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A partir de hoje, a Pública acompanha a Rota Inca 2013, uma iniciativa de intercâmbio cultural com os povos e comunidades indígenas da América do Sul

Reportagem
6 de julho de 2013
08:00
Este artigo tem mais de 10 ano

Cerca de 200 jovens vindos da Alemanha, dos Estados Unidos, da Argentina, da Bolívia, do Brasil, de El Salvador e tantos outros países se reúnem durante os meses de  junho, julho e agosto para dar vida a uma original universidade – a Universidade Itinerante do Qhapaq Ñan (“caminho do Inca”, em quéchua). É esse o objetivo do Projeto Rota Inca, realizado desde 2000 como iniciativa de valorização e promoção das culturas indígenas da América Latina.

Criado por Ruben de La Torre, diplomata peruano de origem quéchua que se aposentou por escolha própria para dar vida à Rota, o projeto surgiu da experiência que o ex-diplomata teve ao participar da Rota Quetzal, promovida pelo governo da Espanha. Nela, jovens espanhois selecionados viajam aos Andes paar conhecer o antigo caminho usado pelo império para negociar na colônia.

A intenção do Projeto Rota Inca, porém, é fugir da expedição feita a partir da visão do colonizador. Além de ser uma universidade itinerante – os participantes aprendem sobre conhecimentos centenários de povos tradicionais do continente – a Ruta Inka se diz uma “embaixada cultural” dos povos indígenas. Desde sua primeira edição, já reuniu mais de 800 jovens, de cerca de 50 países diferentes. Nesta nona expedição, o caminho a ser feito se divide em duas etapas: a primeira vai do norte do Chile, norte da Argentina e sul da Bolívia, até La Paz. A segunda parte de La Paz, sobe o Peru e entra na Amazônia brasileira até a chegada final, em Manaus.

Para a primeira etapa, parte dos viajantes se reuniu em La Paz. Dali, partiram para Visviri, uma cidadezinha na fronteira do Chile com a Bolívia, onde puderam participar da celebração do Año Nuevo Aymara, correspondente ao ano 5.521, no solstício de inverno – que  aconteceu no dia 21 de junho.

A Pública foi até lá e continuará acompanhando a expedição nas próximas semanas, com o texto e as lentes da nossa repórter Jessica Mota. Você poderá acompanhar outras informações também pelo instagram @agenciapublica.

|21/06/2013| Año Nuevo Aymara

O ano é 5.520. E a temperatura é inversa à altura. 4.200 metros levam o termômetro a menos 20 graus. Não dá para sentir os dedos dos pés. O melhor lugar é ao lado das duas fogueiras que queimam no centro do pequeno povoado. Ali, alguns homens e poucas mulheres se reúnem, regando o frio com álcool e música. Em frente às fogueiras acesas, uma mesa é posta em oferenda.

O pequeno povoado é Visviri, cidade chilena na fronteira com a Bolívia, de  casas com cara de novas. Ali está o ginásio, a escola, a praça central para eventos. Cercada pelas cordilheiras, Visviri – que em aimará significa “sussurro do vento” – é mais uma cidade de passagem do que de estadia.

Naquela noite do dia 20 de junho – ainda no ano de 5.520 – atrás da mesa posta em oferenda estavam o yatiri (uma espécie dfe xamã) Ignacio Torres, de 54 anos, e sua senhora, Pascuala Vasquez, de 56. Eles foram os escolhidos pela comunidade para celebrar os rituais do ano novo aimará, seguido por muitas das comunidades descendentes do Tahuantinsuyo, o antigo império Inca que englobava partes do que são hoje Peru, Bolívia, Chile. O Ano Novo Aimará se dá no solstício de inverno; é a celebração de um ciclo. Este ano representa o fechamento de um ciclo de 500 anos, que marcará o ressurgimento e fortalecimento da cultura indígena. Os quinhentos anos anteriores, para eles, foi a vez dos espanhóis.

Em Visviri, a festa começa à noite e segue durante a madrugada até o sol raiar.

Ignacio é yatiri da comunidade há 15 anos. À meia-noite, falando em aimará, ele inicia a pagua, ofertando à Pacha Mama, a Santa Terra,  maior divindade da cultura indígena dos Andes, folhas de coca e outras guloseimas. Às cinco da manhã, o ano já é 5.521. A festa continua morro acima, logo ao lado do vilarejo, onde será o ápice da cerimônia.

Ao chegar, a oferenda já está ali: uma lhama, vendada e amarrada. O ritual segue lento. Sempre ao som do huayno, a música folclórica típica da região, tocada com zampoñas (espécie de flauta) e tambores. Queimam-se folhas de coca, derrama-se vinho e cerveja à terra. Sempre dançando, em movimentos alegres, os moradores vêem o sol nascer.

É então que se posicionam ao redor da lhama. Na cosmogonia andina, a lhama representa o número quatro, sagrado para os povos originários por representar o comunitário e a justiça. Andando em círculos, jogam folhas de coca, confetes, cerveja e vinho nas costas do animal. Surge uma faca pequena e amolada. O pelo branco da lhama se banha em vermelho, e o coração do animal é atirado à fogueira. Uma oração é feita a Pacha Mama, e  a festa segue.

O ano é 2013. Hoje, alguns poucos os habitantes das redondezas se reúnem pela manhã para dar boa vinda ao sol. Alguns não requerem a cultura aimará. Outros são evangélicos. Em Visviri, o ano novo aimará voltou a ser festejado há apenas dez anos, depois de séculos de silêncio.

Do outro lado da fronteira, na Bolívia comandada pelo indígena Evo Morales, desde 2009 o dia 21 de junho – o ano novo aimará – é feriado nacional.

|04/07/2013| O triste vôo de Evo Morales, visto pelos bolivianos 

Já são 17h da tarde do dia 04 de Julho. Nos Estados Unidos se comemora o dia de Ação de Graças. Na Bolívia, em Uyuni, a cidade começa a ficar um pouco mais fria. O canal sintonizado na televisão do pequeno restaurante de esquina na Avenida Arce é a Bolívia TV. A programação é interrompida para mostrar a chegada de Evo Morales, o presidente, a Cochabamba. Ao seu lado, Rafael Correa, presidente o Equador, e Nicolas Maduro, da Venezuela.

No dia anterior, o presidente da Bolívia havia passado por uma longa jornada. Ao voltar de uma conferência na Rússia, teve permissão dde vôo negado peça França, Itália, Portugal e Espanha. A suspeita era de que o presidente abrigava Edward Snowden, um ex-colaborador da CIA qua vfazou documentos revelando um gigantesco esquema de vigilância dos Estados Unidos aos dados virtuais de milhões de cidadãos na internet. Pouso forçado na Áustria, revista no avião. Nada de Snowden. E pode isso, justo com o presidente?

Pergunto a Tamara Cruz, 24 anos, que está atrás do balcão do restaurante limpando copos. “Mui malo”, larga. “Não se faz isso com ninguém, nem com o presidente, nem com qualquer pessoa”. Tamara acha que poderia ter acontecido alguma tragédia no avião. Ela ainda arrisca na suspeita de que o problema todo está no fato de Evo dar atenção aos direitos das crianças e das mulheres, em especial as indígenas. “Os outros são machistas, não gostam disso”, arremata.

As palavras de Tamara parecem ecoar na pequena cidade turística no sul da Bolívia. No mercado de frutas, a senhora Severina Saavedra, por trás dos dentes-de-leão e astromélias que vendia, também desgostou: “malo”. Em outro corredor, uma senhora sentada atrás de maçãs e tangerinas, vociferava: “É um atentado ao presidente, isso não se deveria fazer. Eu penso que é por influência dos Estados Unidos”. Falava, mas tinha medo de se identificar.

Já Franz Martinez, advogado, era a voz destoante. De dentro de seu escritório, com uma porta baixa de acesso, dentre outras portas baixas que davam acesso a vários outros escritórios, ele reclamava do exagero da indignação pátria. “Aqui o presidente Morales é endeusado”, disse com voz acelerada. “Dizem que o presidente foi sequestrado em Viena, mas não é assim. Ele estava no aeroporto de Viena, sentado, esperando”, fala alto, a voz sobre a cúmbia, que soava da rádio no canto do pequeno quarto.

No fim do dia, no meio da feira noturna de roupas de Uyuni – algo parecido com a Feira da Madrugada, em São Paulo – entro em uma loja que vende de tudo, de DVDs, a brincos e presilhas para cabelo, ao melhor estilo 1,99. Ali, o presidente do Comitê Cívico do município de Taahua, povoado indígena da região do Salar de Uyuni, Adelio Lopes, de 51 anos, usa a palavra que a senhora do chapéu azul no mercado central também usou: atentado. “De acordo com as informações que acompanhamos na televisão, vejo como um atentado ao presidente. Não há outro argumento”. Sua esposa – que se declara indígena antes de tudo – Ana Verónica Cruz, de 47 anos, o interrompe. Orgulhosa: “Se fosse uma briga de punhos, nós ganharíamos”.

 

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