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Com apoio do governo chileno, um punhado de famílias poderosas têm garantido cotas de pescaria muito acima do que a realidade permite

Reportagem
17 de fevereiro de 2012
11:58
Este artigo tem mais de 12 ano

Por Juan Pablo Figueroa Lasch

São 10h30 da manhã de um domingo de agosto, sete milhas do porto Corral e a tripulação do barco Santa María II ergue a rede depois de meia hora na água. O capitão Eduardo Marzán  assiste à operação da ponte com uma feição carrancuda. À sua esquerda, outros 14 navios repetem as manobras feitas pelo  Santa María II há 4 dias, numa busca infrutífera por sardinhas.

O governo do Chile divulgou em 2010 que as sardinhas ainda eram abundantes em águas chilenas enquanto o carapau encabeçava a lista de 13 espécies que estavam ameçadas. Hoje, até as sardinhas estão escassas.

O Santa María II pertence à Lota Protein, empresa do Koppernaes Group da Noruega que há 21 meses trava uma batalha legal com oito grupos que possuem direito a 87% do carapau em águas chilenas, além da maioria das sardinhas, anchovas e merluza. A Lota Protein afirma que um leilão pelas cotas proporcionaria uma parcela justa a outros.

Famílias chilenas poderosas dominam esses grupos. Eles são, essencialmente, os senhores dos peixes do Chile.

Uma análise pelo International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), com o centro investigativo chileno CIPER, revela que, ao longo da última década, os governos permitiram sistematicamente que estas famílias obtivessem cotas de pescado altamente irrealistas diante das constatações científicas sobre a situação dos mares. Isto contribuiu significativamente para uma dramática queda da cavala no Pacífico Sul, que já foi um dos campos de pesca mais ricos.

O Santa María II procura em vão. Finalmente, o sonar aponta um cardume e a tripulação joga a rede de pesca em sua perseguição por quatro vezes. Menos de 40 toneladas entram nos tanques que suportam 850. O capitão Marzán abandona seu otimismo de costume. O resguardo de dois meses para proteger as sardinhas foi adiantado pelas autoridades e começa à meia-noite, em algumas horas.

O sonar não capta nenhum sinal e Marzán ordena que sua embarcação retorne para casa. Eu pergunto se ele iria voltar para pescar cavala e ele suspira pesado. Até alguns anos atrás, ele responde, ele poderia ter rumado para La Feria, um pequeno setor a 30 milhas da costa onde os barcos eram tão numerosos em noites boas que suas luzes pareciam uma cidade flutuante. Mas, aqueles dias vão longe.

Pelo rádio, muitos capitães que estão em águas abertas, além da zona exclusiva do Chile, contam a Marzán que eles passaram 15 dias pescando e seus compartimentos estão praticamente vazios.

Mario Ulloa, que pilota o Santa María II, relembra os dias de glória: “Nós apenas manejávamos e recolhiamos a rede. Enchíamos o compartimento em uma única coleta e retornávamos ao porto com uma carga completa de cavala. Saíamos, duas, três vezes por dia. Havia bastante peixe, mas ninguém sabia como cuidar dos estoques”.

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Controle frouxo, estoques sumindo

A lei de pesca máxima, um dos dois códigos pesqueiros do Chile, data de 2001. Durante os anos 1990, os chilenos pescaram mais de 28 milhões de toneladas de cavala e o governo baixou medidas de controle. Os pescadores artesanais – são mais de 80 mil deles hoje – ganharam acesso exclusivo à cavala dentro de cinco milhas a partir da costa e 5% da cota total. As indústrias ficaram com o resto.

Logo após da promulgação da lei, porém, o peixe grande comeu os menores. As principais companhias compraram os competidores, contratando pescadores artesanais para adquirirem cotas. Juntos, eles operam um trust pesqueiro informal, uma rede intrincada onde uns possuem a parcela que estão no nome de outros. E agem em conjunto para defender seus interesses.

O governo não cobra pelas cotas. Companhias pagam apenas uma pequena taxa sobre a tonelagem bruta de suas embarcações, cerca de 2% de seus ganhos com exportações, que correspondem a 30 milhões de dólares no ano. O governo pretende adotar uma política de royalties a partir de 2013, reconhecendo a pesca, como a mineração, como um recurso natural de extrativismo. A indústria tenta impedir isto.

Os chilenos pegaram 72% da cavala pescada no Pacífico Sul de 2000 a  2010, mas a competição se intensificou depois de 2005. Um grupo de nações formaram a South Pacific Regional Fisheries Manegement Organization (SPREMO), e as maiores embarcações pesqueiras do mundo pescam com redes de arrastão além das águas chilenas.

A população real de peixes em águas chilenas está tão baixa que os navios não atingem suas cotas desde 2007. Em 2010, o limite de cavala era de 1,3 milhões de toneladas; as redes pegaram menos de 465 mil. Lota Protein tem 1,4% da cota de cavala. A empresa não pescou o suficiente em 2011 para atingir estes níveis.

A lei que regula a quantidade máxima de pescado no Chile foi criada para durar dois anos, mas, através de um lobby pesado, os senhores da pesca a mantiveram em vigor. Uma nova medida, aguardada para ser aprovada em 2012, não traz grandes mudanças. Ela permite a pesca da cavala quando abundante e maior acesso a outras espécies.

Autoridades chilenas propõem cotas baseadas no conselho da Ifop, o instituto governamental de pesca. Estas informações são repassadas ao Conselho Pesqueiro Nacional, o CNP, formado por funcionários, líderes sindicais, um advogado, dois engenheiros e dois biólogos marinhos. Mas 60% dos membros do CNP são da indústria e a maioria comanda.

Se o CNP rejeitar a proposta, a nova cota será automaticamente ajustada para o correspondente de 80% da que está em vigor. Em 2009, enquanto as reservas de cavala despencavam, o Ifop aconselhou o teto de 750 mil toneladas. O governo propôs 1,4 milhões de toneladas – quase o dobro – e o CNP aceitou.

O biólogo marinho Eduardo Tarifeño, da Universidade de Concepción, é membro do CNP e diz que o órgão tem um pequeno impacto nas decisões. “Tudo é combinado antes que cheguemos às sessões”, ele contou ao ICIJ. “A indústria conversa com o secretário de pesca e pergunta quanto o governo pretende propor. Então, eles dizem ao governo que precisam de mais toneladas para manter a indústria trabalhando”.

Em 2010, o governo adotou medidas de proteção mais fortes depois que cientistas do Ifop que estimaram aproximadamente seis milhões de toneladas em águas chilenas em 2001 acharam nenhuma em 2009. O governo ordenou um corte de 76% nas cotas, resultando em um teto de 315 mil toneladas em 2011. O CNP aprovou a quantidade.

Mas essa atitude promissora não durou. Em 20 de dezembro do último ano, o CNP se reuniu sem Tarifeño (que estava ocupado em uma aula) e rejeitou um corte significativo para 2012.

Ainda que se espere uma mudança no papel do CNP, em 2013, decorrente da nova legislação, limitando a influência da indústria, as perspectivas não são boas. Tarifeño defende que seria necessário proibir a pesca da cavala durante cinco anos para salvar as reservas.

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Jogadas políticas e privilégios

Enquanto a crise piora, oficiais do governo e líderes da indústria trocam acusações, cada lado culpando o outro pela diminuição dos peixes.

Pablo Galitea, sub-secretário de pesca, culpa as grandes companhias – e governos anteriores que eles manipularam – por capturar peixes demais.  Ele disse ao jornal El Mercurio em dezembro: “Pesqueiros foram administrados com uma visão de curto prazo, que provocou um dano irreparável aos recursos”.

Luis Felipe Moncada, presidente da Asipes, uma das duas maiores associações industriais, disse ao ICIJ que a culpa é das autoridades, e não do CNP. Se o governo quisesse proteger os peixes, ele disse, teria gradualmente imposto cotas menores.

Ele disse que o governo abusou do uso de uma polêmica categoria conhecida como “pesca de investigación”, pesca de pesquisa científica, que permite às empresas burlar limites como os de tamanho mínimo do pescado. E disse que o problema começa no norte do Chile, onde o influente empresário Roberto Angelini controla 75% da cota de cavala em uma área crucial para a reprodução. A captura de peixes menores ou muito jovens está colocando os recursos naturais em risco, disse Moncada.

O Chile reserva mais de 3% das cotas para pesquisa, sem limite de tamanho do peixe. Cientistas usam apenas uma fração dessa pesca; o resto vai para a indústria. Mas autoridades chilenas confirmaram ao ICIJ que por anos esta exceção tem sido aplicada à cavala. Em 2011, isso teria significado uma fatia de 17% do total das cotas para “pesquisa”, o equivalente a cerca de 48 mil toneladas.

Agravando a situação, novas regras abaixaram o limite mínimo de tamanho da cavala, no norte do Chile, de 26 centímetros para 22. O limite no Peru, por exemplo, é de 31 centímetros.

Os herdeiros

Além da pesca, o império de Roberto Angelini inclui a maior empresa de petróleo do Chile com 620 postos de combustível. Ele é presidente da Copec S.A., um conglomerado que abrange madeireiras, produção de celulose, minas, energia elétrica, lojas de varejo e revendas de automóveis. A família possui 60% do capital da empresa.

Os chilenos chamam Angelini, 63, de “o herdeiro”. Ele recebeu o império de seu tio Anacleto, que emigrou da Itália em 1948 e casou com uma chilena. No ano em que Anacleto morreu, 2007, a revista Forbes o colocou como o homem mais rico da América do Sul, com uma fortuna estimada em 6 bilhões de dólares.

Quando Roberto era adolescente, seus pais o mandaram viver com o tio. Ele estudou na Verbo Divino, a escola católica favorita da elite do Chile – o presidente Sebastian Piñera estudou lá. Depois de formar-se na Universidade Católica, abriu seu próprio caminho. Em dois anos, entrou nos negócios da família em um de seus principais segmentos: pescaria. Em alguns anos, Anacleto o acolheu como seu sucessor.

Hoje, as duas empresas pesqueiras de Angelini, Orizon e Corpesca, controlam 29,3% de toda cota da pesca da cavala. Juntas, estas companhias abastecem 5,5% do mercado de pescado no mundo.

Reservado, Angelini evita entrevistas e câmeras. Também não quis se pronunciar nessa reportagem. Um punhado de fotos o mostram grisalho, atlético e desenvolto, geralmente com uma gravata vermelho escura. Quando a Itália o homenageou com a Ordem do Mérito, ele se comunicou apenas com alguns seletos convidados na embaixada em Santiago.

Roberto Sarquis é outra figura pivô. Sua fortuna vem exclusivamente da pesca. O avô de Sarquis começou uma pequena empresa em 1961. Nos anos recentes, sua companhia comprou várias pequenas firmas de pesca e em 2011 fundiu-se com um competidor para criar a Blumar S.A. O grupo tem a maior cota individual da pesca de cavala, 18,6%. Sarquis é presidente da maior associação industrial, Sonapesca. Até dezembro de 2010, ele era membro na CNP, o influente conselho nacional de pesqueiros.

Roberto Izquierdo Menéndez, 71, assumiu o cargo de Sarquis na CNP. Sua família possui duas empresas pesqueiras, Alimar e Sopesa, e ele comanda um conglomerado com parte na maior companhia de telecomunicações do Chile, o jornal financeiro mais importante do país, uma grande indústria de papel, uma fábrica de polipropileno e, desde 2010, uma usina termoelétrica.

Jorge Fernández e os irmãos Jan e Klaus Stengel, antigos rivais, fundiram a maior parte de suas operações de pesca em 2011. Juntos eles controlam 17,2% da cota de pesca de cavala. Ambas as famílias têm sólidos negócios separadamente, incluindo fazendas de salmão no sul do Chile.

Francisco Javier Errázuriz, 69, tem uma pequena cota de pesca mas é um membro de destaque no grupo. Conhecido como “Fra-Fra”, ele foi um candidato a presidente em 1989, representando a centro direita, e depois eleito senador. Quando esteve no Congresso, foi multado e suspenso por sequestro e agressão em uma disputa por água.

Recentemente, Errázuriz foi acusado de tráfico humano pela importação ilegal de pelo menos 150 paraguaios para trabalhar em suas terras. Em outubro de 2011, logo depois de ser formalmente acusado pelo promotor, Errázuriz teve um derrame e não saiu mais do hospital. Ele permanece no hospital. Sua empresa não respondeu ao pedido de comentário do ICJF. Seu filho Francisco Javier tem se encarregado de negar publicamente as acusações de tráfico humano contra o pai.

Sarquis, Fernández e Izquierdo Menéndez também não responderam aos pedidos de entrevista.

O mar é dos homens de negócio 

No Santa María II, Jaime Araneda fala sobre sua família de pescadores, lembrando seu avô. Ele trabalhou por 11 anos em navios de grandes empresas. Agora, teme o futuro.

Quando Araneda começou a pescar, barcos voltavam depois de três ou quatro dias, sempre cheios de cavalas. Hoje, ele vai para o alto-mar além das águas chilenas por no mínimo 12 dias. Os barcos voltam quase vazios.

“O mar não pertence mais aos chilenos”, diz Araneda. “Ele pertence aos homens de negócio. Se as coisas continuarem assim, em um ou dois anos não compensará pescar no Chile”.

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Leia a reportagem original em inglês e em espanhol.

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