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Nos preparativos para a Copa, os tradicionais bondinhos de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, esperam uma solução. Moradores dizem que o sucateamento levou a acidente que matou seis pessoas em 2011

Reportagem
1 de fevereiro de 2012
07:00
Este artigo tem mais de 12 ano

Os trilhos de ferro estão lá, encrustrados nas ladeiras de Santa Teresa, bairro do centro do Rio de Janeiro. Lembram um tempo bom que, embora recente, já traz saudade à comunidade. Os taxis ainda não gostam de subir os paralelepípedos escorregadios do morro, os ônibus passam derrapando nas curvas e os carros – antes raros por ali – agora entopem as ruas estreitas, disputando espaço com pedestres.

Tudo porque o bonde, meio de transporte tradicional do bairro há mais de 100 anos, não está mais lá. Hoje só se vê a falta que faz nas imagens que o representam “chorando”, pintadas nos muros ou estampando adesivos e cartazes que cobrem o Largo do Curvelo, na rua mais antiga do bairro.

Os bondes foram tirados de circulação depois de um descarrilamento ocorrido no dia 27 de agosto de 2011, matando seis pessoas. Não se sabe exatamente o que provocou o acidente – o inquérito ainda não foi concluído pelo Ministério Público. Mas os moradores têm motivos para acreditar que o sucateamento proposital dos bondes, que acompanharam de perto, é o grande responsável pelo “pesadelo” que viveram.

Em uma tarde chuvosa em Santa Teresa, Abaeté Mesquita, advogado, morador e diretor secretário da AMAST (Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa) se emociona falando do que considera “uma tragédia anunciada”. “Foi um projeto político que trouxe esses bondes ‘frankensteins’ para o nosso bairro – porque não eram bondes tradicionais nem trens de tecnologia moderna, eram um misto – resultando em acidentes terríveis. Não temos dúvidas de que o sistema de bondes foi sucateado para justificar a entrada de trens de alta tecnologia a valores superiores a um milhão de reais e ser transformado em um elemento puramente turístico”, denuncia. E explica:“A imagem do bonde de Santa Teresa sempre foi usada para vender a Copa mas nosso bonde tradicional não iria comportar o turismo de massa”.

O pesadelo toma forma

O sistema de bondes sofreu várias tentativas  de ser modificado e até extinto durante mais de um século até que os moradores conseguiram seu tombamento em 1988. Bem antes disso, a artista plástica Maria Lúcia pegava o bonde todos os dias para ir à escola e ao mercado.

“Morei 40 anos em Santa Teresa e a gente usava o bonde para tudo porque era pontual, a gente conhecia os motoristas. Muitas vezes eles já sabiam dos nossos horários e esperavam uns dez minutos na porta de casa se a gente atrasava” lembra. “Na época da ditadura militar também tentaram acabar com os bondes mas não conseguiram” diz.

Em 2003, um morador fez uma denúncia ao Ministério Público sobre o abandono completo do sistema de bondes de Santa Teresa, um bem tombado. O processo ficou rolando de um lado para o outro e enquanto isso a CENTRAL (Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística)  firmou contrato com uma empresa da cidade de Três Rios chamada Ttrans para “restaurar” os bondes. Em 2007, a comunidade recebeu de surpresa o primeiro bonde com tecnologia modificada, e não restaurado como se esperava.

“Os bondes foram levados para a cidade de Três Rios, no interior do Rio para restauração mas o que aconteceu foi uma aventura tecnológica do então secretário estadual de transportes Júlio Lopes e da CENTRAL, junto a Ttrans – que não tinha experiência com bondes”, conta Abaeté.

Segundo ele, a empresa fez um trabalho de engenharia reversa, desmontando os bondes para ver como funcionavam e utilizar esse conhecimento para programar a construção de 14 VLT’s (Veículo Leve sobre Trilhos) – trens para transporte de massa em áreas planas com tecnologia de ponta. “Na época, a recuperação dos bondes originais custaria menos de 300 mil reais. Cada VLT custaria um milhão de reais”.

O primeiro VLT que chegou a Santa Teresa não saiu do lugar. Do mesmo jeito que chegou, em cima de um caminhão, voltou para Três Rios. “Seria muito mais barato e simples restaurar os bondes nas oficinas do bairro, que fizeram isso durante todo este tempo. A Ttrans foi a única empresa a participar desta licitação e mais tarde o contrato com a Central foi cancelado por irregularidades na planilha de gastos” lembra, Abaeté.

Nem bonde, nem trem

Os VLT’s voltaram de Três Rios seis meses depois. Enquanto isso, alguns bondes tradicionais sucateados continuavam em funcionamento, em processo de canibalismo, transferindo peças de um bonde para outro para substituir as que estavam quebradas. O primeiro acidente com o VLT aconteceu  ainda dentro da oficina, quando um trem que estava parado escorregou e pegou a perna de um funcionário.

Na ocasião, a AMAST diz ter recebido denúncias de que a maior dificuldade da empresa era no sistema automático de freios. “A gente denunciou, mas a empresa desmentia” diz Abaeté. Após um curto período de testes, os “frankensteins”, com aparência estética de bonde  e tecnologia de trens de alta velocidade foram colocados nas ruas. “Os motorneiros morriam de medo de conduzir porque não tinham o bonde ‘na mão’, era tudo computadorizado, algo completamente  diferente do que conheciam a vida toda” diz Abaeté.

Agravando a situação, os bondes restantes foram entregues às pressas e os incidentes começaram a se multiplicar. “Havia sete trens mas eles nunca circularam ao mesmo tempo. Primeiro, porque viviam quebrados e segundo, porque gastavam uma quantidade de energia elétrica que o bairro não dava conta” explica o advogado.

Ao contrário dos bondes antigos, que tinham jogo para andar nas ladeiras e curvas, os novos trens tinham o truck rígido – a parte que suporta o peso da locomotiva,  fornece propulsão, suspensão e freios, que fica entre o trem e a roda – e trepidavam nas curvas com perigo de descarrilar. Com aceleração eletrônica, eram silenciosos demais, causando riscos de atropelamentos e acidentes com carros e motos. “O barulho dos bondinhos alertava os moradores e não incomodava ninguém, ao contrário, as pessoas iam para as janelas vê-lo passar, cumprimentar os vizinhos” diz.

Os outros sete dos 14 VLTs não foram entregues porque o contrato com a Ttrans foi considerado ilegal pelo Tribunal de Contas do Estado e dois diretores da empresa, na época, condenados a pagar multa de 5 mil reais.

O primeiro acidente grave

Em 2008, após sucessivos incidentes, o CREA denunciou vários problemas com os freios dos trens novos, principalmente o fato de estarem localizados fora do trem o que poria em risco sua eficácia se houvesse uma colisão. Foi exatamente o que aconteceu, em 2009, quando o VLT se chocou com um táxi que vinha em alta velocidade em uma curva acentuada.  A batida aconteceu exatamente na caixa de freio externa e o motorneiro não tinha como controlar o trem. Para piorar, os passageiros de um ônibus que vinha atrás do trem se assustaram e Andréa de Jesus Rezende, uma professora de Paraty que visitava o namorado em Santa Teresa, pulou e morreu esmagada.

O inquérito foi arquivado e o taxista levou a culpa. Como não conseguiram anotar a placa, ele nunca foi encontrado. O CREA fez uma investigação para identificar os possíveis problemas de engenharia e mais uma vez a localização do freio foi condenada, mas a Ttrans se limitou a colocar uma grade de proteção na caixa de freios.

Na ocasião,  dois processos que estavam em andamento tiveram decisões. Em um deles, no âmbito federal, que pedia a suspensão da transformação do bonde tradicional – tombado – em VLT houve a condenação da Ttrans por dano ao patrimônio. A justiça determinou a interrupção do processo de transformação dos bondes em VLT até que fosse demonstrado que isso não feria o patrimônio tombado.

O Estado recorreu e conseguiu continuar com os “frankesteins”. No segundo processo, movido pelo Ministério Público na Justiça estadual a partir da denúncia de 2003 daquele morador – que exigia a recuperação integral do sistema de bondes -, o juiz mandou o Estado recuperar o sistema e devolver os 14 bondes tombados. E determinou multa de 50 mil reais por dia em que o Estado não cumprisse a ordem.

“O Estado entrou com mais de 15 recursos e perdeu. A multa chegou a 50 milhões de reais. Na época era preciso 22 milhões para recuperar o sistema e este dinheiro existia, foi dado pelo BID na gestão Rosinha Garotinho e até hoje a gente não sabe para onde foi este dinheiro” denuncia Abaeté.

Foi aí que o processo de “canibalização” dos bondes, segundo a AMAST se agravou: “Para não arcar com a responsabilidade política de tirar os trens de circulação, o Estado permitiu um processo de canibalização, quando em vez de fazer a manutenção, tiravam peças de um bonde para colocar no outro” diz Abaeté.

Antecedentes perigosos

Esses foram os fatos que antecederam o trágico dia 27 de agosto de 2011, quando a sorte dos bondes de Santa Teresa foi selada e os moradores se viram privados do tradicional meio de transporte. Segundo testemunhas, um bonde perdeu o freio e tombou, matando seis pessoas, incluindo o motorneiro Nelson, que há tempos reclamava das condições de segurança dos bondes.

Não se sabe o que o futuro reserva agora para o querido bondinho de Santa Teresa. A CENTRAL respondeu por nota os questionamentos do blog Copa Pública sobre o como e quando o sistema voltará a funcionar e sobre a contratação da empresa portuguesa Carris para fazer a terceira geração de bondes.

Afirmou que haverá a aquisição de 14 novos bondes com características que preservem o tombamento porém com modificações que garantam mais segurança ao material e aos passageiros. E que a expectativa  de conclusão do sistema é  “daqui a dois anos”. Ano de Copa do Mundo!

Sobre os valores dos novos bondes, não tivemos  respostas, mas em entrevista  à revista Veja no ano passado, o presidente da empresa declarou que ficariam em torno de 4 milhões cada. Ainda sobre a relação com a Carris, a CENTRAL afirma ser um termo de cooperação com “intercâmbio de conhecimento e cooperação nos novos projetos”.

A Carris de Lisboa enfrenta uma crise. Atualmente tenta negociar  300 demissões e teve de tirar vários trens de circulação. Há diversas organizações populares que denunciam  episódios parecidos aos da Ttrans em Santa Teresa.

Nesta terça-feira (31), deveria  acontecer a audiência judicial do processo que obrigava o Estado a recuperar o sistema de bondes na justiça estadual, na 3a Vara de Fazenda Pública. A CENTRAL e o Estado deveriam apresentar os termos de referência, ou seja os planos de recuperação dos bondinhos. Segundo a AMAST, A CENTRAL e o Estado não levaram qualquer plano e pediram mais tempo ao juiz, que negou a extensão do prazo (a audiência foi adiada por três vezes) e determinou o prazo de 30 dias para a apresentação dos termos.

A AMAST disponibiliza em seu site todos os processos e documentos que comentamos aqui. Para ler é só clicar AQUI.

O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.

Fotos de André Mantelli, especial para A Pública

Colaborou Marcela Genaro

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