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Segundo documento, Agnelli disse que governo chinês estaria à frente dos norte-americanos na "batalha por acesso às commodities"

Reportagem
5 de julho de 2011
15:00
Este artigo tem mais de 13 ano

Os chineses são “desajeitados”, querem controlar a matéria-prima mineral da América do Sul e ameaçam o dólar. As três definições são atribuídas a executivos da Vale segundo três telegramas da estrutura diplomática dos EUA no Brasil, vazados pelo Wikileaks. Três diretores mais o então presidente da empresa, Roger Agnelli, tiveram audiências, de acordo com os documentos.

Na última semana, a multinacional brasileira do setor de mineiração negou “veementemente” o conteúdo de um outro telegrama, rechaçando a possibilidade de que Guilherme Cavalcanti, que ocupava a diretoria de Finanças Corporativas da empresa – hoje é diretor de Finanças e Relações com Investidores – tenha participado de reunião com diplomatas em outubro de 2009.

Os novos vazamentos são anteriores. O mais antigo data de 26 de maio de 2006. Do lado do governo dos EUA estavam o assessor econômico do consulado, o encarregado de negócios e o cônsul-geral, Edmund Atkins. Pela Vale, consta menção ao então diretor de Relações Internacionais da Vale, Renato Amorim (atualmente sócio da consultoria Carnegie Hill). O colóquio teria tratado da preocupação estadunidense acerca da influência de petrodólares venezuelanos na América Latina e sobre a ascendência da China na região.

O segundo é de maio de 2007. É narrado encontro no dia 18 daquele mês com menções a presença de Roger Agnelli (que deixou o posto de presidente da Vale em março deste ano) e Tito Martins (presidente da Inco, subsidiária canadense da multinacional brasileira). O centro da reunião com o embaixador Clifford Sobel teria sido a importância estratégica sul-americana do ponto de vista da mineração e o interesse da China no mercado de matérias-primas.

Em 11 de maio de 2009, uma nova audiência teria ocorrido com a presença de Cavalcanti . O tema, de acordo com o relato, foi consulta sobre possíveis compras da Vale de bens e equipamentos da indústria dos Estados Unidos – apesar da forte concorrência chinesa.

Desajeitados

De acordo com o primeiro telegrama, Renato Amorim relativiza a tal influência venezuelana e gasta algum tempo para sustentar que não via ameaças reais da China aos Estados Unidos na América do Sul. Nem coloca o Brasil como futuro posto avançado da potência asiática para fornecer matéria-prima.

Amorim qualifica de “desajeitada” a ação chinesa nos países latino-americanos. Diz ainda que a visita do presidente Hu Jintao em 2004 fez mais barulho e gerou mais expectativas do que resultados. O mandatário chinês esteve naquele ano Brasil, Cuba, Chile e Argentina.

O diretor completa dizendo que a China precisaria reconhecer a região como mais sofisticada do que a África – onde estava promovendo uma ação “arbitrária” de caráter “colonizador”. Por tudo isso, diz o telegrama, ele avaliava que chineses e estadunidenses não teriam dificuldades de evitar conflitos em suas ações no continente.

Sob controle chinês

Um ano depois, o relato é de encontro do embaixador Clifford Sobel com Roger Agnelli Tito Martins. Declarações são atribuídas apenas ao presidente da Vale, que teria enumerado as reservas relevantes de minério na região, incluindo urânio, ferro, estanho, ouro, petróleo e níquel. Isso é que explicaria a avidez chinesa para abastecer, com as matérias-primas, sua expansão industrial.

“O plano chinês é logo controlar não apenas as reservas minerais do continente (sul-americano) mas também as redes de distribuição e transporte bem como a infraestrutura portuária”, avaliou Agnelli, segundo o relato de Sobel. O caso africano aparece novamente como exemplo. A visão atribuída ao comandante da Vale é de que China ganhou influência excessiva naquele continente.

A reflexão prossegue: “Se a china trancar as reservas africanas, isso criaria desequilíbrios no mercado internacional na medida em que os consumidores nos EUA e Europa teriam de pagar preços mais altos”. Conforme o telegrama, o governo dos EUA teria, na visão de Agnelli, de pensar seriamente no que fazer caso os orientais “vencerem a batalha por acesso às commodities”.

A República Popular da China estaria em vantagens por ter um governo centralizado tomando decisões em vez de várias empresas agindo de modo mais disperso.

A descrição é motivo de alguma surpresa para Sobel. “Como a CVRD (nome usado até o fim de 2007 pela Vale) obtém muito dos seus lucros recordes de vendas de minério de ferro para a China, em vários sentidos são parceiros”, diz o telegrama. À época, Martins era diretor do Conselho de Negócios Brasil-China, e Agnelli tinha assento no comitê consultivo da organização.

As vendas da Vale à China representaram 29,5% do total no primeiro trimestre de 2011. O percentual é quase o dobro do que vai para o Brasil (17,8%) e três vezes o que vai para o Japão (10,7%), respectivamente segundo e terceiro destinos. No último trimestre de 2010, a fatia para o gigante asiático era de 34,6%. Em 2009, no perto do auge da crise financeira, eram 55%.

Ameaça ao dólar

No documento não classificado emitido pelo consulado do Rio de Janeiro, comenta-se um outro suposto encontro de Guilherme Cavalcanti, desta vez com representantes do Banco Export Import dos Estados Unidos e o embaixador Clifford Sobel, há bastante detalhamento sobre o papel da China.

Cavalcanti teria enumerado, segundo o documento do consultado do Rio de Janeiro, grandes contratos firmados com empresas chinesas concorrentes das norte-americanas. Isso poderia se agravar em algumas frentes, já que as indústrias chinesas de equipamento e maquinário “em questão de tempo poderão competir com a Caterpilar (multinacional de tratores e máquinário de veículos pesados)”.

Com os chineses reduzindo a distância da qualidade dos produtos e com facilidade de crédito, os Estados Unidos correriam o risco de o dólar perder terreno como moeda global do comércio. O modelo imaginado para esse mercado envolveria exportações da Vale de minério de ferro para a China que, em contrapartida, exportaria equipamentos ao Brasil. “O próximo passo lógico seria substituir o dólar americano da cesta de moedas”, teria conjecturado Cavalcanti.

Procurada pela Agência Pública, a Vale preferiu não se manifestar.

O documento é parte de 2.500 relatórios diplomáticos referentes ao Brasil ainda inéditos que foram analisados por 15 jornalistas independentes e estão sendo publicados nesta semana pela Agência Pública. LEIA MAIS

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