A canoa, escavada numa tora única, tem um metro e meio de largura por uns oito de comprimento. Apesar do tamanho, o casco é fino, não passa de dois centímetros, e a embarcação lembra uma grande folha seca. Nela vão 15 pessoas, inclusive um bebê, que passa a maior parte do tempo mamando no peito da mãe. Além dos passageiros, há uma bela pilha de galões de 50 litros para armazenar combustível, artigo de primeira necessidade que, por ali, substitui o real como moeda corrente.
A viagem já dura mais de duas horas quando o rio Cachorro começa a rosnar, transformando-se numa corredeira. Lá atrás, o piloto reduz a marcha do motor de 15 HP enquanto, na proa, o jovem índio cachoeirista, munido de um remo curto e largo, tenta colocar a canoa no rumo certo por entre a barreira de pedras coberta pela água, que corre cada vez mais depressa.
A coisa não parece ir bem. O casco raspa numa pedra, depois em outra, com mais força, depois mais uma, e a canoa entala. Ergue o bico e fica ali, no meio da corredeira. Dá a impressão de que a qualquer instante vai se partir em dois. As mulheres, as crianças e os homens conversam entre si na sua língua nativa, Katxuyana, e ninguém se sobressalta. O bebê mama. Mas a canoa segue empacada. Até que o cacique Juventino Perisima Kaxuyana, 54 anos, se joga na água, pondo-se em pé, sobre o leito do rio.
Um dos rapazes que ia na proa faz o mesmo. Com água acima dos joelhos, eles trocam instruções em Katxuyana. Há urgência no tom, mas nada além disso. O cachoeirista rema para trás, a canoa recua, o piloto dá mais um pouco de motor, o cacique e o rapaz mais jovem empurram por fora, com os pés escorados nas pedras lisas do rio. Dá trabalho, é demorado, mas, após alguns minutos de esforço, a embarcação vence a corredeira. Lá atrás o piloto torce o pulso, acelerando o motorzinho, enquanto os dois índios pulam de volta para dentro da canoa. O bebê continua a mamar.
Até chegar à aldeia Santidade, o grupo venceria inúmeros trechos como aquele. Há mais de 200 anos, na segunda metade do século 18, foi em parte por causa dessas corredeiras que os escravos fugidos, espalhados pela região de Oriximiná (Pará), conseguiram manter o homem branco à distância. Mais recentemente, também por causa delas, o governo federal nutriu planos de construir uma hidrelétrica que ficaria bem no limite entre a terra dos indígenas e a dos quilombolas, numa região conhecida como Cachoeira Porteira.
A última tentativa de levar o projeto da usina adiante ocorreu em 2014, mas foi barrada pelo Ministério Público Federal (MPF) de Santarém. A recomendação do MPF levou em conta o fato de a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) não haver consultado os povos que tradicionalmente habitam a região. Por meio de nota, a EPE afirma que, no momento, não há planos para reiniciar os trabalhos. Tanto a posição do MPF quanto a decisão da empresa de paralisar os trabalhos por ora devem-se, em boa parte, à pressão conjunta de índios e quilombolas, que se uniram contra a ideia de ter suas terras alagadas para gerar energia.
Laços históricos
O convívio entre esses dois povos teve altos e baixos ao longo dos séculos. Foi da cooperação mútua – quando, nos idos do século 18, os escravos fugidos aprenderam a viver na mata com os seus habitantes ancestrais – às vias de fato de um conflito, quando, em 2012, os quilombolas atearam fogo em casas e destruíram plantações de aldeias Txikyana e Wai-Wai. O embate foi motivado pela questão que aflige as comunidades da região do rio Trombetas como um todo: a demarcação de terras.
Além dos povos tradicionais, o impasse contou com dois outros protagonistas: o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e a Fundação Nacional do Índio (Funai). De um lado, o Iterpa demarcou a terra quilombola de Cachoeira Porteira, em 2012; de outro, no mesmo ano, a Funai concluiu o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), que estipulava os limites da terra indígena Katxuyana-Tunayana. O problema: no território reivindicado pelos negros e traçado pelo estado do Pará, havia cinco aldeias que foram desconsideradas.
Diante do impasse, a demarcação de ambas as terras foi suspensa, sob o pretexto de que só um acordo entre índios e negros resolveria a situação. “No fim, ficou parecendo que a culpa do processo não andar era nossa”, disse o cacique Juventino, presidente da Associação Indígena Katxuyana, Tunayana e Kahyana (Aikatuk).
Por três anos foram feitas diversas reuniões com as lideranças de ambos os grupos e os órgãos envolvidos. Em 2013, o MPF de Santarém moveu uma ação civil pública contra a União e a Funai requerendo resultados quanto à questão da sobreposição. Nada disso, contudo, fez o processo andar. Até que, em 2015, o quilombola Aluízio Severo dos Santos, 66 anos, entrou na roda de discussão. Além de ser uma liderança antiga e respeitada, seu Aluízio pertencia a uma comunidade que ficava fora da terra que gerava o impasse, o que lhe conferia alguma neutralidade.
“Nós temos de sentar embaixo da árvore e resolver isso sem os brancos”, foi a primeira proposta do quilombola. Os índios acharam boa a ideia. “A gente sempre tem vivido ao lado dos quilombolas como irmãos. Então não tem por que a gente agora ficar brigando por terra”, disse o cacique Juventino.
A solução foi rápida. Os quilombolas abriram mão da área onde ficavam as cinco aldeias e foram recompensados por outra, ao norte. No fim, seu Aluízio ligou para a procuradora Fabiana Keylla Schneider, 32 anos, responsável pelo processo no MPF. “Doutora Fabiana, nós chegamos num acordo aqui. Agora precisamos que a senhora faça um documento pra gente”, relembra seu Aluízio.
“Foi criada uma disputa que não existia, mesmo porque cada um sabia mais ou menos onde era o seu limite”, disse a procuradora, que atendeu ao pedido. O acordo foi assinado em Santarém, e índios e quilombolas fizeram um churrasco coletivo para comemorar. O Iterpa acatou a decisão. O Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará (Ideflor-bio), que mantém uma floresta estadual na área de pretensão quilombola, aceitou refazer os seus limites. A Funai, contudo, continua com um pé atrás por uma questão que, no momento da conciliação, passou despercebida aos negociadores.
Galeria de fotos: a vida na aldeia Santidade
Retomada
A terra indígena Katxuyana-Tunayana, cuja homologação tramita na Funai, tem 2,2 milhões de hectares – área equivalente a 14 vezes a cidade de São Paulo. Existem ali 18 aldeias e dezenas de povos falantes da família linguística Karib. Os Katxuyana, que batizam a região, são uma minoria, mas sua história é emblemática. Reflete o drama dos povos tradicionais, não apenas do oeste do Pará, mas de toda a Amazônia.
Em 1968, no auge da ditadura militar, os Katxuyana foram retirados de suas terras originais e levados para o parque do Tumucumaque, no extremo norte do município de Oriximiná, fronteira com o Suriname. A operação, conduzida por um grupo de religiosos católicos com apoio da Força Aérea Brasileira (FAB), tinha a motivação oficial de frear a mortalidade causada por doenças trazidas pelos brancos, principalmente gripe, sarampo e tuberculose.
“A gente estava se acabando”, disse Honório Awahuku Kaxuyana, 72 anos, que conversou com a reportagem numa noite de junho, sentado na varanda de uma das casinhas de madeira e palha da aldeia Santidade. Irmão de Juventino, ele era o cacique durante a remoção e diz que, na época, não havia nada a fazer senão ir embora. “Pra saúde foi melhor, se a gente tivesse ficado, nada disso aqui existia mais”, disse.
No Tumucumaque, os Katxuyana passaram a viver junto dos Tiriyó e de várias outras etnias também levadas para lá, com as quais não tinham nenhuma relação e não partilhavam sequer o mesmo idioma.
Apesar do trauma causado nas famílias e do impacto na manutenção da cultura de cada povo, ações como essa não eram raras durante o período militar, segundo a antropóloga do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé) Denise Fajardo. “Nos anos 1960, o modelo era concentrar povos diversos em aldeias-base onde houvesse um posto indigenista ou uma missão religiosa.”
Ainda segundo ela, apesar de ter havido, realmente, uma série de mortes que motivaram a remoção, é necessário levar em conta outros fatores, como o projeto de construir uma hidrelétrica em Cachoeira Porteira. “A gente fica pensando se esse modelo de centralizar as populações foi proposital para que os planos de desenvolvimento pudessem se realizar, ou se era a única perspectiva que o Estado tinha pra evitar essas mortes. Agora, é difícil pensar que uma coisa não estivesse relacionada à outra”, disse.
Com o aumento populacional na missão Tiriyó, que chegou a contar com 700 habitantes, não demorou para que surgissem problemas com os quais os indígenas da região, acostumados a viver em aldeias de 25 a 50 pessoas, não estavam acostumados. “Não tem onde fazer roça, não tem mais o que caçar e o que pescar, não tem mais nada”, disse seu Honório sobre a situação atual do Tumucumaque. A solução foi retomar o território do qual eles haviam sido retirados mais de quatro décadas antes.
O movimento de retorno, liderado pelo cacique Juventino, começou no ano 2000 e ainda está em curso. Os Katxuyana já estabeleceram três aldeias ao longo do rio Cachorro, a última delas em 2009. Ao todo, já retornaram 160 pessoas e há entre 10 e 15 ainda no Tumucumaque.
Fragilidade
Além de comportar o espaço de retomada do povo de seu Juventino, a terra Katxuyana-Tunayana abriga um grande número de índios isolados. A Funai não sabe ou não divulga quantos ou de que etnia são esses povos, numa tentativa de preservar a opção deles por não contatar o homem branco. Há, ainda segundo a antropóloga Denise Fajardo, uma grande preocupação com a entrada de garimpeiros, madeireiros e até de missionários evangélicos, que invadem as terras na tentativa de catequizar esses povos.
Em parte por causa disso, ao analisar o acordo firmado entre índios e quilombolas para a demarcação de ambas as terras, a Funai demonstrou preocupação. A forma como a área foi redelimitada deixou a foz do rio Kaspakuru fora da terra indígena, o que poderia facilitar a invasões que ameaçam a preservação da cultura.
Outra questão que preocupa os indígenas da região é um empreendimento pesqueiro no qual os quilombolas da comunidade de Cachoeira Porteira passaram a investir. Pousadas foram erguidas nas margens do rio Trombetas e pescadores viajam das mais diversas regiões do país em busca de alguns dias de diversão com os peixes da Amazônia.
Eles chegam em aeronaves convencionais, que pousam numa pista de terra, ou em hidroaviões, que os levam direto para as áreas de pesca. Numa busca rápida na internet, é possível encontrar pacotes de viagem que prometem sete dias de pesca no rio Trombetas por R$ 3.800.
“A gente se alimenta do peixe, a gente não brinca com o peixe”, disse Juventino. “Eles usam a pesca como um esporte, mas muitas vezes quebram o anzol na boca dos peixes, eles não conseguem comer e acabam morrendo”, explicou o cacique, que, quando o assunto é a preservação do ambiente, não se furta a repreender o próprio povo.
No dia em que a reportagem visitou a aldeia Santidade (a 22 horas de barco de Oriximiná), por exemplo, os Katxuyana festejavam a abundância da caça. Em uma única noite, haviam matado dois jacarés, uma paca, um mutum e uma avantajada piranha-preta que logo seriam assados na lenha para ser servidos acompanhados de mandioca em alguma de suas diversas formas. Pode ser beiju, farinha, tapioca ou tucupi, mas ela está sempre presente no prato dos indígenas.
Diante da grande bacia de alumínio onde o alimento esperava pelo preparo, seu Juventino repreendeu os caçadores da vez. “Temos de tomar cuidado pra não exagerar, senão um dia acaba”, explicou.
Mas, apesar da preocupação, o cacique, assim como os quilombolas, é a favor da manutenção do acordo firmado “embaixo da árvore” em parceria com seu Aluízio. “Não queremos mais voltar atrás pra ter novos conflitos. Os detalhes que faltam ser ajeitados não cabem mais aos indígenas e aos quilombolas. Cabem ao Estado e à Funai”, disse. Procurada, a Funai não indicou entrevistados até o fechamento desta reportagem.