O Maracanã ainda é o nosso Maraca? A pergunta martela a cabeça do torcedor acostumado a frequentar “o maior do mundo” e que assiste aflito às reformas que transformam o estádio para sediar a Copa do Mundo de 2014.
O futuro do estádio mais querido do Brasil também inquieta a torcida, depois da decisão do governo do Rio de entregá-lo à administração privada pelos próximos 20 anos.
Não é a primeira vez que o Maracanã muda de cara – essa é a terceira reforma em treze anos – mas agora os setores populares da arquibancada perderam espaço. Desde abril de 2005, quando o estádio foi fechado para a reforma do Pan-Americano, a geral, o tradicional espaço popular do estádio, foi extinta e o campo rebaixado um metro e meio. No novo projeto, é preciso espremer os olhos para procurar os lugares populares.
Por isso, há alguns dias, torcedores e movimentos sociais integrantes da campanha “O Maraca é nosso”, realizaram um apitaço em frente ao prédio do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, com a intenção de garantir assentos em setores populares e barrar a privatização do estádio, enquanto o Brasil era derrotado pelo México, por 2 a 0.
Cobiçado pela iniciativa privada, o estádio, que foi construído e sucessivamente reformado com dinheiro público, é alvo do onipresente Eike Batista, depois que a Delta Construções, de Fernando Cavendish, amigo pessoal de Cabral, teve que deixar o comando da empresa após denúncias de envolvimento nos esquemas de corrupção de Carlinhos Cachoeira, preso pela Polícia Federal. Em seu blog, o jornalista Juca Kfouri, deu detalhes da transação: “A empresa IMX, de Eike Batista, foi a única a apresentar estudo de viabilidade econômica para assumir o controle do estádio. Dados do TRE confirmam que Eike Batista doou 750 mil à campanha de Sergio Cabral ao governo do estado, em 2010; segundo o jornal Folha de S. Paulo, o empresário anunciou ainda a doação de cerca de 139 milhões a projetos de interesse de Cabral”.
DINHEIRO PÚBLICO A RODO
O volume de dinheiro público já investido na polêmica reforma reforça o questionamento sobre a privatização – $ 808 milhões de reais, de acordo com o último balanço do Governo Federal. Somadas às anteriores – para o Mundial de Clubes da Fifa foram, à época, R$ 106 milhões de reais, e para os Jogos Pan-Americanos de 2007, R$ 304 milhões, já com a justificativa de adaptá-lo às exigências da Fifa para a Copa 2014. Somando as três reformas e atualizando os valores, R$ 1,442 bilhão de reais saíram dos cofres públicos para essas obras, segundo levantamento feito pelo jornalista João Carlos Assumpção em conjunto com o economista Francisco Pessoa.
Tudo isso sem debater com a sociedade os rumos das mudanças que atingem o estádio mais querido do Brasil, mesmo fora do Rio de Janeiro: o Maracanã é um patrimônio histórico, arquitetônico e cultural brasileiro – cuja cobertura é inclusive tombada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Por isso o Copa Pública reuniu um time de aficionados pelo estádio para falar sobre sua relação com o “maior do mundo” e o que pensam dessa situação. Dos jornalistas esportivos como Mauro Cezar Pereira e Lúcio de Castro ao geógrafo norte-americano e membro da Associação Nacional de Torcedores (ANT), Chris Gafney, passando pelo capitão da mítica Seleção Brasileira de 1970, Carlos Alberto Torres e o integrante do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas que participou do apitaço em frente a casa de Cabral Gustavo Mehl. Sem esquecer de entrevistar um torcedor que mostra a que ponto chega a paixão pelo Maraca: Luiz Antonio Simas, mestre em História Social pela UFRJ, que escolheu seu primeiro apartamento pela proximidade do estádio, tamanha sua afeição.
AMOR
“A minha relação com o Maracanã é intensa e cheia de boas lembranças” diz de cara o ex-jogador Carlos Alberto Torres. “Foi onde eu joguei profissionalmente pela primeira vez, no Fluminense, em 63, onde conquistei meu primeiro título profissional como jogador (64) e como treinador (83). E é também o lugar onde eu fiz a minha estreia na Seleção Brasileira. Só me traz boas lembranças”.
Do outro lado, na arquibancada, o historiador apaixonado Antonio Simas, sonhava com o dia em que iria morar perto do Maraca: “O Maraca é uma referência de infância, das minhas relações de afeto familiar. E lá eu vi os jogos mais inacreditáveis. Até pelada de garçom eu vi no Maracanã” define. “Quem mora aqui no Rio procura um apartamento próximo à praia, mas com sinceridade um dos critérios que eu usei para comprar um apartamento foi ele ser perto do Maracanã.”
Já para os jornalistas Lúcio de Castro e Mauro Cezes Pereira, trabalhar com esporte foi consequência de um amor quase religioso ao estádio: “Mal comparando, era a igreja que eu frequentava nos fins de semana. Eu tenho amigos até hoje que conheci no Maracanã, na arquibancada, na geral …” explica Mauro Cezar. Lúcio de Castro completa: “O Maracanã encerra alguma das minhas maiores lembranças. Tardes de domingo, o ritual da passagem com o pai, os bons amigos juntos, um dos mais caros pedaços de minha identidade e memória. A síntese de uma cidade que é a formadora da minha alma e identidade.”
Gustavo Mehl, do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas que participou do apitaço em frente a casa de Cabral vai além e diz que se não fosse o Maracanã, hoje seria uma pessoa bem menos interessante: “Eu e alguns amigos costumamos dizer que somos formados no estádio de futebol. Nas arquibancadas do Maraca dividi espaço e me relacionei com o mais pobre e o mais rico, o mais velho e o mais novo, reconheci pessoas e atitudes amigáveis e outras desprezíveis. Ali tive lições incríveis sobre nossa cultura e nossa forma de se comunicar, se relacionar, criar vínculos. Foi no Maracanã e em São Januário, não tenho dúvidas, que aprendi a me identificar como brasileiro, como carioca, como torcedor, como vascaíno, como pessoa. Como o filho do meu pai, meu companheiro no estádio. Se não fosse o Maracanã, hoje eu seria outra pessoa, certamente bem menos interessante”.
MAIOR DO MUNDO
Para Luiz Antonio Simas, falar sobre a importância do Maracanã para o Rio e para o Brasil é mais fácil quando a gente pensa na importância do próprio futebol para o povo brasileiro:”A gente tem que entender que o futebol para o Brasil tem uma dimensão muito grande. Nós somos um país que tem um passado escravocrata, um país com dificuldades sociais, e o futebol foi um dos meios que as camadas populares conseguiram pate obter uma ascensão. Então acaba sendo um traço de identidade nacional. O futebol aqui acaba sendo uma coisa que vai além do jogo. E o Maracanã é um ícone da cidade do Rio de Janeiro. Ele está tão entranhado na cidade, é uma referência tão grande, que parece que é um elemento da natureza do Rio como a praia”.
Gustavo Mehl engrossa o coro: “O Maracanã já não era um estádio: era um monumento vivo da cidade, patrimônio de todos os cariocas, espaço mítico e sagrado onde milhões de brasileiros de diversas gerações passaram algumas das experiências mais fortes de suas vidas. Demolir o cimento daquelas arquibancadas, da antiga geral, remover as velhas cadeiras, foi como demolir a memória de nosso povo, de nossa gente”.
“Quando o Maracanã foi imaginado, ele iria representar a democracia brasileira” compara Chris Gafney. “A forma mítica, a grandeza e a monumentalidade do estádio representavam um país emergente, se industrializando, entrando em democracia a todo vapor, na década de 50. Ao longo do tempo, o estádio figurava como um lugar público, popular e abria suas portas para outro mundo. Um dos poucos lugares da cidade onde o rico e o pobre se misturavam, se tocava, se gritava junto”, explica o geógrafo.
REFORMA
A paixão dos aficcionados pelo estádio se transforma em indignação quando o assunto é o tanto de reformas que ele tem sofrido nos últimos 13 anos. E alguns nem são totalmente contra elas, mas contra a forma com que foram conduzidas, como Mauro Cezar Pereira: “Determinadas transformações pelas quais o estádio passou eram necessárias porque são novos tempos, questões de segurança, que, de fato, por mais marcantes que fossem aqueles públicos monumentais de quase 200 mil pessoas, era evidente que aquilo não era seguro. Mas não a ponto de fazerem o que fizeram, que é uma descaracterização quase que total do estádio. O Maracanã está sendo violentado de uma maneira que desrespeita inclusive a própria história. E aí quem mostra como as coisas devem ser feitas são os alemães, que passaram antes da Copa de 2006 pelas pressões que o Brasil passou.” Ele lembra que houve pressão por parte da Fifa para descaracterizar o Estádio Olímpico de Berlim, mas que os alemães não se curvaram a isso: “Fizeram reformas e modernizaram o estádio. Mas você vai lá dentro e vê que aquela escadaria atrás dos gols, onde ficou a pira olímpica, onde aconteceu aquela cena marcante do Hitler em 1936 se recusando a cumprimentar atletas negros medalhistas de ouro. E olha que a Fifa até quis fechar aquele anel com alegações do tipo: ‘lembra o nazismo’. O estádio preserva traços originais. E vale lembrar que há estádios que foram usados por exemplo na Copa de 2010, na África do Sul, que não eram melhores que o Maracanã, como o Ellis Park.”
Chris Gafney acredita que o novo Maracanã deve representar a nova forma de mercantilizar a cultura: “O Maracanã é um sítio de conflito nas representações agora. Acho que o governo quer representar o Brasil para o mundo afora como um país ‘civilizado’. Então tem que ter a torcida comportada, tem que ter cadeira cativa, tem que ter camarote, ar condicionado, sala VIP… Estamos pagando pelo estádio três, quatro vezes e por isso vamos ter que pagar ingressos mais caros, e também a manutenção é mais cara no estádio. O povo está sendo abusado nesse sentido, está sendo afastado de seu lugar popular e proibido de participar de sua cultura futebolística.”
“O crime é ainda mais violento porque é feito sem qualquer processo de consulta pública e participação popular, ignorando completamente os torcedores, que são os verdadeiros donos do estádio” acrescenta Gustavo Mehl. “Impor cadeirinhas acolchoadas em todo o estádio, com lugares marcados, impossibilitando de assistirmos ao jogo onde e como quisermos, é o mesmo que matar um século de história e de desenvolvimento de nossa cultura, em nome de uma perspectiva de assistência europeia dos jogos”.
PRIVATIZAÇÃO
“Assim é fácil ser empreendedor! O Estado banca os custos e quando tudo estiver pronto, entrega-se para a iniciativa privada. Assim eu também escrevo um livro dando conta do belo empreendedor que sou, um midas.” Reflete Lúcio de Castro sobre a possibilidade de o estádio ser privatizado.
Luiz Antonio Simas lembra que o Maracanã não é apenas um estádio: “O Maracanã tinha um projeto ligado à utilização como espaço público, por exemplo, tem um parque aquático, o Parque Júlio De Lamare, tem uma pista de atletismo, você tem um projeto social ligado ao Estado de permitir à população de baixa renda fazer atletismo, fazer natação de graça, e você está usando um bem que foi construído e reformado com dinheiro público para preparar isso e entregar à iniciativa privada. Qual é o retorno disso?”
Chris Gafney é mais sucinto: “O governo quer privatizar o estádio e dá-lo ao Eike Batista. Esse é um abuso de dinheiro público.”
“Aí vão dizer: ‘Ah, mas o Estado não pode administrar um equipamento tão caro’. Então por que faz a obra? ‘Ah, mas a Fifa exigiu’. Mas por que a gente tem que se curvar à Fifa? ‘Ah, então não teria Copa do Mundo aqui no Brasil’. Então não vamos ter Copa do Mundo no Brasil. Eu posso querer comprar uma Mercedes conversível não posso?” questiona Mauro Cezar Pereira.
Gustavo Mehl acredita que há interesses políticos poderosos envolvidos nesta questão: “A começar pelos interesses dos grupos empresariais da construção civil. Não é coincidência que a Delta, empreiteira do amigo pessoal do governador, denunciada no esquema do bicheiro Carlinhos Cachoeira, estivesse no consórcio construtor do novo Maracanã. Outros grupos também serão beneficiados pelo modelo oligopolista de controle de camarotes e espaços VIPs. As empresas são donas destes espaços e distribuem os ingressos de acordo com seus interesses”.
E O POVO?
Chris Gafney lamenta que os movimentos sociais tenham demorado para começar a agir: “Quando anunciado que o Brasil sediaria a Copa, em 2007, era o momento de começar a agir. Em 2007 e 2008, quando estava sendo planejado o projeto olímpico era o momento para a gente vir à cena e não deixar a coisa rolar. Agora estamos vendo o que vai acontecer com o Maracanã ficamos chocados e estamos reagindo. Acho que o problema é o seguinte: as pessoas não querem entender o futebol, o ato de torcer, como uma coisa política porque não queremos politizar nosso lazer, nossas próprias identidades. Mas para mexer com o futebol e suas estruturas, para humanizar o futebol de novo temos que politizar nossos atos de torcer.”