Muito antes de Fortaleza ser confirmada como cidade sede da Copa do Mundo de 2014, as travestis Carla e Luana* já trabalhavam nas imediações da imponente Arena Castelão, área histórica de prostituição na cidade. Nas avenidas que rodeiam o estádio e em algumas ruas que adentram os bairros pobres da região, elas, as colegas e prostitutas dividem as calçadas e os clientes em busca de programas que custam de 5 a 50 reais.
Durante a tarde de uma segunda-feira quente e seca, típica de abril nordestino, quando acompanhei o trabalho do pessoal da Associação Barraca da Amizade (ONG que há 26 anos atende e acolhe crianças e adolescentes em situação de rua e desde 2009, a pedido das meninas e meninos, também desenvolve um trabalho de combate a exploração sexual) o movimento não era tão grande – duas prostitutas e três travestis se esgueiravam pelas poucas sombras oferecidas pelos muros altos de uma grande empresa, perto de uma rotatória, fugindo do calor. Carla e Luana descansavam em casa de uma noitada de diversão. Sem cafetinas a quem prestar contas, as duas podem fazer seu horário de trabalho. As que estavam na pista, eram abordadas pelos educadores da Barraca, que distribuem preservativos e gel lubrificante como forma de redução de danos e de aproximação.
“Hoje, além das mulheres e adolescentes, trabalhamos com 30 travestis aqui da área, levando insumos, marcando exames nos postos de saúde, oferecendo cursos profissionalizantes e atendendo a algumas demandas delas. Há pouco tempo nós conseguimos, após articulação com orgãos oficiais, a transferência de um médico que fazia piadas homofóbicas com as travestis de um posto de saúde da região. Esses resultados ajudam a fortalecer essa confiança no nosso trabalho” explica Paulinha, como a assistente é carinhosamente conhecida entre as travestis. Por confiarem em Paulinha, Carla e Luana abriram as portas de sua casa próxima à Arena e me receberam para falar sobre suas expectativas e medos com a chegada da Copa e também sobre um fenômeno que têm crescido com a aproximação do megaevento na cidade:
A viagem do silicone
“Eu vou agora em julho para São Paulo botar silicone no peito, 450, 500 ml em cada. Também vou bombar de novo [por mais silicone industrial no corpo]: bunda, quadril, perna e joelho. Aí na Copa eu vou cobrar mais” diz Carla, 25 anos, que há 10 se prostitui no entorno do Castelão, apontando para as partes do corpo que pretende aumentar. “O silicone industrial dói demais, você fica pra morrer! A mulher injeta e vai fazendo uma massagem para ele espalhar. Mas é a dor da beleza, né?” Ela afirma que foi para a “pista” com 15 anos porque quis, assim como a amiga Luana, de 22 anos, que diz ter começado a fazer programas aos 17 também por opção. “Eu fui uma das primeiras a chegar aqui no Castelão. Hoje a coisa está feia, tem muita postituta fumando pedra e isso queima nosso filme. Ao mesmo tempo que a gente espera que a Copa aumente o movimento, tem medo que a polícia queira limpar a área. Você acha que o prefeito vai querer mostrar isso para os gringos?” pergunta. “Mas a gente é atrevida, se me tirarem daqui vou para ali!” Sua deficiência visual parece não atrapalhar o trabalho ou seus planos e nunca é mencionada. “Peitão e bundão chamam a atenção aqui. Em São Paulo não, porque as mariconas sabem que trava que é muito bombada, é mais rodada, preferem as com carinha de menino. Mas aqui no Ceará quem tem peitão é mais procurada” diz entre um comentário e outro sobre a reprise da novela que está passando na televisão.
Luana, que já foi para São Paulo colocar as próteses, explica como funciona: “Tem as cafetinas que levam a gente, pagam a passagem e a operação em uma clínica clandestina. Deve sair uns dois mil reais para elas. Aí ela cobram o dobro ou o triplo e mais uma diária de 30 a 50 reais para a gente morar na casa delas e a gente vai trabalhando para pagar. Trabalha muito, muito mesmo”.
Carla acrescenta: “Eu já fui fazer programa em São Paulo. É bom porque você ganha mais, mas por outro lado você tem que trabalhar de qualquer jeito, mesmo se estiver doente, não importa. Ninguém vai te dar um remédio. Eu já vi umas travestis apanharem de pau de uma cafetina”.
Segundo as duas, o movimento entre as cidades aumenta a cada dia: “Só essa semana, fiquei sabendo de quatro que foram. Mês que vem sei de mais cinco. É muita travesti botando peito” diz Luana. Ela conta que pagou três mil reais por suas próteses de cerca de 400 ml porque era conhecida da cafetina e que ficou oito meses trabalhando em São Paulo para pagar a dívida. Muitas acabam não voltando porque viram dependentes químicas da cocaína – que ajuda a aguentar o trabalho intenso e é mais acessível na cidade – e não conseguirem pagar suas dívidas. Uma delas fugiu da casa onde estava e neste momento está desaparecida, como me contaria depois Marcela, que conheci já em São Paulo.
Lídia Rodrigues, outra educadora da Barraca da Amizade, conta que algumas travestis chegam a fazer de 30 a 40 programas por dia em São Paulo e que os educadores têm percebido que este trânsito para a capital paulista está se intensificando: “Não dá para afirmar que é somente por causa da Copa, mas elas sabem que virão muitos turistas e muitos homens para a área. Ao mesmo tempo a gente tem medo de uma higienização massiva. Provavelmente o termômetro disso vai ser a Copa das Confederações”.
Tráfico de Pessoas
Lívia Xerez, coordenadora Estadual do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado do Ceará diz que, apesar do discurso das travestis de que fazem a viagem por vontade própria, a situação pode ser considerada sim como tráfico de pessoas.“Por mais que elas não denunciem ou achem que estão indo porque querem, o protocolo de Palermo define o tráfico de pessoas como ‘o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração’. Neste caso, elas seriam as vítimas e os aliciadores os criminosos” explica, referindo-se ao protocolo da ONU contra o Crime Organizado Transnacional, que foi ratificado pelo governo brasileiro em 2004.
Ainda há muito preconceito e medo por parte das próprias vítimas em denunciar os aliciadores, diz Livia: “Elas são ludibriadas com promessas de uma vida nova, por vezes luxuosa, de ganhar mais dinheiro e por isso não conseguimos chegar. Muitas também têm medo, talvez por sermos um aparelho oficial, de que serão criminalizadas, quando na verdade elas são as vítimas. Por isso ainda não conseguimos provas de que isso têm aumentado por conta da Copa, apesar de termos fortes suspeitas”.
Outro fator que impulsiona o tráfico é a falta de alternativas profissionais para as travestis, explica Lídia: “Nós temos uma parceria com o programa Vira Vida do SESI, que dá cursos profissionalizantes para elas mas, no fim das contas, quantas empresas contratam travestis? Nós trabalhamos com muitos garotos que nem eram travestis, eram apenas homossexuais, mas foram colocados para fora de casa e apareceu uma cafetina que ofereceu dinheiro caso eles se montassem. Para a juventude não existem políticas públicas em Fortaleza como existem para crianças e adolescentes – que ainda assim são escassas. As travestis têm o discurso da emancipação, como se a prostituição fizesse parte da própria identidade de ser travesti. Mas nem todas estariam ali se tivessem outras opções”.
“Me senti como a presidente Dilma”
Marcela*, 22 anos, cabe no exemplo dado por Lídia. Após cursos profissionalizantes e várias tentativas de arrumar um emprego, ela acabou indo para a rua. Quando nos encontramos de manhã em um shopping do centro de São Paulo para conversar, a cearense arrastou todos os olhares masculinos para seu belo corpo, comprado através do esquema citado por Carla e Luana. “Vim para São Paulo em abril do ano passado. Paguei o silicone do corpo em três meses, coloquei mais, paguei em um mês e a prótese do peito quitei em 20 dias” orgulha-se a travesti, que trabalha das dez da manhã às nove da noite com pausa para o almoço, em um cinema pornô do centro da cidade. “Chego a tirar oito mil reais por mês mas trabalho muito e não saio nem uso drogas. Todo o meu dinheiro vai para a minha mãe e para o banco porque quero comprar uma casa”.
Marcela conta que descobriu sua homossexualidade aos 13 anos e que por algum tempo escondeu a opção da mãe e das quatro irmãs. “Eu sentia muito medo de como elas e a sociedade iriam reagir. Mas não tinha outro jeito, era quem eu era. Então contei e elas até que aceitaram bem”. Já o processo de travestilidade foi mais difícil: “ Minha mãe ameaçou me botar para fora de casa, dizia que eu nunca iria arrumar emprego, não aceitou”.
Ela conta que chegou a se prostituir aos 17 anos mas que preferia trabalhar. Conseguiu uma bolsa de estudos através do programa Vira Vida e passou um ano e meio estudando de manhã e fazendo o curso a tarde. “Eu sempre gostei de fazer cursos, estudar, queria trabalhar com carteira assinada, nunca quis fazer programa” lembra. Marcela diz que chegou a arrumar um emprego em uma firma de lingerie, mas que foi mandada embora quatro meses depois porque adoeceu “e o patrão não aceitou os atestados médicos”. Daí em diante, aceitou trabalhar recebendo metade do salário de outros funcionarios de uma empresa mas em determinado momento não pôde mais se sustentar com o pouco que ganhava e não achou mais trabalho: “Todas as portas se fecharam para mim. Não tive outra opção a não ser ir para a rua. Se eu pudesse, escolheria outra vida. Como não posso, me concentro e trabalho muito para poder juntar algum dinheiro para um dia abrir um negócio. Vou ficar velha e ninguém mais vai me querer”.
Vaidosa, maquiada e bem vestida, Marcela conta que hoje paga 30 reais a diária para a cafetina dona da casa onde mora e mais 30 reais a diária do cinema, de onde a cafetina é sócia, mas que pretende sair da casa da aliciadora e alugar um quarto com mais três colegas de Fortaleza para poder atender aos clientes durante a Copa.
“Eu tenho anúncios em sites e também quero ir para a rua na época da Copa. São Paulo estará cheia de gringos e mesmo brasileiros de outros estados, quero aproveitar”. Para ter lucros mais altos, Marcela assume que já fez sexo sem preservativo: “Tem gente que paga o dobro e até o triplo do valor para transar sem camisinha, aí eu acabo fazendo. Estou com medo de fazer o exame [de HIV], mas sei que a saúde vem em primeiro lugar” se contradiz.
Após a Copa, Marcela pretende ir para a Europa, ganhar em euro. “Já falei com uma pessoa que leva travestis para lá. Ela cobra 10 mil reais para passar a gente”. Pergunto se ela não tem medo. “Que nada, é a mesma coisa daqui, só que ganhando em euro”. Voltar para Fortaleza, só mesmo de férias, como foi há poucos meses: “Nossa, me senti uma celebridade lá, me senti como a presidente Dilma! Todo mundo vinha falar comigo, ver como eu mudei, até as pessoas que falavam mal de mim viram que eu conquistei”. Com o dinheiro arrecadado na Copa mais o que pretende conseguir na Europa, Marcela pretende aproveitar o sucesso para aí sim voltar para o Ceará e abrir seu negócio. Um salão de beleza ou uma loja de roupas, porque adora moda. Olhando para o relógio, ela se despede. É hora de voltar para o cinema.
*Os nomes foram trocados para segurança das personagens
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de fora.