Sem vítimas ou representantes dos atingidos na plateia, o governo assinou na quarta-feira (2) o acordo extrajudicial com as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton para reparar os danos sociais, ambientais e econômicos causados pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015. O acerto, que foi articulado pela Advocacia-Geral da União, envolve o governo federal, os governos de Minas Gerais e Espírito Santo e as empresas. Tanto o Ministério Público Federal (MPF) como os Ministérios Públicos (MPs) de Minas Gerais e do Espírito Santo manifestaram repúdio ao texto e não compareceram ao evento, que ocorreu no Palácio do Planalto. Na minuta divulgada com exclusividade pela Agência Pública, os três órgãos eram citados como participantes do acordo. Isso não ocorreu.
Apesar da pompa da cerimônia, a íntegra do documento não foi apresentada – com a promessa de que só será tornada pública após a homologação dos termos pela Justiça. Foram revelados apenas alguns pontos do acerto, que estima os custos das reparações em R$ 20 bilhões. Na versão preliminar a que a Pública teve acesso, as empresas decidiriam como indenizar as vítimas, que não participariam de nenhum órgão ligado à Fundação que será criada para cuidar dos trabalhos de recuperação da bacia do Rio Doce e dos municípios e comunidades atingidos.
Os três MPs criticaram tanto a falta de participação e mesmo de informação às comunidades envolvidas como as diretrizes do documento, que priorizariam “a proteção do patrimônio das empresas em detrimento da proteção das populações afetadas e do meio ambiente”. Em nota publicada no site do MPF, os órgãos reforçam ainda que a assinatura do acordo não extingue as demais ações judiciais movidas pelo Ministério Público em Minas Gerais e no Espírito Santo.
O procurador Jorge Munhós, do Ministério Público Federal (MPF) de Minas Gerais, que integra a força-tarefa de Mariana na instituição, conta que tanto o MPF quanto os MPs de Minas e do Espírito Santo foram convidados a participar das reuniões, em Brasília, entre o governo e as empresas, nas quais foram costurados os termos do acordo. “Obviamente que o MPF, como fiscal da lei, aceitou integrar as reuniões – até para entender o que estava sendo negociado. Chegou um momento em que identificamos que o texto era insatisfatório para reparar integralmente o meio ambiente e a proteção dos afetados. Naquele momento, informamos que não iríamos assinar o documento nem integrar a estrutura de governança”, disse.
Isso ajuda a explicar o porquê de os nomes das três instituições terem simplesmente sumido entre as versões prévias do acordo e o documento final. “Nas versões preliminares, inclusive a que a Pública teve acesso, constavam os MPs, mas como uma expectativa do poder público e das empresas de que, caso concordássemos, integraríamos o acordo. Se fosse um bom acordo, óbvio que hoje estaríamos aplaudindo e assinando. Mas ele se preocupa com a blindagem patrimonial das empresas, com evitar reflexos negativos ao patrimônio das empresas decorrentes da responsabilização, em detrimento da proteção dos afetados e a reparação integral do meio ambiente. Por isso, entendemos que não deveríamos corroborar esse texto”, afirmou.
Os pontos mais críticos no documento assinado no Palácio do Planalto, segundo Munhós, são o estabelecimento de um limite de gastos para as empresas repararem o meio ambiente, as comunidades atingidas, e compensarem os danos ambientais causados. “Existe um limite global, que gira em torno de R$ 20 bilhões, que é valor colocado pelo poder público sem critérios técnicos que o justifiquem. Até hoje não se sabe de onde [esse número] foi tirado, quais os parâmetros técnicos para se chegar nele.”
Apesar de ministros terem garantido, na cerimônia de assinatura, que não há teto para os investimentos, Munhós observa que, se mantido o último texto ao qual ele teve acesso, há poucos dias, existe sim um teto, de 30% do valor total – ou seja, podendo chegar a R$ 26 bilhões. “Até hoje nós temos rejeitos vazando do local onde era a barragem de Fundão. Até hoje o dano continua acontecendo. Até hoje não temos um diagnóstico do que efetivamente foi impactado. Como valorar financeiramente quanto vai custar para reparar esse dano, se não se conhece a sua dimensão?”, questiona o procurador.
Ainda segundo ele, o MPF requereu junto à 12ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais que, após o acordo ser juntado oficialmente ao processo – cujas partes são o poder público e as empresas – sejam concedidas vistas de seu inteiro teor aos procuradores. “Vamos justificar todas as questões de não concordância e requerer que ele não seja homologado”. Munhós explica, entretanto, que o fato de o MPF não concordar com o texto não impede que as partes comecem a executá-lo. “O que não admitimos é que haja uma homologação e que sobre essa questão se faça coisa julgada, impedindo novas questões. O acordo seria muito bom se fosse compreendido como uma garantia mínima de aportes de recursos, de proteção do meio ambiente e dos afetados – aí sim ele seria corroborado pelo MPF. Mas se pretendendo ser um instrumento exaustivo em relação ao evento e todos os seus efeitos, não podemos concordar.”
O promotor Mauro da Fonseca Ellovitch, do Ministério Público de Minas Gerais, explica porque a instituição não exerceu a prerrogativa de ingressar como parte na ação civil pública que tramita na 12ª Vara e, portanto, no documento assinado ontem. “O MP chegou a ser consultado sobre o acordo, mas não teve oportunidade para participar ativamente da elaboração das obrigações, não concordou com a metodologia empregada na negociação do termo e nem com o estabelecimento de uma estrutura mais vaga e burocrática para a execução das medidas de reparação dos danos sociais e ambientais”, diz Ellovitch, que é o coordenador da Coordenadoria Regional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente das Bacias dos Rios das Velhas e Paraopeba.
Assim como Munhós, o promotor ressalta que ainda não teve acesso à versão final do texto, e que portanto não pode avaliar as providências cabíveis quanto à homologação do acordo e quanto a integrar ou não os espaços previstos na estrutura de governança. “Na concepção do Ministério Público, a partir das informações disponíveis ao público até o momento, o documento assinado atende mais às pretensões da Samarco, Vale S/A e BHP Billiton do que aos interesses do meio ambiente e da sociedade. Por isso, a instituição continuará pleiteando e fiscalizando a adoção de providências concretas para reparar e compensar adequadamente os danos deste que é o maior desastre ambiental da história do país”, completa Ellovitch.
Atingidos
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) considerou que o governo “rendeu-se” à Samarco, mineradora que operava a barragem do Fundão. “Não há nenhuma linha que garanta a participação dos atingidos”, diz o texto publicado pela Coordenação Nacional do MAB na internet. “As principais vítimas dessa tragédia foram totalmente excluídas no processo de construção do acordo e também não terão o direito de opinar sobre a reconstrução de suas próprias vidas. Na verdade, as vítimas não terão o direito nem mesmo de se declararem como tal, porque este poder será exclusivo à própria Samarco.”
Durante o evento, a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, afirmou que o governo dialogou com “todo mundo”, inclusive com o MAB. “Só não falamos com o papa porque não deu chance, senão tínhamos falado”, disse. O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, disse que o acordo prevê a constituição de dois comitês dos atingidos em Mariana e Barra Longa, as duas comunidades mais diretamente impactadas pela lama da Samarco. Essa seria uma das 12 propostas de um total de 15 apresentadas pelos movimentos de barragens e pelo Ministério Público de Minas Gerais, e que foram aceitas pelos governos e pelas empresas, disse o ministro da AGU.
Na nota, entretanto, o MAB nega que tenha participado do processo. “Em nenhum momento o governo se mostrou disposto a nos consultar sobre qualquer acordo. O Movimento dos Atingidos por Barragens, enquanto principal movimento social de atingidos por barragens no Brasil, foi completamente ignorado. Fomos informados desse acordo pela própria imprensa, nacional e internacional, que nos ligaram a partir da denúncia realizada pela Agência Pública.”
Conselho Consultivo
Apesar da ausência do texto completo do acordo, as informações divulgadas pela assessoria da Presidência da República, por meio de um release, apontam para duas alterações importantes no texto que foi assinado em relação à minuta elaborada no início de fevereiro. A primeira é a ausência dos MPs, que estavam listados como parte no documento anterior. A segunda é que a nova redação inclui cinco representantes indicados pelas comunidades impactadas (três de Minas Gerais e dois do Espírito Santo) no Conselho Consultivo da Fundação privada que será criada e controlada pelas três empresas – e na qual serão depositados todos os recursos. Como o texto do acordo não está disponível na íntegra, não é possível saber como essas pessoas serão escolhidas.
“A Fundação terá um Conselho Consultivo. Será composto por especialistas, membros da sociedade civil e das comunidades impactadas. Garantirá participação da sociedade e de representantes dos atingidos”, diz o release distribuído pela Presidência. Antes com 15 integrantes na minuta obtida pela Agência Pública, agora o Conselho Consultivo terá 17 membros. O grupo incluirá, além dos representantes dos atingidos, pesquisadores (5), representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (5) e da Comissão Interministerial para Recursos do Mar (2). Antes, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce tinha sete representantes.
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A instância tem possibilidades de atuação limitadas, podendo somente recorrer ao Comitê Interfederativo em caso de insatisfação com medidas e justificativas da Fundação privada. Formado por representantes dos governos federal (4), estadual (2), municipal (3) e por um representante do Comitê da bacia do Rio Doce, o Comitê Interfederativo é a instância na qual deverão ser aprovados todos os atos da Fundação, e onde poderão ser aplicadas sanções em caso de descumprimento de prazos ou metas.
Para o procurador federal Jorge Munhós, do MPF, a instituição ainda não decidiu se vai exercer a prerrogativa prevista no acordo de indicar um dos cinco pesquisadores do Conselho Consultivo. “Isso não foi decidido ainda no MPF, se vamos indicar, se há interesse. Até porque a função do conselho é muito acessória na estrutura de governança, meramente opinativa, sem função deliberativa. É algo a ser estudado. Mas nem sabemos se a versão final manteve essa indicação.”
Reparação
“O atendimento das vítimas é prioritário: nos três primeiros anos a ênfase da execução do acordo é o atendimento das vítimas – reparação, indenização, reconstrução de casas, reestabelecendo as comunidades. Essa é a ênfase desses R$4,4 bilhões, o atendimento à reparação das vítimas dessa tragédia”, disse Adams.
Além dos R$ 4,4 bilhões até 2018, as medidas reparatórias têm um custo total estimado em R$ 20 bilhões, a serem investidos ao longo dos 15 anos de vigência do acordo. “A reparação é a dragagem dos rios, a indenização das casas [destruídas] e das pessoas. Tudo isso são medidas reparatórias, medidas sem limite [de custos]. Toda reparação necessária será integral”, afirmou Adams – embora o procurador Munhós alerte que as versões anteriores do texto estipulavam sim limites de repasses por parte das empresas.
Segundo informações da assessoria de imprensa da Presidência da República, os atingidos que não concordarem com os valores das indenizações propostas pelas empresas poderão procurar a Justiça. Isso, no entanto, não os exclui dos benefícios das ações socioeconômicas que serão bancadas pela mineradoras.
Compensação
Além disso, também até 2018, as empresas investirão outros R$ 500 milhões destinados especificamente para o saneamento básico nas 39 cidades da calha do rio Doce, a título de compensação. Outras 18 ações compensatórias ambientais estão definidas no texto, como a recuperação da área de 5 mil nascentes e da vegetação ao longo de 40 mil hectares, a instalação de programas de monitoramento da qualidade da água e a construção de centros de recuperação de fauna, entre outras. “Eu tive morte de ictiofauna [peixes], que eu não vou recuperar aqueles indivíduos. Eu tive destruição de cadeia alimentar dentro do rio. Eu não tenho como restaurar a cadeia alimentar, então você compensa o dano”, explicou a ministra Izabella Teixeira.
Ao todo, segundo os ministros, o texto estima um teto de R$ 4.1 bilhões nestas medidas compensatórias ao longo dos 15 anos de cumprimento do acordo, ou seja, este é o teto dos investimentos que terão de ser feitos pelas empresas além de reparar os danos. Já o valor total da recuperação ambiental e de outras reparações socioeconômicas, segundo o governo, pode oscilar em alguns bilhões, em torno da estimativa inicial de R$ 20 bilhões, sendo impossível hoje, sem estudos completos de todos os impactos, prever com exatidão quanto será necessário. Por isso, o orçamento será revisto a cada três anos.
“Essa projeção permite que você inclusive gaste mais. Nós não sabemos, e ninguém sabe, o quanto será necessário para reparar, para indenizar. E ela não será limitada por causa disso, porque é indenização. Em relação às compensações, [serão] R$ 240 milhões por ano, em 15 anos, mais os R$ 500 milhões [do saneamento], que entendemos ser um volume de recurso expressivo para as ações de compensação necessárias na região. Não é que estão garantidos R$ 20 bilhões, o que está garantido são as ações, os 38 programas que serão executados”, reforçou o advogado-geral da União.
Cerimônia
A cerimônia de assinatura do texto foi recheada de congratulações, para todos os lados. Nenhuma palavra senão elogiosa foi dita pelos representantes do Estado brasileiro aos presidentes e representantes das mineradoras. “Nós vamos ter uma bacia do rio Doce melhor do que ela estava antes da tragédia”, disse efusivo o ministro Adams. “O interesse comum engajou a todos nós na busca de soluções”, comemorou a presidente Dilma Rousseff.
Pouca coisa foi falada sobre a prevenção de novos desastres. “A tragédia nos deu lições sobre a necessidade de medidas ainda mais bem estruturadas de prevenção de crises e preservação do meio ambiente”, disse, de passagem, a presidente Dilma Rousseff – apesar de o governo apoiar um projeto que tramita no Senado Federal e que pretende reduzir o rigor das licenças ambientais para obras de infraestrutura estratégicas.
Adams enalteceu o papel das áreas jurídicas das empresas e dos governos, por terem levado apenas três semanas para a formatação final do texto. “Tinha reuniões que tinham mais de 40 pessoas, negociando cláusulas. E quem sabe como é negociar cláusula, é difícil – se discute até vírgula”, disse. Depois, o ministro afirmou, em tom apoteótico: “Nós vamos ter uma bacia do Rio Doce melhor do que ela estava antes da tragédia, por causa desse acordo”.
Para constrangimento de Adams, ele foi repreendido pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. “Foram quatro meses de sofrimento, tá? Quatro meses. Três semanas? Nã-nã-não. Três semanas que você está dedicado a isso. Você está indo embora, hoje é o seu aniversário, mas não vai ficar isento não”, alfinetou. Izabella trouxe à tona o conteúdo do telefonema que recebeu do governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), no dia do rompimento da barragem, 5 de novembro. “Mineiramente, ele me disse o seguinte: é grande”, conta Izabella. “Ninguém tinha noção do que veio a ser, e pode ser dito sem nenhuma restrição, o maior desastre ambiental do Brasil”, completou.
Batizado pelo governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB) como um “termo de compromisso de recuperação da região do entorno de Mariana” e “um termo de compromisso da recuperação do nosso querido rio Doce”, o acordo foi celebrado por ele como ferramenta para se chegar a “um Rio Doce muito melhor – não é melhor, é muito melhor! – do que a Bacia Hidrográfica do Rio Doce estava no momento do desastre gravíssimo, que é o maior acidente ambiental da história do Brasil”. Hartung reconheceu que apesar do orgulho demonstrado pelos oradores, a assinatura do documento é só o começo. “As tarefas mais difíceis estão pra frente ainda, tem muita coisa a fazer.”
A presidente Dilma Rousseff usou da fala também para justificar o porquê da assinatura do documento, deixando de lado o embate nos tribunais. “Nós queríamos mais celeridade. Mais importante, conciliamos essa celeridade com a certeza de que nenhum respeito seria desrespeitado. Esses eram os dois pilares fundamentais desse acordo, com a certeza de que nenhuma reparação deixaria de ser feita, e todas as responsabilidades seriam assumidas”. Segundo Dilma, entre as medidas de curtíssimo prazo previstas no texto estão a reparação dos danos pessoais e a restauração das condições de vida das vítimas e da população atingida.
Com um discurso aparentemente voltado aos opositores do governo federal, a presidente disse ainda que o acordo “é uma demonstração de que, quando todos querem, é possível superar crises e vencer grandes desafios”. “A sociedade brasileira poderá olhar para Mariana, para Minas e para o Espírito Santo, e indagar: se eles conseguiram em quatro meses construir uma solução consensual, por que não se faz o mesmo com a crise econômica que afeta o país?”, provocou.
No encerramento da fala de chefe do Executivo federal, uma fala sintetizou o clima de toda a cerimônia: “O desastre vai ficar na história do país, nós sabemos, mas nós queremos que, mais que o desastre, seja o renascimento do rio Doce a mais importante memória a partir de agora”.
Crédito da imagem destacada: Corpo de Bombeiros