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Um repórter conta por que acredita no jornalismo da Ponte

Da Redação
29 de junho de 2014
12:11
Este artigo tem mais de 10 ano

Tem coisas que a gente aprende a aceitar que são do jeito que são, que sempre foram assim e não serão diferentes. Tipo: “Fausto, checa essa história de dois caras que foram mortos lá no Parque Trianon. Se forem garotos de programa, faz uma nota por telefone, mesmo. Se for alguém de classe média, aí vale a pena ir até o local e fazer matéria. Pode até ser manchete.” Eu era um moleque de 22 anos, recém-formado em Jornalismo, quando ouvi essa ordem, dita por um chefe do antigo Jornal da Tarde. Fiquei chocado. Eu me chocava com as coisas na época. Até me indignava, acredita? É que eu era um moleque, com muito menos pêlo no rosto e barriga no abdome do que tenho hoje. E um monte de sonhos ainda intactos no peito. Era a primeira vez que ouvia algo assim. Com o tempo, ouviria muitas outras. Anos depois, como repórter de madrugada no Agora SP, trampando enquanto meus chefes dormiam, precisava decidir em quais histórias valia a pena investir e quais era melhor deixar de lado. No dia seguinte, eu seria cobrado se tivesse corrido atrás da história errada. Na base da tentativa e erro, do esculacho e do esporro, fui aprendendo.

Aprendi que, mesmo num jornal que se diz “popular”, as histórias envolvendo gente pobre e negra, desenroladas nas quebradas mais distantes do centro, só enchiam as páginas se o dia estivesse muito fraco, e mesmo assim não repercutiam nas edições seguintes. Histórias quentes vinham de delegacias como o 78º DP, nos Jardins, do 15º, no Itaim Bibi, ou do 34º, no Morumbi (se bem que nesse era bom tomar cuidado porque a região também tinha muitas favelas, onde morte e vida não importam tanto para os jornalistas). Delegacias como o 47º DP, no Capão Redondo, ou o 25º DP, em Parelheiros, eram uma roubada: longes e cheias de histórias que rendiam pouco, porque aconteciam com gente que não valia tanto.

Logo, eu mesmo já tinha aprendido a fazer as perguntas certas para avaliar uma pauta.

“Esse cara que foi morto tinha qual profissão, você sabe?”

“Em que bairro isso aconteceu?”

Ou, sendo mais direto:

“Tem ideia da classe social dos envolvidos?”

Afinal, se era assim que as coisas eram, sempre foram e sempre serão, não adiantava fazer diferente.

Acho que em poucas áreas do jornalismo as barreiras entre as classes se mostram com tanta evidência como na cobertura policial – talvez só nas matérias de comportamento a opção por privilegiar a classe média branca seja tão ostensiva. A justificativa vem travestida de argumento comercial. Dizem que nem mesmo os pobres gastam dinheiro em jornal para ver outros pobres como eles. Que pobres e ricos, negros e brancos, preferem ver os dramas de ricos e brancos. Durante anos, o mesmo argumento foi usado para afastar os negros da publicidade e das capas de revista. Essa noção é tratada como uma verdade evidente por si mesma – embora nunca tenha sido testada, já que ninguém faz diferente.

E não só os jornalistas agem desse jeito. O poder público segue a mesma lógica, até porque pauta e é pautado pelo noticiário. A polícia brasileira, com sua estrutura ineficiente de divisão em Civil e Militar, só tem condições de investigar uma fração dos crimes que chegam até ela. Que critério ela vai usar nessa peneira? Ir atrás dos casos que geram mais repercussão na mídia é um deles. Agradar a pessoas influentes é outro. É só comparar a estrutura mobilizada pela polícia para investigar os casos envolvendo gente branca e bonita do centro expandido, como o casal Nardoni ou Suzane von Richtofen, que envolveu equipes enormes e recursos de seriado americano, com os inquéritos envolvendo gente da periferia, que muitas vezes se arrastam por meses sem fazer o trabalho mínimo de ouvir as testemunhas arroladas nos boletins de ocorrência.

Quando quer promover um policial, o governo o leva para os DPs nobres; ir trabalhar nas delegacias e nos batalhões da periferia é considerado uma punição e um exílio. Tanto para o governo como para os jornalistas, a vida além do centro expandido vale menos.

Como ia dizendo, com o tempo a gente aprende a aceitar que as coisas são como são e deixar de lado a rebeldia. Faz parte do processo de amadurecimento. E, se tem uma lição que o jornalismo ensina com propriedade, é a do conformismo. Creio que poucos ambientes conseguem ser mais autoritários do que uma redação de jornal. Os profissionais muitas vezes trabalham à margem da lei, aceitando condições de trabalho que provocariam uma greve se fossem impostas a operários de uma fábrica. São contratados ilegalmente, obrigando a abrir empresas para burlar a CLT, e vivem trabalhando de graça, entregando às empresas centenas de horas extras que nunca serão pagas. Demissões coletivas, chamadas passaralhos, fazem parte da rotina, e ninguém as contesta. Ordens vindas das castas superiores dos editores são tratadas como decretos divinos e discuti-las é visto como heresia.

Os repórteres, seres da redação que estão em contato mais próximo com a realidade, são os que recebem menos, tanto em grana como em prestígio, já que a realidade não importa. O que importa é o que a chefia diz que é a realidade. E não adianta discutir. As coisas são o que são. Aceitar é bom. Abaixar a cabeça significa matar o moleque rebelde dentro de você e amadurecer. E, uma vez maduro, só falta se deixar apodrecer e morrer.

O engraçado é que tem sempre uma galera com outro jeito de enxergar. Até veem as coisas como são, mas preferem olhar para como elas podem ser. E, hoje, com as novas tecnologias, nunca houve tantas ferramentas para gente desse tipo fazer as coisas do seu jeito.

Conheci uma galera que é assim, e nada me deixa mais feliz do que estar no meio desse povo e do projeto que estamos criando junto, a Ponte. Aqui, tem gente como Laura Capriglione e Bruno Paes Manso, que eu já lia antes de pisar pela primeira vez numa redação, e que me faziam pensar “um dia, quero escrever histórias que nem eles”. Tem o pessoal mais novo, feito o Padu e o Luís Adorno, que trazem jeitos novos de olhar para o que a gente achava que já conhecia. Tem André Caramante, que há anos me dá várias aulas de jornalismo só por vê-lo trabalhando, e William Cardoso, amigo de fé e irmão camarada, sangue de contador de histórias correndo pelas veias. Tem os amigos novos: Carol Trevisan, Caio Palazzo, Claudia Belfort, Gabriel Uchida, Joana Brasileiro, Rafael Bonifácio, Tati Merlino. Tem o Milton Bellintani, outro mestre. Tem Marina Amaral e Natalia Viana, que, com a Agência Pública, provaram que as coisas no jornalismo não precisam ser como são.

Todos juntos, sem chefes, e ainda com pouca grana, estamos aprendendo a fazer jornalismo sem pensar no que ele é, mas no que a gente acredita que pode ser. Um jornalismo que olhe para as pessoas, antes de mais nada, como gente. Lembrando uma verdade tão simples: que gente é gente, não importa a cor, a grana, como trepa ou o que faça.

Não temos lados. Não somos ativistas, somos jornalistas. O caminho que escolhemos é o da reportagem, porque é o que sabemos fazer. Tudo o que queremos é ir à rua e contar o que vimos lá. Coisas que fazem a gente se indignar, chorar, rir, berrar. Escolhemos a Ponte porque a gente não gosta de olhar para territórios e fronteiras. Preferimos as possibilidades.

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