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Depois de 20 anos trabalhando no mesmo jornal, meu amigo decidiu pegar o boné e sair com os princípios intactos

Da Redação
30 de maio de 2014
09:00
Este artigo tem mais de 10 ano

 

A notícia me chegou por uma amiga em comum: Bill Conroy pediu demissão.

Puxa. Se tem uma coisa que eu tinha como certa nesses doze anos de jornalismo era que Bill, jornalista investigativo dos melhores, americano, daqueles que falam “tiras” e “vamos acabar com eles” (quase sempre na mesma frase) jamais ia largar o seu trabalho como editor do San Antonio Business Journal, um jornal semanal sobre finanças e economia no Texas, emprego que fazia com diligência e pouca paixão – mas que lhe permitiu criar os 3 filhos – enquanto com obstinação, todas as noites, ele passava horas lendo documentos judiciais e falando com fontes da DEA, da CIA e do FBI para tentar desvendar o lado podre da guerra contra as drogas conduzida pelo governo americano na fronteira com o México, a duzentos quilômetros dali.

Bill nunca foi um rebelde, nunca buscou a fama e nunca reclamou do seu destino: ele trabalhava de dia e investigava à noite porque tem aquele ímpeto de contar as histórias que têm de ser contadas, porque seu faro lhe diz quanta injustiça está sendo feita e porque ele está, como tantos, condenado a ser repórter. Sua dupla personalidade jornalística – da qual ele falou neste perfil – era bem resolvida. Graças a ela, quem lê o site de jornalismo “autêntico” Narconews ficou sabendo de histórias como a “Casa dos Mortos”, uma série de assassinatos perpetrados por membros do cartel mexicano de Juarez com  o apoio de um agente da DEA; sobre o jato Gulfstream II, parte de uma operação secreta da CIA que carregava 3,7 toneladas de cocaína quando caiu no México; além da sua ajuda essencial na história em que mostramos que os agentes da DEA expulso por Evo Morales da Bolívia por espionagem vieram parar no Brasil com a anuência do Ministério da Justiça.

Mais que isso, todo ano ele tira licença por dez dias para ir ao México, onde dirige voluntariamente o curso de jornalismo investigativo da Escuela de Periodismo Autêntico, no qual cerca de 70 jovens latinoamericanos aprendem a fazer na prática jornalismo de guerrilha – trabalho que com muito orgulho compartilhei com ele durante dois anos. (leia aqui mais reportagens de Bill).

Mas eis que o Bill pediu demissão, e o motivo não podia ser outro: como em muitos jornais na decadente indústria de notícias dos Estados Unidos, a perda dos anúncios acabou sendo substituída por uma busca frenética de receitas em soluções improvisadas e bastante questionáveis. É o caso dos “advertorials”, anúncios publicitários que são escritos em formato de reportagem, com se fizessem parte do conteúdo do jornal, com apenas um pequeno aviso no topo da página. Aqui no Brasil, são chamados de “publieditoriais”. Segundo conta Bill no relato que traduzi abaixo (cujo título em inglês é “take this job and shove it”) o formato sempre existiu no San Antonio Business Journal, mas um novo chefe estava tentando obrigar a redação a erradicar de vez a tênue linha entre o que é marketing e o que é jornalismo. E aí que um dos mais íntegros e mais obstinados jornalistas que eu conheço não aguentou. Depois de 20 anos, perdeu a paciência.

Pois é, jornais da velha indústria: vocês perderam o Bill Conroy.

A guerra pelo jornalismo autêntico está só começando” 

Por Bill Conroy

No dia 1 de Maio, dia internacional do trabalhador, eu entrei no escritório do meu diretor no meio da tarde, quando ele finalmente deu as caras na redação, e pedi demissão do cargo de editor-chefe do San Antonio Business Journal, cargo que ocupava há 20 anos. Durante esse período o jornal sempre foi lucrativo e eu nunca tive que demitir ninguém. Eu tinha uma equipe veterana, a maioria deles com mais de 10 anos de casa – uma raridade na indústria de notícias hoje em dia. Ironicamente, eu fui a primeira pessoa que já demiti – por duas razões.

A primeiro é tão velha quanto os jornais – e vale também para o beisebol. Quando um treinador discorda de um novo presidente do clube sobre alguns jogadores ou sobre a estratégia geral, o treinador quase sempre perde e fica fora do jogo. O mesmo acontece na indústria de notícias. Eu tive uma discordância filosófica com um novo diretor que não apreciava a separação entre a produção editorial e a seção de anúncios e vendas. A certa altura, depois de uma longa discussão sobre por que eu não deixaria meus repórteres escreverem textos para os “publieditoriais” ele disse que “pretendia continuar apagando a linha divisória” entre anúncios e reportagem, e que se isso se tornasse uma questão ele simplesmente podia alegar que não foram os repóreteres que escreveram os anúncios. Mas desde então eu sabia que meus dias estavam contados. Eu poderia sair com a minha integridade, ou poderia trocá-la pelo meu salário. Mas a razão numero 2 tem tudo a ver com o novo diretor, um vendedor de 30 anos sem experiência em jornalismo que substituiu um diretor que esteve no cargo por 20 anos e já havia sido editor de um jornal.

Embora eu não possa falar pelos outros jornalistas, eu suspeito que muito do que direi aqui vale para outros cantos da indústria.

A empresa American City Business Journals (ACBJ), pertencente o grupo Charlotte, detém a maior cadeia de jornais semanais de economia nos Estados Unidos (cerca de 40 jornais), é dona do San Antonio Business Journal. Recentemente, a ACBJ tem passado por uma transformação pública, que é chamada pelos diretores de “Projeto Listrado” (antes, o nome do projeto era “O Jornal Econômico do futuro”, mas foi abandonado aparentemente por causa da mensagem errônea, como aquela placa que se vê em muitos bares no Texas: “Cerveja grátis amanhã”).

O Projeto Listrado foi o jeito da ACBJ lidar com a conclusão de que a internet chegou para ficar e que as notícias gratuitas disponíveis online haviam alterado o seu modelo de negócios baseado em assinaturas.

Essencialmente, o novo modelo “listrado” consiste em por a redação para as suas histórias antes no site, de graça, e depois reescrevê-las para os jornais, e então cobrar o público para ler essas histórias “rescritas’ – tanto na versão online, chamada de “conteúdo impresso versão digital” quanto no jornal semanal (contando com a ideia de que os leitores do online e do jornal não são os mesmos e nunca vão descobrir o truque).

Para mim isso parece uma receita para uma sopa canibal — ou pelo menos esquizofrenia jornalística. Só pode alimentar o ciclo já vicioso que está devorando os jornais tradicionais — causado pela receita em queda dos impressos versus a receita online crescente mas bem menor, se comparado com os custos de pessoal e impressão/distribuição.

O resultado é uma pressão inacreditável para reduzir custos, criando condições de trabalho extremas para os jornalistas que permanecem empregados — já que eles estão escrevendo várias histórias por dia para o site e também produzindo várias reportagens para o impresso por semana. Como resultado, previsivelmente, a qualidade é sacrificada no altar do volume e a moral das redações despenca. E a culpa é jogada nas costas do editor.

A outra pressão criada por este lento sangramento é a frenesi para aumentar as fontes de receita. E o truque é não buscar apenas mais anúncios, que estão diminuindo em toda a indústria, mas também no que chamamos de “áreas não tradicionais” — ou naquilo que o jargão da empresa ACBJ descreve como “cuia”. Para isso você precisa de um tipo especial de diretor – e de editor.

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Artigos em formato publieditorial são uma “cuia” antiga mas robusto, e não é uma surpresa que o novo diretor planeje confiar naquele truque, já que ele é do ramo da publicidade que inventou esse “produto”. O nó para nós, no entanto, foi que pela primeira vez eu senti pressão para fazer os meus repórteres escreverem esses publieditoriais— o que é uma ameaça enorme à credibilidade do jornal, já que, uma vez que isso ocorra, quem vai acreditar no que as histórias escritas pelos mesmos repórteres dizem?

Outra “cuia” de dinheiro para a ACBJ e outras empresas de mídia são as premiações – no caso do San Antonio Business Journal, oito delas por ano. Esses eventos, em teoria, podem ser promovidos com dignidade e transparência se a integridade editorial permanece como princípio fundamental, mas no San Antonio Business Journal, sob a nova direção, esses eventos eram destinados a se tornar pouco mais que enormes audiências privadas.

O objetivo era atrair o máximo de pessoas para cada evento, cobrando por pessoa ou por mesa, e cobando ainda mais dos patrocinadores. E isso significava aumentar o número de vencedores dos prêmios, ou de finalistas. Recaia sobre a redação a tarefa de conduzir essa missão dentro do jornal: a demanda agora incluía escrever a propaganda para esses eventos; agradar os patrocinadores dos eventos quando eles reclamavam ou demandavam privilégios (são as mesmas pessoas e empresas que cobríamos para o jornal) e escolher muitos vencedores e finalistas, mesmo se isso significasse inventar novas categorias ou mudaras regras do prêmio.

Foi isso que me levou a jogar a toalha como editor do San Antonio Business Journal. O novo diretor não podia, ou não queria, entender minhas preocupações e deixou abundantemente claro que iria ignorá-las. Um dia ele chegou a dizer que a batalha para manter a separação entre a redação e os anúncios já acabou, e que “o jornalismo não venceu.”

O pior é que esse cara é feito de um material que eu suspeito que vai se tornar o padrão para os futuros publishers no mercado de jornalismo. E o mesmo desdém pela integridade jornalística também será uma característica dos futuros editores.

Nessa batalha particular o jornalismo perdeu, sim, mas foi esse novo publisher — e outros como ele — que não entendeu, assim como as empresas de jornalismo tradicional continuam sem entender, que a guerra para salvar o jornalismo autêntico está só começando.

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