos esses conteúdos por seis meses e esse evento foi o encerramento. Nosso trabalho foi recortado, descontextualizado e denunciado, dizendo que estávamos estimulando a erotização infantil e trabalhando a ‘ideologia de gênero’ – o que, aliás, precisamos discutir, pois não existe ideologia de gênero – porque um dos grupos de alunos, que estava trabalhando a questão da orientação sexual, levou uma drag queen para fazer uma performance na hora do intervalo. Foi uma série de atividades, mas o enfoque foi na performance da drag, que em nenhum momento ficou sem roupa, e em um pedaço de um filme chamado ‘O homossexual não é perverso, perverso é o ambiente onde ele vive’, de 1971”.

Na denúncia, à qual a Pública teve acesso, o advogado diz que o conteúdo não poderia ser abordado na escola porque o poder Legislativo do Paraná havia retirado do plano estadual de educação o “ensino da teoria de gêneros e orientação sexual” e que a educação religiosa e moral é competência da família. Alice diz que ela e os colegas receberam muito apoio dos alunos e pais e que quem passou as informações ao denunciante foi outro professor. O Núcleo de Educação está cuidando da defesa do grupo.

“O Ministério Público não se pronunciou e a Vara da Infância e Juventude pediu esclarecimentos mas ainda não se manifestou novamente. A programação aconteceu durante um período em que não tem crianças, apenas adolescentes. As manifestações homofóbicas, machistas e racistas na escola são recorrentes. Eu já ouvi de um aluno que estava mal humorada porque [eu] não tinha feito sexo na noite anterior. Trabalhar esses temas é fundamental, nós vivemos em uma sociedade bastante preconceituosa e excludente e a escola é o reflexo desse contexto”, diz Alice. E acrescenta que ela e os colegas receberam muitas mensagens de ódio nas redes sociais, “principalmente na página do advogado Filipe, onde fomos expostos. Gente dizendo que não servíamos nem pra dar aulas pra animais”. Em sua página no Facebook, o advogado e candidato a vereador propõe uma petição para a criação de um projeto de lei de iniciativa popular alterando a lei orgânica do Município “de modo a vedar qualquer política pública educacional de promoção da ideologia de gênero”.

Em Curitiba, a professora de sociologia Gabriela Viola ficou temporariamente afastada da escola onde trabalha, o Colégio Estadual Profª Maria Gai Grendel, após o vídeo de uma paródia criada por seus alunos de 1o ano do funk “Baile de Favela” citando as teorias de Karl Marx ganharem repercussão nacional. “A paródia foi uma forma que eu encontrei de fazer a sala toda participar do conteúdo que está previsto no currículo do 1o ano do colegial, estudar pensadores clássicos como Durkheim, Marx e Weber. Eles que escolheram o estilo musical, fizeram a paródia. O que a gente fez, que é um papel da Sociologia, foi pegar algo que estava pronto na sociedade, desconstruir e construir algo novo. A gente ressignificou algo que está presente na vida deles. Aí postei a música no Facebook no domingo à noite e, no dia seguinte, o vídeo já estava em um monte de páginas de direita, dizendo que era doutrinação ideológica, com discursos de ódio contra mim e contra os alunos”, conta Gabriela.

Com a repercussão, a coordenação do colégio determinou seu afastamento até que o caso fosse decidido junto ao Núcleo Regional de Educação, mas os alunos se mobilizaram para que a professora voltasse. “Quando fui mandada pra casa, não tive contato com eles e fiquei surpresa ao ver que se mobilizaram nas redes sociais, com a hashtag #FicaGabi e também em atos na própria escola. Para conter um deles, a patrulha escolar chegou a ser chamada e apareceram três carros da Rotam”, conta a professora, que voltou a dar aulas no colégio. (Leia os depoimentos das professoras na íntegra) 

Casos de professores perseguidos por “doutrinação ideológica”, conceito que vem ganhando força rapidamente como aconteceu com a “ideologia de gênero”, – leia entrevista a respeito disso aqui – têm se multiplicado por todo o país. Talvez um dos casos mais emblemáticos seja o da professora de Comunicação e Expressão Cleo Tibiriçá, na época professora da Fatec Barueri em São Paulo, e que hoje trabalha na coordenação de ensino superior do Centro Paula Souza e leciona em outra Fatec. Em outubro de 2013 ela recebeu um e-mail do advogado e fundador do movimento Escola Sem Partido, Miguel Nagib, dizendo que havia recebido uma denúncia de um dos seus alunos e que iria publicar uma série de artigos em seu site referentes à sua prática doutrinadora em sala de aula. O plano de aulas, autorizado pela direção da Fatec desde 2009, serviu como “prova” da acusação: “Tinha lá textos de Hobsbawm, Milton Santos, uma música do Chico Buarque, alguma coisa de Paulo Freire. Tinha também muitos artigos, alguns da revista Carta Capital e até alguns da Veja.”

“Eu trabalho a língua a partir de textos ancorados em um contexto geográfico, sociopolítico. Porque em geral os alunos não entendem nada de gramática e vocabulário porque a língua é trabalhada fora de contexto, aí eles morrem de tédio e não sabem fazer uma análise sintática, porque não veem como isso funciona na vida real. Quando você coloca isso como coisa viva, que dialoga com a realidade, o negócio muda de figura. Sempre funcionou, sempre tive muita adesão dos meus alunos,” explica a professora. E acrescenta: “Eu nunca tinha ouvido falar no Escola Sem Partido até então. Depois descobri que esse aluno que fez a denúncia, um rapaz de 35 anos, era ligado ao instituto Millenium e ao próprio Escola Sem Partido”, lembra Cléo.

A professora diz que respondeu ao e-mail de Nagib dizendo que não autorizava a publicação desses artigos ou a exposição pública de seu nome, mas não adiantou. “Ele ignorou minha resposta e publicou. A primeira publicação mandou com cópia pro diretor da Fatec de Barueri, para a superintendente do Paula Souza e para o governador Geraldo Alckmin, dizendo que eu fazia aquela prática com o dinheiro do contribuinte e que merecia sindicância para exoneração”, conta. Com seu nome exposto não só no site do Escola Sem Partido (ESP) mas também na coluna de Rodrigo Constantino na Veja e em diversos outros sites e blogs, Cléo diz que passou a receber mensagens de ódio nas redes sociais, ameaças na sua caixa postal telefônica, teve de mudar o endereço de e-mail institucional de tantos xingamentos que chegavam todos os dias e que sua filha chegou a ser apontada por um desconhecido que gritou “essa é a filha da doutrinadora” na universidade em que estudava. A professora lembra que apesar do apoio do Centro Paula Souza, a Fatec Barueri se recusou a fazer sua defesa pública e que algum tempo depois foi informada por um colega professor que a sindicância havia sido aberta e teve acesso à carta que seu diretor enviou a Miguel Nagib avisando da abertura do processo.

“Eu recebi mensagens dizendo que não merecia só ser presa por doutrinar jovens contra a família e contra Deus, que eu merecia morrer. Outras dizendo que eu merecia queimar no inferno, que eu era a pior espécie de professor mas que graças a iniciativas como o Escola Sem Partido eu seria exterminada”. Cleo abriu um processo contra o fundador do ESP e conseguiu na justiça que os artigos fossem tirados do ar (o artigo de Rodrigo Constantino inclusive). Pediu transferência da unidade em que trabalhava e hoje espera os resultados da sindicância e do processo que move contra Nagib.

Por dentro do movimento

O Escola Sem Partido é um movimento que prega “o fim da doutrinação política e ideológica em sala de aula” –, segundo seu líder e criador, o procurador paulista Miguel Nagib. Segundo ele, foi uma experiência com a escola de sua filha, que o fez fundar o movimento, como explicou em entrevista à Pública: “Em setembro de 2003, minha filha mais nova, cursando a 7a. série do ensino fundamental num colégio particular de Brasília, contou que seu professor de história havia comparado Che Guevara – um homem conhecido pela violência praticada em nome da sua ideologia política – a São Francisco de Assis. Como eu já estava incomodado com esse professor, decidi escrever-lhe uma carta aberta, denunciando o seu empenho de ‘fazer a cabeça’ dos alunos. Imprimi umas 300 cópias, e fui ao estacionamento do colégio distribuir aos pais que chegavam para deixar seus filhos. O efeito dessa iniciativa foi o mais inesperado para mim. A direção do colégio contestou a veracidade do fato narrado pela minha filha e negou que os professores usassem suas aulas para fazer a cabeça dos alunos. Os alunos se solidarizaram inteiramente com o professor, e me enviaram dezenas de mensagens ofensivas. Nenhum pai me apoiou. O episódio me impressionou muito, e eu acabei me interessando pelo tema da doutrinação política e ideológica nas escolas (…) Foi então que, inspirado em alguns sites americanos, resolvi criar o ESP, para que as vítimas da doutrinação em sala de aula pudessem relatar suas experiências, de modo que com o tempo nós tivéssemos um bom acervo de provas da existência do fenômeno”.

Mas o movimento só veio a ganhar força, assume Nagib, em 2014, com a discussão sobre a inclusão dos temas de gênero e sexualidade nos planos de educação e com as manifestações contra e pró impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2015 e 2016. “A tentativa do MEC e de grupos ativistas de introduzir a chamada ‘ideologia de gênero’ nos planos nacional, estaduais e municipais de educação acabou despertando a atenção e a preocupação de muitos pais para aquilo que está sendo ensinado nas escolas em matéria de valores morais. E, com o acirramento da disputa política a partir de 2015, o alinhamento ideológico dos professores e o aparelhamento político-partidário do sistema de ensino tornaram-se manifestos, e isso também está sendo percebido pela sociedade” diz o advogado, que hoje é procurador em Brasília. O Escola Sem Partido – que recentemente se transformou em uma associação civil – tem sido amplamente apoiado por grupos e pessoas de direita e extrema direita como Revoltados Online e MBL, o “Batman dos protestos” – que agora é candidato a vereador pelo PSC. Atrai simpatizantes como o rapaz vestido de Hitler que aparece neste vídeo sendo expulso de uma audiência pública sobre o Escola Sem Partido na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Uma das líderes do Revoltados Online, a procuradora de justiça do Distrito Federal aposentada Beatriz Kicis, é cunhada de Nagib. Mas seu rosto mais conhecido é o do ator Alexandre Frota, que foi pessoalmente levar o projeto do ESP ao novo ministro da educação e deputado do DEM Mendonça Filho.

Provocado a se posicionar a respeito do assunto, o ministro enviou à Pública a seguinte resposta, através de sua assessoria de imprensa: “Com relação ao movimento Escola Sem Partido, o ministro da Educação, Mendonça Filho, reitera que respeita o direito de qualquer movimento defender as ideias que possui e considera salutar que a sociedade debata a educação. Entende que essa discussão envolve aspectos legais, constitucionais, que devem ser avaliados pela Advocacia-Geral da União, mas que nesse processo prevalecerão o interesse geral por uma boa educação e os conceitos como pluralidade, liberdade e a preservação do direito do estudante de conhecer todos os pontos de vista históricos e ideológicos. O ministro defende a importância de professores bem formados, do exercício do controle social feito pelos pais, alunos e a própria comunidade no entorno da escola, bem como do compromisso de gestores e professores com a amplitude do conhecimento dentro da sala de aula. Ele espera que esse debate enseje uma maior maturidade dos formadores de opinião e daqueles que querem uma escola melhor, no sentido de sedimentar conceitos como pluralidade, amplitude e liberdade, e não cerceamento e censura. Mendonça Filho garante que vai trabalhar por uma educação de qualidade, plural e que ofereça ao aluno a oportunidade de ter ampla visão de mundo para que possa desenvolver um senso crítico e ter condições de fazer suas escolhas com base no acesso à diversidade de ideias”. Um segundo e-mail enviado à assessoria de imprensa, pedindo por uma resposta mais clara, não obteve resposta.

O que pensam os estudantes sobre o Escola Sem Partido?

A Pública entrevistou estudantes secundaristas de todo o país para saber o que pensam sobre o projeto. Clique nas abas para ler os depoimentos:

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Nycholas Pires, 19 anos, Maceió

Concluiu em 2015 o 3º ano na Escola Estadual Onélia Campelo

“No começo do ensino médio, minha turma era muito conservadora porque tinha muitos evangélicos e católicos. Alguns ficavam meio intimidados, achando algumas coisas meio tabu, mas iam se soltando, iam aceitando mais que as coisas deveriam ser discutidas. Eu acho muito importante que a política seja discutida dentro da sala de aula porque é lá que se formam os seres pensantes. Essa lei [Escola Livre, aprovada em Alagoas] é um retrocesso. O objetivo é acabar com o senso crítico dos alunos. Como essa nossa geração vem se fortalecendo politicamente, isso acaba assustando esses políticos. Querendo ou não, isso é uma censura. Quando a gente do movimento estudantil ficou sabendo do projeto, a gente fez mobilizações explicando o que seria a tal Lei Escola Livre. Os professores não têm essa capacidade de manipular. Eles na verdade tentam estar abertos para mostrar os dois lados de cada história para que o aluno tenha capacidade de escolher. Teve um aluno que se suicidou porque outros alunos estavam chamando ele de viadinho, de gay. Foi este ano, faz uns três ou quatro meses. Ele entrou em depressão por conta dessas coisas. Quando ele falou para a direção do bullying que ele estava sofrendo, a direção entrou com força para tentar ajudar ele. Fizeram capacitação dos professores para que soubessem lidar com isso. Mas os professores não falaram nada sobre isso em sala de aula. E o caso aconteceu pouco tempo depois de o projeto ser aprovado. Eu acho que por isso não falaram. Eu acho que, se não tivesse a lei, eles teriam discutido. Nossos professores discutiam muito essas questões ano passado, quando eu estudava lá ainda.”

Maria Kamila da Silva Santos, 18 anos, Maceió

Aluna do 3º ano na Escola Estadual Moreira e Silva, no Cepa

“Considero minha escola uma das melhores do estado. Os professores falam bastante dos temas atuais, discutem bem as atualidades, não tenho o que reclamar. A questão de opinião dentro da sala de aula é que às vezes é meio complicada, tem opiniões opostas, e acabamos tendo problemas sobre deixar um falar, o outro ouvir. Às vezes isso acaba gerando um conflito muito grande. Particularmente eu acho muito necessário ter esses debates em sala de aula porque você aprende a conviver com opiniões diferentes da sua. É bom até para formar sua própria opinião. Infelizmente, nós ficamos um pouco limitados com o projeto Escola Livre. Tanto o professor quanto a gente, porque o professor não pode expressar sua opinião, não pode falar o que acha. Então a gente acaba meio que tendo mais dúvidas, tendo que amadurecer por conta própria, sem pessoas ali para nos orientar. Sou totalmente contra o projeto porque, dentro de sala de aula, a gente não poderá mais tirar nossas dúvidas. YouTube e internet às vezes a gente nem sabe qual é a fonte. É bom ter uma informação que a gente sabe de quem vem. E, depois da lei, em algumas discussões o professor fala: ‘Não quero opinar, não posso opinar’. Ele simplesmente chega e dá o tema, mas não explica muito o assunto. Antes do projeto, os professores falavam de temas como o racismo, por exemplo. Ele dava esse tema, debatia esse tema, falava dos acontecimentos como exemplo, e aí falava sua própria opinião. E depois do projeto Escola Livre ele apenas dá o tema e traz alguns fatos sobre ele. Por exemplo, o racismo: ele fala das leis contra o racismo, de casos famosos, mas em momento algum dá opinião. E quando a gente fala: “Professor, o que o senhor acha?”, ele fala: ‘Olha, eu não posso opinar porque existe uma lei que não me permite falar isso’. E às vezes nem é o professor que traz o tema, é o próprio aluno que chega falando. E, para mim, esse projeto só veio para assassinar a qualificação do professor. Por que eu vou me formar se eu não vou poder me expressar?”

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Kaliane, 17 anos, Fortaleza

Aluna do 3º ano da Escola Estadual Caic Maria Alves Carioca 

“Antes da ocupação já se falava disso [Escola Sem Partido], mas era por alto. Nas ocupações falaram que não poderia mais ter discussões de gênero. Isso afeta bastante a minha escola porque a gente já tem um núcleo de gênero para debater preconceito. Na escola tem vários homossexuais, há casos de machismo, de racismo. Nas aulas de história, a professora sempre tentava dar os dois lados e deixava com a gente escolher o que achava mais correto. Toda aula de filosofia ele fazia uma pergunta e pedia para a gente pensar em casa e trazer a resposta na outra aula. Uma das mais legais foi ‘Quanto tempo dura o eterno?’. Durante uma aula de português, a professora propôs um debate sobre o estado de greve que foi declarado aqui no Ceará, e a gente discutiu a questão da greve e do governo estadual. Eu acho que todos os alunos se interessam. Deveria ser abordado mais vezes. Eu pretendo ser professora e acho o projeto bem ‘paia’. Às vezes a gente precisa falar. Não é uma doutrinação como eles falam, eu não acho que os professores influenciam. As pessoas duvidam muito da capacidade do aluno de pensar por si próprio.

Eu já ouvi casos de homofobia. Tenho um amigo que estava na sala de aula e um aluno novato disse que não queria ficar naquela sala porque isso ‘pegava’. Aí o menino que é homossexual falou um monte de coisa para ele deixar de ser preconceituoso. O menino aceitou e ficou na mesma sala que ele, mas saiu da escola depois disso. Eu lembro que minha professora de história, que é negra, sofreu racismo na escola e teve uma reunião de professores que discutiu isso. Eu não sei ao certo o que aconteceu, apesar de eu achar que esse caso deveria ser exposto para discussão. Eu acho que, se tivesse mais discussão, essa seria uma maneira de conscientizar esses alunos que são preconceituosos. Abrir o pensamento desses alunos.”

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Rafael, 17 anos, Brasília

Aluno do 3º ano da Escola Leonardo da Vinci Norte

“O projeto foi discutido informalmente, dentro do grêmio. Dentro das aulas foi comentado por um ou outro professor porque estava tramitando na Câmara, mas não foi um debate. O que ficou muito evidente é que o projeto, em si, parece ter uma ideia, mas dentro das entrelinhas você pode perceber um caráter punitivo. O projeto foge da ideia principal, que é estabelecer uma escola sem fins partidários, porque já há uma legislação que cobre a não incitação de partidos dentro da escola. Há aspectos dentro do projeto que são plausíveis, mas que a própria constituição já prevê. Nenhum professor pode fazer propaganda de partido político, é algo que já existe. Tem um artigo que fala para não incitar passeatas e manifestações. A participação de estudantes dentro de uma passeata é um exercício da cidadania e um direito. Eu acho que por conta da forma que está redigido o documento abre uma margem negativa. O Leonardo da Vinci é uma escola privilegiada porque é muito aberta a sugestões. O grêmio é muito consolidado. A gente pode abrir assembleias, convidar palestrantes, professores convidados. Dentro de sala de aula há matérias como atualidades, que aborda casos como aquele de Mariana. As aulas de história ficam muito próximas da realidade que a gente vive. Os professores são orientados a não deixar suas posições, mas há incitação. Os professores conseguem passar o conteúdo sem tomar um lado. Eu acho que o professor, da mesma forma que os amigos e a família, ou até mesmo o noticiário, tem poder de influência na vida do aluno. Mas,quando o professor trouxe ideias divergentes da minha, o que acontece é um incentivo para saber mais, onde ele está errado e eu estou certo.

Imagina um aluno evangélico. Existe uma pessoa transexual na turma desse aluno. Esse evangélico pode provocar alguns constrangimentos para o aluno. Em escolas que não têm esse tipo de discussão nos corredores, não vai ter em nenhum outro lugar. É uma violência do professor que se nega ao trabalho de discutir essas coisas. Como nossa sociedade é muito marcada pelo conservadorismo, então não podem ser leis, o legislador não pode dizer o que pode ser debatido. Isso tem que ser orgânico, natural. Às vezes é o único espaço que o aluno tem para debater.”

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Yan, 15 anos, Belém

Estudante do 2º ano do Colégio CEI

“A gente teve a pauta do Escola Sem Partido numa reunião do grupo de estudos. Eu sou a favor desse projeto. A gente tem muitos direitos, mas também muitos deveres que têm que ser respeitados. E eu acho que com essa lei, se tiver algum aluno que tenha ideologia e tente passar isso para os outros alunos, o professor vai intervir. Eu acho que vai aumentar o respeito nas discussões.

Alguns alunos não pensam assim. Eles falavam que não iriam ter mais liberdade. Tem alguns alunos que estudam em colégios que tem um certo partidarismo. Eu encontro pouco partidarismo de direita e muito de esquerda. Eu acho que foi por conta disso que eles se disseram contra o projeto. Dentro desse projeto pode ter leis que protejam tanto aluno quanto professor. Eu acho que esse projeto vai dar um pouco mais de proteção ao professor porque ele não vai ser obrigado a falar a opinião dele. O professor de geografia, que também é formado em sociologia, dentro de sala de aula não falava de partido de esquerda ou de direita. Mas alguns livros tratam com uma certa chamada para a esquerda, então ele chamava nossa atenção falando que nem tudo que estava naquele livro era tão concreto. O sistema de ensino é feito por professores que são marxistas, que estudam marxismo. Igualdade de gênero ou opção sexual se discute imparcialmente na sala de aula. A gente tem que falar, mas não pode expressar nossa opinião porque ela pode ferir os outros. Foi o que professor orientou, que tomássemos cuidado. Se uma pessoa x é homofóbica e a y é homossexual, para ninguém expressar sentimentos de ódio. Ele propõe discussões e mostra vídeos que mostram que opção sexual não é a mesma coisa que sexualidade. Principalmente estudos de como a pessoa age em determinados grupos sociais. O professor acha que as minorias não podem ser chamadas de minorias porque é um grupo como qualquer outro, não deveriam ter nenhum tipo de privilégio.

Quando eu estava no 9º ano, ocorreu um caso em que um aluno descobriu que o professor era gay. Mas esse professor, ele nunca demonstrou e nunca teve nenhuma falta de respeito com ninguém. Mas o aluno denunciou e disse que não queria mais ter aula com ele. Ele deu outros motivos, mas na verdade a razão era essa. Pediram para o aluno se retratar e ele foi levado à psicóloga, que falou que ele não é obrigado a amar isso, mas o professor tem o direito de ser respeitado e de trabalhar. O aluno se recusou a pedir desculpas. No fim, os pais preferiram tirar ele do colégio. O aluno era evangélico.”

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João Pedro, 17 anos, Rio de Janeiro

Aluno do 3º ano do Colégio Pedro II

“O Colégio Pedro II sempre está na vanguarda das questões políticas, desde a ditadura militar. Lá no grêmio a gente é completamente contra [o Escola Sem Partido], e é muito difícil achar alguém que é a favor na escola. Tenho muita fé que esse projeto não vai passar. Ele é inconstitucional. Ele não considera nada que já esteja previsto pelo ECA, pelo Plano Nacional de Educação; não tem nenhuma base jurídica. É um projeto mal formulado. Nós, estudantes, trazemos muitas questões para a sala de aula, tanto a questão de gênero quanto de conflitos de terra, cenário político. Isso em todas as aulas, não é restrito a história, sociologia. Isso parte mais dos alunos, por mais que tenhamos professores que são ativos politicamente, os alunos trazem essas coisas. O processo de impeachment, por exemplo, é inevitável [discutir]. A gente discute isso em paralelo com outras coisas, com períodos em que aconteceram coisas parecidas. Não adianta nada uma escola que forme apenas construção acadêmica, na minha opinião. Mas o conteúdo da escola não se volta para essas questões. Elas não entram no currículo escolar. A gente trabalha com temas transversais. Os professores têm pensamentos diversos, e eles tem a preocupação evidente de não misturar as coisas. Não existe imparcialidade, eu acho, mas o próprio professor às vezes é confrontado. Isso é muito positivo para a construção da nossa cidadania. A escola é também um retrato da sociedade, que é machista, racista, homofóbica. Ano retrasado teve um ‘saiaço’. Um aluno que se identificava como gênero fluido foi à escola de saia porque ele se sentia mais confortável daquele jeito. Aquele caso foi levado à direção e pediram para ele não usar saia. Uma semana depois, os estudantes organizaram um saiaço em que muitas meninas foram de saia para a escola. A gente entende que existem coisas mais prioritárias do que negar acesso a um estudante porque ele está usando saia, ou usando um turbante, como aconteceu comigo recentemente. Sempre que tem um caso desses, a gente debate isso depois com os professores. Na época do saiaço, eu assisti uma aula de geografia para discutir arranjos familiares contemporâneos, a gente debateu ali o que seria o conceito de família. Se a gente for olhar, por exemplo, aquele caso em Orlando, aquilo foi um crime de ódio. Aquele rapaz também foi aluno e ele provavelmente não teve esse tipo de discussão. Certamente, se ele tivesse tido esse debate para entender as diferenças dentro da escola, não pensaria daquele modo. Talvez ele não pensasse nos gays de forma igualitária, mas teria mais respeito. Eu acho ingenuidade a gente achar que um aluno de ensino médio pode ser doutrinado por um professor. Como se a gente fosse um quadro branco. A gente não é. A gente é influenciado pela mídia, pela Igreja, pelos amigos, pela família.”

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Joaquim Moura, 20 anos, Porto Alegre

Hoje estudante do cursinho pré-vestibular Objetivo, cursou ensino médio no Colégio Estadual Piratini. Participou das ocupações em escolas

“Eu me formei no ano passado e já tinha umas discussões dos alunos que se colocavam contra o projeto. Durante as eleições de 2014, havia debates políticos a todo momento, organizados pelo grêmio do qual eu era presidente. A direção tentou nos barrar falando que a escola não abriria espaço para debate porque isso geraria briga entre os estudantes. Quando a gente tenta colocar o debate político, isso é barrado, mas sempre falam que a nossa geração não é politizada.

Eu acho que esse PL [projeto de lei] é uma herança da ditadura militar. Quanto tempo depois vão querer proibir os estudantes de debater fora da sala também? Eu acredito que a escola não pode ser só para dar o conteúdo, mas também para formar pessoas com senso crítico e que vão se inserir na sociedade. Acho que os professores têm, sim, um papel na formação política dos alunos, mas é diferente debater e manipular. Os professores tiveram zero influência no processo de ocupações. Não impulsionaram os estudantes. Alguns professores apoiaram e outros não apoiaram as ocupações. Minha formação político-partidária se deu fora da escola. Tanto que muitos professores pertenciam a partidos que eram diferentes do meu e mesmo assim havia muito diálogo. É democrático. Não acho que role influência dos professores nisso.”

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Abner Tofanelli, 17 anos, Santa Fé do Sul

Estudante do cursinho Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. Formou-se em 2015 na Escola Estadual Professor Itael de Mattos

“A gente tinha bem pouca discussão [em sala de aula]. Os temas sociais geralmente incluíam pensadores contemporâneos. Nunca foi uma discussão da atualidade. Nunca levou um debate sobre política atual, sobre a educação nacional. Foram coisas mais da matéria mesmo. Teve uma aula de filosofia que eu e mais um colega levantamos a questão do aborto, mas não partiu dos professores. Quando a gente puxou o assunto, foi a aula inteira, o pessoal gosta de falar sobre essas coisas. Os alunos tinham uma opinião pronta que eles traziam de casa. Mas, quando eram assuntos atuais, eles sempre tinham algo a dizer.

Eu acredito que os professores deveriam, sim, falar, porque tem como eles apresentarem os fatos sem moldar a opinião do aluno. Pelo menos apresentar fatos com números, com dados. Mas eu acho que é tão demonizado que os professores ficam meio receosos porque eles não sabem o que pode acontecer com eles depois dessa abordagem. Tinha casos de homofobia na escola, mas foi há algum tempo. Hoje em dia, a escola está muito mais aberta com a nova diretoria e o grêmio. De certa forma foi melhorando. Esse projeto [Escola Sem Partido] é uma besteira muito grande. Totalmente conservador, não vai acrescentar nada, só vai restringir mais o debate.”

Lara, 16 anos, São Paulo

Estudante do 3º ano da Etec Basilides de Godoy

“Só a parte mais militante da escola conhecia o Escola Sem Partido, a galera que já estava envolvida em movimentos sociais. Eu comentava com os colegas, mas não era um debate maior e não era organizado pela escola. Nós lutamos muito para que a nossa escola desse um espaço maior para essas discussões. Minha escola tem um histórico de luta. Conta com um coletivo feminista, um coletivo LGBT. Essa discussão já rola entre os alunos. Mas é importante que os professores discutam até para o tratamento deles com a gente, para os professores entenderem melhor nossos projetos. Minhas aulas logo após o caso do estupro coletivo no Rio ficar conhecido eram de filosofia, história e sociologia. Eu esperava que eles fossem comentar isso, tinha tudo a ver. A gente tinha uma esperança. Mas ninguém falou nada. Eu acho extremamente perigoso se esse projeto passar. A gente do grêmio está tentando fazer uma palestra de cunho social a cada 15 dias. Tinha um professor de inglês que eu acho que todas as alunas tiveram episódios com ele. Ele era péssimo, fazia piadinhas tipo chamar de vagabunda, piadas racistas. As alunas fizeram carta, relato para a coordenação, mas nada aconteceu. O professor se desculpou com os alunos e os episódios diminuíram. Ele deixou de dar aula em algumas salas, foi substituído por outro. Mas esse caso foi silenciado, nenhum professor se pronunciou. Logo depois esse professor saiu da escola, mas os debates continuaram. A gente decidiu fazer um ‘saiaço’ porque na escola as meninas aqui só podem usar calça. E estava muito calor. Foi legal porque muitas meninas que nem eram mobilizadas participaram.

Depois do saiaço alguns professores se posicionaram contra, falando que escola não era clube. Alguns se posicionaram a favor, mas maioria era contra. A gente tem uma professora de sociologia que trouxe como tema de aula discriminação e deixou um trabalho em que você podia abordar qualquer tipo de discriminação, desde homofobia até racismo, machismo. E aí foram feitos cartazes que foram espalhados pela escola. Mas a coordenação chamou ela e pediu para maneirar no debate político, não colocar os cartazes, tomar cuidado com o conteúdo deles.

Quando os alunos resolveram começar os coletivos, enfrentaram muita resistência e burocracia. Até hoje é muito difícil para os coletivos, nunca conseguem salas de aula para os debates, tudo tem que ser feito na rua.

Eu acho que na minha escola existe uma perseguição política. Os alunos que se posicionaram nas ocupações, rolou uma perseguição depois, com expulsões, advertências, no sentido de ir contra essas mobilizações políticas. Ainda rola o pensamento de que escola é para obedecer e não para questionar, e eu acho que esse projeto deve potencializar muito isso. Nesse ano, um mês atrás, teve um caso de homofobia na escola. Um casal de amigos meus estava conversando no pátio e um grupo de alunos foi ameaçar eles, foram perguntando ‘Cadê a lâmpada? Pega a lâmpada na mochila’. A gente já tem uma formação boa para dizerem que a gente é influenciada. As opiniões dos professores podem trazer coisas positivas, mais discussão, não manipulação.”

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Disputa política

Na política, o apoio ao Escola Sem Partido também vem das figuras e partidos conservadores e bancadas religiosas, apontando para uma disputa “mais política do que pedagógica”, novamente nas palavras do próprio Miguel Nagib. O primeiro Projeto de Lei baseado no Escola Sem Partido (2974/2014) foi apresentado em 2014 pelo deputado estadual Flávio Bolsonaro. A pedido do deputado, Nagib escreveu um anteprojeto de lei que disponibiliza em seu site (agora já são dois – um municipal e um estadual) que se tornaria modelo para PL’s por todo o país. Logo depois, foi a vez do vereador Carlos Bolsonaro sugerir o projeto (867/2014) no município do Rio de Janeiro. Desde então, já foram apresentados projetos do Escola Sem Partido em ao menos onze estados brasileiros e no Distrito Federal como mostra esse mapa do site G1, e o fundador do movimento tem viajado para prestar consultorias e participar de audiências públicas por todo o país. Já foram aprovados projetos em pelo menos dois municípios: Picuí (PE) e Santa Cruz do Monte Castelo (PR).Em Alagoas, o “Escola Livre” é lei desde maio deste ano e dois projetos tramitam no âmbito federal: um na Câmara dos Deputados (PL 867/2015) do deputado Izalci Lucas (PSDB); e outro no Senado (PL 193/2016), do senador Magno Malta (PR-ES) – sendo o do Senado uma versão mais atualizada que abrange, inclusive, a proibição da discussão de gênero nas escolas. Evangélico, o senador foi um dos principais articuladores da derrota do PL122/2006, a lei anti-homofobia e um grande entusiasta da redução da maioridade penal.

“Eu acho muito importante que a política seja discutida dentro da sala de aula porque é lá que se formam os seres pensantes. Essa lei [Escola Livre, aprovada em Alagoas] é um retrocesso. O objetivo é acabar com o senso crítico dos alunos. Como essa nossa geração vem se fortalecendo politicamente, isso acaba assustando esses políticos” – Nycholas Pires, 19 anos, Escola Estadual Onélia Campelo, Maceió

Já o projeto de Izalci Lucas – que em sua última campanha recebeu R$ 270.010,34 de doações de instituições privadas de ensino e que declarou R$ 685.502,23 em investimentos em escolas da rede de ensino privadas no mesmo ano de 2014 – é criticado por juristas e pelo Ministério Público Federal. Nota técnica do MPF enviada ao Congresso Nacional em julho deste ano dizia que “O projeto de lei que propõe criminalizar professores sensíveis aos temas dos direitos humanos representa uma grave ameaça ao livre exercício da docência e constitui um retrocesso na luta histórica de combate à cultura do ódio, à discriminação e ao preconceito contra mulheres, negros, indígenas, população LGBTT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros], comunidades tradicionais e outros segmentos sociais vulneráveis”. A nota se referia ao PL de Izalci mas, segundo o MPF, vale “para todas as proposições legislativas correlatas”.

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A procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, responsável pela nota, disse em entrevista à Pública que o PL fere a Constituição na medida em que tira da educação aquilo que é sua nota principal, que é preparar o indivíduo para a vida em comunidade. “Quando o projeto determina que alguns temas estejam fora da discussão ele inibe a participação de todas e todos no espaço público. Porque algumas pessoas com posições diferentes estarão excluídas e não poderão ser ouvidas”. Ela também aponta o controle sobre o professor e sobre o que ele está autorizado a falar em sala de aula como outro ponto inconstitucional. “Nossa Constituição é um documento que tem uma importância fundamental porque rompe com um período de censura de restrição das liberdades fundamentais. A liberdade de expressão foi potencializada em vários espaços da constituição. Seria um absurdo que exatamente em sala de aula o professor estivesse limitado sobre o que ensina aos alunos. Até porque existe uma disposição especifica sobre Liberdade de Cátedra no capitulo relativo a educação. E é preciso levar em conta que esse projeto, apesar de usar palavras sedutoras como ‘pluralismo de ideias’ está atravessado por noções morais e religiosas que pretende inibir discussões sobre os diversos formatos de família, questão já superada até pelo Supremo Tribunal Federal, como se essas questões pudessem estar subtraídas do conhecimento das crianças”.

“Eu acho que esse PL é uma herança da ditadura militar. Quanto tempo depois vão querer proibir os estudantes de debater fora da sala também? Eu acredito que a escola não pode ser só para dar o conteúdo, mas também para formar pessoas com senso crítico e que vão se inserir na sociedade. Acho que os professores têm, sim, um papel na formação política dos alunos mas é diferente debater e manipular” – Joaquim Moura, 20 anos, Porto Alegre, cursou ensino médio no Colégio Estadual Piratini

Othoniel Pinheiro Neto, professor de direito constitucional que tem acompanhado o Escola Livre em Alagoas, diz que o PL de Izalci é “um canhão pra matar passarinho” porque vai além dos objetivos que propõe e traz termos abertos e conteúdos vagos que podem levar o professor a ser processado por qualquer coisa que fale em sala de aula. “No artigo 2 inciso 1 do projeto, ele fala em ‘neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado’. Exige que o professor seja neutro mas isso é muito subjetivo, não diz o que seria essa neutralidade. No terceiro artigo diz que ‘São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes’ mas novamente não especifica o que seria essa doutrinação. Pode ser qualquer coisa! E sobre entrar em conflito com as convicções morais e religiosas dos pais, isso é impossível em uma classe com mais de um aluno” Explica. Othoniel também fala sobre o Pacto de San José de Costa Rica, usado como fundamento legal por Miguel Nagib e pela maioria dos PL’s: “Essa é uma utilização indevida e falaciosa, porque o Pacto de São José da Costa Rica é o que os operadores do direito chamam de ‘direito de primeira geração’. O Pacto diz que os pais têm direito a que os seus filhos recebem educação moral e religiosa, está falando da liberdade dos pais perante o Estado, ou seja, que o Estado não pode adentrar na relação da família no âmbito domiciliar. Eles querem trazer isso pra escola, mas aí é o Estado prestando serviço de educação. Não cabe porque esse é um ‘direito de segunda geração’. Os direitos de segunda geração são os direitos por exemplo de prestação de serviços do Estado para a população como direito à saúde à educação”.

Izalci diz que o projeto é necessário para acabar com a doutrinação de esquerda, que, “inclusive já foi dito por membros do partido e pelo Lula, de que tinha que fazer um trabalho principalmente no ensino fundamental, uma doutrinação ideológica e partidária”. Ele complementa que “Não pode-se fazer uma crítica ao capital e elogiar o comunismo determinando que tudo o que é capitalista é ruim e mau e demônio e tudo e comunista é bacana. O comunismo é bom até acabar o dinheiro dos outros quando acaba o dinheiro dos outros é ruim”. Questionado sobre quem fiscalizaria a aplicação da lei, o deputado diz que seriam os alunos e a própria família. Miguel Nagib concorda: “A única pessoa que esta em condições de aferir a conduta do professor em sala de aula, saber se esses deveres estão sendo respeitados são os próprios estudantes. Se ele perceber comportamento inadequado vai se reportar”. Mas os estudantes teriam tal discernimento, já que segundo seu projeto são facilmente ludibriados pelos professores? “Individualmente não, mas o coletivo de estudantes sim. A medida em que esse conhecimento for se aprofundando ele vai se incorporar a pratica dos professores e passar a ser natural” acredita.

O senador Magno Malta foi procurado pela Pública mas não quis se manifestar.

“Eu pretendo ser professora e acho o projeto bem ‘paia’. Às vezes a gente precisa falar! Não é uma doutrinação, eu não acho que os professores influenciam. As pessoas duvidam muito da capacidade do aluno de pensar por si próprio” – Kaliane, 17 anos, 3º ano da Escola Estadual Caic Maria Alves Carioca, Fortaleza

Para Fernando de Araújo Penna, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, criador da página “Professores conta o Escola Sem Partido”, para além dos projetos de lei, existe uma grande disputa quanto à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que vem sendo adiada. “O ministro declarou que iria paralisar as negociações para ‘desideologizar o debate’ e isso é um escândalo, uma verdadeira caça as bruxas! O deputado Rogerio Marinho (PSDB/RN), que propôs o projeto de lei (1411/2015) sobre ‘Assédio Ideológico’ que prevê prisão aos professores, foi chamado no dia 31 de maio deste ano a um seminário sobre a Base na Câmara dos Deputados. Dentro desse evento, para o qual deveriam ter sido chamados autores, educadores, pesquisadores, tinha uma mesa chamada ‘Ciências Humanas da BNCC’. Três pessoas foram falar: o Braulio Porto de Matos que é um professor da UNB que tem defendido o Escola Sem Partido, o professor Orley José e Silva que tem um blog chamado ‘De olho no livro didático’ que procura ocorrências de doutrinação nos livros didáticos e o terceiro convidado foi um padre que quer proibir a discussão de gênero nas escolas. Esses três foram chamados pra discutir ciências humanas da Base. Nós temos educadores de renome internacional no campo das ciências humanas, mas nenhum deles estava lá. Então existe um movimento muito forte se articulando, são varias alianças que estão sendo tecidas e a difusão desse discurso é alarmante” alerta.

“Nesse ano, um mês atrás, teve um caso de homofobia na escola. Um casal de amigos meus estava conversando no pátio e um grupo de alunos foi ameaçar eles, foram perguntando “Cadê a lâmpada? Pega a lâmpada na mochila”. A gente já tem uma formação boa para dizerem que a gente é influenciada. As opiniões dos professores podem trazer coisas positivas, mais discussão, não manipulação” – Lara, 16 anos, estudante do 3º ano da ETEC Basilides de Godoy, São Paulo

Em Alagoas é lei

Othoniel Pinheiro conta que a lei nº 7.800 “Escola Livre” aprovada em maio desta ano (e que tem o texto da justificativa exatamente igual ao anteprojeto de lei estadual sugerido pelo ESP) começou a ganhar corpo quando Miguel Nagib foi a Maceió debater a questão da identidade de gênero que estava sendo votada na Câmara Municipal. “Foi nesse momento que ele se encontrou com grupos conservadores e com a Igreja Católica daqui e esses grupos procuraram o deputado Ricardo Nezinho (PMDB), autor do projeto, que não tem o menor conhecimento de causa”. Ele conta que o projeto caminhou silenciosamente, sem muito debate com estudantes, conselhos de educação, sindicatos ou professores. “O projeto não se iniciou por estudos técnicos, por estatísticas adequadas ou pesquisas. Ele se iniciou por uma crença política e uma paixão de que existe uma doutrinação em sala de aula”.

Uedson Silva, professor da rede de ensino municipal de Alagoas que lutou para que o projeto não fosse aprovado diz que, na pratica, quase nada mudou em sala de aula. “Aquilo que o Karnal disse no Roda Viva, que esse projeto é uma asneira, é a mesma impressão que eu tenho. Porque isso não chegou às escolas, é como se essa lei não existisse. Até porque a lei prevê uma formação para os profissionais se adequarem mas a gente vive uma situação terrível na educação aqui em Alagoas e a falta de recursos é tão grande que nem isso permite. Os professores vêm fazendo várias paralisações, não há previsão de reajuste salarial esse ano então não vejo como esse curso poderia acontecer nas 102 cidades de Alagoas”. Ainda assim, ele acredita que a lei será usada para punir os professores em caso de greve ou ocupações de escolas. “Não temos nenhuma escola ocupada aqui, acho que isso sim tem a ver com a lei”.

Já a estudante Maria Kamila da Silva Santos, de 18 anos, aluna do 3º ano na Escola Estadual Moreira e Silva em Maceió, sente que a lei já começou a fazer efeito. “Infelizmente nós ficamos um pouco limitados com o projeto Escola Livre. Tanto o professor quanto a gente porque o professor não pode expressar sua opinião, não pode falar o que acha. Então a gente acaba meio que tendo mais dúvidas, tendo que amadurecer por conta própria, sem pessoas ali para nos orientar. Sou totalmente contra o projeto porque dentro de sala de aula a gente não pode mais tirar nossas dúvidas. YouTube e Internet às vezes a gente nem sabe qual é a fonte. É bom ter uma informação que a gente sabe de quem vem. E depois da lei, em algumas discussões, o professor fala: ‘Não quero opinar, não posso opinar’. Ele simplesmente chega e dá o tema mas não explica muito o assunto. Antes do projeto os professores falavam de temas como o racismo, por exemplo. Ele dava esse tema, debatia, e aí falava sua própria opinião. E depois da lei ele apenas dá o tema e traz alguns fatos sobre ele. Por exemplo, o racismo, ele fala das leis contra o racismo, de casos famosos, mas em momento algum ele dá opinião. E quando a gente fala: ‘Professor, o que o senhor acha?’ ele fala: ‘Olha, eu não posso opinar porque existe uma lei que não me permite falar isso’. E às vezes nem é o professor que traz o tema, é o próprio aluno que chega falando. E para mim esse projeto só veio para assassinar a qualificação do professor. Eu quero ser professora mas por que eu vou me formar se eu não vou poder me expressar?”

Renato Janine: projeto conservador como o momento

Para o ex-ministro da Educação e professor de Ética e Filosofia Política da USP Renato Janine Ribeiro, o avanço do Escola Sem Partido tem a ver com o momento que a gente está vivendo, de um avanço do conservadorismo em várias direções.

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“Mas é bom lembrar que embora o ESP, o Bolsonaro, se coloquem bem à direita, não quer dizer que todos os defensores do impeachment são conservadores ou defensores dessas ideias. O que aconteceu no último ano foi que a oposição democrática e por oposição democrática eu chamo basicamente o PSDB e alguns outros partidos, ficaram muito fracos depois da eleição e acabaram se aliando a essa extrema direita, o que eu chamo direita de costume, que são aqueles que não estão apenas defendendo uma economia liberal, estão defendendo restrições aos direitos das mulheres, de inclusão social etc. É diferente dos que defendem o liberalismo econômico, essa defende o conservadorismo de costumes. E o Escola Sem Partido é um projeto conservador e reacionário. O ponto de partida deles é misturar educação com doutrinação, falando que o que o professor faz é doutrinar. Por isso que o pior artigo do projeto é aquele que o professor não pode ensinar nada que entre em conflito com os valores religiosos das famílias dos alunos. Eles tem uma ideia de que o aluno não é um sujeito autônomo capaz de fazer suas escolhas, se você der uma aula você faz a cabeça dele e isso porque eles próprios concebem a transmissão de conhecimento sob a forma de doutrinação. O espirito critico significa que não pode ensinar aos alunos apenas uma visão do mundo, tem que falar de várias visões. Por exemplo: economia. Não dá pra falar de economia sem falar de adam Smith. Se você falar da organização social sem falar dos pensadores de esquerda como o próprio Marx fica truncado. Isso não quer dizer que a pessoa saia de uma aula dessa marxista ou discípulo de adam Smith. Ela precisa ter visões diferentes das coisas e essas visões não são meras opiniões, são pensamentos, teorias, é ciência”.

Para a professora de sociologia Renata Hummel, que dá aulas em uma escola estadual de São Paulo, a vigilância piorou muito depois das ocupações das escolas pelos estudantes secundaristas: “Dou aula no ensino médio desde 2009 em sociologia, em São Paulo. Desde o ano passado, quando tivemos greve e depois as ocupações das escolas, houve uma preocupação dos gestores e dos alunos em saber se a gente estava apoiando ou não, se é de esquerda se é feminista. Depois das ocupações, minhas aulas e as do professor de história foram assistidas pela coordenação da escola e alunos foram questionados sobre o que a gente tem ensinado em sala de aula. A acusação de que a gente controlou os alunos foi feita diretamente para nós pela direção da escola. O professor de filosofia foi denunciado por um aluno para uma página do Facebook. Ele tirou foto da sala e disse que estava sendo obrigado a estudar ‘esquerdismo’ e feminismo e o professor estava discutindo socialismo. Mas já tinha discutido liberalismo, são coisas que fazem parte do currículo, e ele falando em doutrinação. Já existe o medo por parte dos professores em discutir certos assuntos. As religiões afro por exemplo, os professores tem medo de falar a respeito e dar problema com pais evangélicos. E o Escola Sem Partido vem institucionalizar essa tentativa de controle do que está sendo falado em sala de aula, que a gente já vem sentindo forte”. Fernando Penna acrescenta: “Mesmo com os projetos de leis não aprovados, o Escola Sem Partido já esta vigorando. Temos visto que muitos professores já estão deixando de abordar temáticas porque estão com medo de ser processados, muitos já foram demitidos, alguns nem por coisas que disseram em aula mas por seus posicionamentos nas redes sociais. O que esse projeto propõe é uma escola aterrorizada”.

A gente não vai deixar

“Esse projeto não dialoga com o que nós estudantes pensamos e lutamos pela escola pública. Ele é a lei da mordaça, que ameaça a democracia e a liberdade dentro da escola não só dos professores mas também dos estudantes. Não aprovamos e vamos lutar para que ele não seja aprovado. Na escola pública existe uma diversidade gigante, não só diversidade sexual mas de tudo, de cor de pele, de estilo, de tipo de música que escuta, de gênero, tem estudante gay, lésbica, heterossexual, assexuado, que já começou sua vida sexual, que ainda não começou mas que é importante que a gente tenha informações quando começar até pra não entrar pra estatística de gravidez na adolescência que só aumenta – e a escola pública tem um número muito alto de evasão escolar por conta disso. O combate a evasão escolar também passa pela discussão de gênero, por discussões em sala de aula! É preciso debater pra que não se reproduza o machismo e a homofobia dentro das escolas e existe essa perseguição maluca de alguns grupos religiosos. A escola pública parou no tempo. E a gente precisa se movimentar pra não criar novas gerações machistas, lgbtfóbicas. Não vão ser projetos malucos como esses que vão nos impedir de pensar, discutir, debater assuntos importantes em sala de aula. Não é assim que acontece, a gente não vai deixar”, desafia a presidente da Ubes, Camila Lanes.

Colaborou Patrícia Figueiredo

Ilustrações e gif por Guilherme Peters

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