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Concebido para ser um eficaz instrumento de regularização ambiental, o Cadastro Ambiental Rural é utilizado por grileiros e quadrilhas que lucram com o desmatamento ilegal, acirrando os conflitos rurais na Amazônia Legal

Reportagem
2 de agosto de 2016
12:04
Este artigo tem mais de 8 ano

O Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento de regularização ambiental que virou política federal pelo Código Florestal em 2012, tem sido útil a criminosos justamente no que deveria ser uma de suas maiores vantagens: o controle, monitoramento e combate ao desmatamento. A Operação Rios Voadores, por exemplo, realizada em junho, revela o uso ilegal do novo CAR. Conduzida pela Polícia Federal (PF), Ministério Público Federal, Receita Federal e Ibama, a operação prendeu uma quadrilha que desmatava e grilava terras públicas no Pará.

Os criminosos financiavam invasões de florestas públicas com empresas de fachada e auxílio de intermediários. O dinheiro pagava trabalhadores, alguns em condições análogas à de escravidão, que desmatavam as áreas para a venda de madeiras nobres. Em seguida, a área do desmate era queimada para fazer pasto para o gado; em alguns casos, plantavam-se soja e arroz.

Para que as áreas das pastagens pudessem ser exploradas por terceiros, arrendadas e vendidas, a quadrilha registrava CARs em nome de laranjas. “Eles criavam esse registro do CAR em nome de laranjas, primeiro, para tirar a responsabilidade de quem estava financiando e, depois, para tentar justificar a posse da área”, explica o procurador Alan Mansur, do MPF paraense, envolvido na operação. Nesse caso, as investigações comprovaram que registrar o CAR em nome dos laranjas era uma tática para demarcar o espaço da organização. “Não pode fazer transporte de animais, por exemplo, e nem comércio pecuário sem o CAR. Eles precisavam disso para ocupar o espaço e para desenvolver as atividades econômicas em terras griladas”, esclarece o coordenador da operação, Higor Pessoa, também procurador do MPF do Pará.

Esquema do MPF mostra como atuava a quadrilha desbarata pela Operação Rios Voadores
Esquema da atuação com uso do CAR pela quadrilha presa na Operação Rios Voadores (Fonte: MPF/Pará) – Clique para ampliar

A quadrilha contava até mesmo com um grupo de agrimensores, especialistas em tecnologias de georreferenciamento, que elaboravam CARs falsos para os laranjas. Eles tinham um método sofisticado de burlar a fiscalização do desmatamento pelos satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Eles delimitavam por GPS a área que iam desmatar, espalhavam vários acampamentos e desmatavam primeiro as árvores mais baixas, deixando as de copa maior em pé. Com isso, dificultavam as análises de satélite, pois as copas escondiam [as áreas desmatadas]”, diz Pessoa.

Segundo os procuradores, entre 2012 e 2015 essa organização movimentou R$ 1,9 bilhão e desmatou cerca de 300 km² de florestas, área equivalente à de capitais como Belo Horizonte e Fortaleza. Habitada pelo povo Kayapó, a Terra Indígena Menkragnoti foi alvo desse desmatamento, além de terras em unidades de conservação. Foram os Kayapó, aliás, que fizeram a primeira denúncia de desmatamento ilegal pela quadrilha. O dano ambiental foi estimado em mais de R$ 160 milhões. O grupo era comandado pelo empresário paulista Antônio José Junqueira Vilela Filho, o “AJ” ou “AJotinha”, preso no início de julho.

Outra quadrilha que usava do CAR para levar adiante um esquema criminoso também foi descoberta pelo MPF do Pará na Operação Madeira Limpa, no ano passado. A ação revelou a existência de um grupo que explorava ilegalmente madeira de assentamentos de reforma agrária e unidades de conservação. Participaram do esquema funcionários públicos como o ex-superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Santarém Luiz Bacelar. O dano aos cofres públicos é estimado em R$ 31,5 milhões.

Segundo a procuradora Fabiana Schneider, do MPF do Pará, que conduziu a Operação Madeira Limpa, a quadrilha usava o CAR para pedir plano de manejo “para esquentar a madeira extraída ilegalmente”. Os planos de manejo são documentos que permitem o desmate controlado e sustentável para determinadas atividades agrícolas. Segundo Fabiana, após fazer o cadastro, a quadrilha criava os Planos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) junto à Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará. “Eles inflacionavam os planos de manejo, inclusive corrompendo funcionários públicos e contratando hackers para criar créditos falsos, e criavam uma cota extra de madeira que poderia ser extraída. Esses créditos falsos serviam para acobertar a extração em áreas públicas, como os assentamentos e as unidades de conservação”, revela. A quadrilha se valia da falta de fiscalização do Estado para agir, diz a procuradora. Procurada, a Semas não respondeu a reportagem.

Servindo à grilagem e expulsões

“O Cadastro não tem qualquer validade para a questão fundiária”, afirmou à Pública Carlos Eduardo Sturm, diretor de Fomento e Inclusão do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão federal ligado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável pelo gerenciamento do CAR no país. Corrobora sua afirmação o diretor de Geotecnologias da Semas do estado do Pará, Vicente de Paula. “Nós observamos a questão fundiária, mas o CAR não tem essa função.”

No entanto, avaliações de outras fontes e alguns casos apurados pela reportagem indicam que a situação é bem diferente. O engenheiro florestal e consultor socioambiental Carlos Augusto Ramos afirma que o CAR tem sido utilizado para a grilagem de terras. “Por exemplo, moro em Belém. Vou na internet e faço o meu CAR sobre uma área em outra região. Só que as pessoas que estão morando, sobretudo, em regiões afastadas não têm internet nem conhecimento sobre essa nova ferramenta para gerar o seu próprio CAR. O que acontece? Dependendo do meu grau de hostilidade, posso chegar e dizer: ‘Olha, você mora numa terra que é minha’”, relata.

Pasto em terra pública grilada descoberta pela Operação Rios Voadores (Fonte: MPF/Pará)
Pasto em terra pública grilada descoberta pela Operação Rios Voadores (Fonte: MPF/Pará)

Maria Arlete, do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do município Ponta de Pedras, situado no arquipélago do Marajó, a 150 km de Belém, denuncia que o CAR tem sido usado por fazendeiros para expulsar das terras moradores ribeirinhos. “Imagina para um ribeirinho da ponta, que não tem informação, ver um fazendeiro chegando pra ele e dizendo que tem um documento [CAR] de que aquela terra é dele. Muitos se apavoraram e saíram das terras”, afirma.

A promotora licenciada e doutora em Desenvolvimento Sustentável Eliane Moreira, do Ministério Público do Estado do Pará, explica que, “para efeitos do CAR, proprietário, possuidor e grileiro têm recebido igual tratamento”. À Pública ela afirmou que, mesmo sem ter sido concebido como mecanismo fundiário, o cadastro sempre teve por pressuposto a existência de uma propriedade ou posse válidas sobre as quais o CAR incidiria. “Ocorre, porém, que na prática este pressuposto tem sido deixado de lado e com isto o CAR passa paulatinamente a servir de instrumento para grilagem”, diz. Um exemplo é a ação movida contra o pecuarista Luiz Losano Gomes da Silva. Assim como ocorreu na Operação Rios Voadores, o MPF acusou também o pecuarista de formar pastos ilegais em terras públicas e usar o CAR para conseguir as Guias de Transporte Animal (GTAs) e comercializar gado criado em área grilada. Gomes da Silva é réu também da Operação Castanheira, que desmontou uma quadrilha que invadiu terras públicas, como a Floresta Nacional do Jamanxim, para a criação e comercialização de gado. Segundo um auto de infração do Ibama, o pecuarista foi responsável pelo desmatamento ilegal de cerca de 1.200 hectares no Jamanxim.

Regularização fundiária

Especialistas consultados pela reportagem perguntam: se o CAR não serve para a regularização fundiária, como explicar iniciativas como o Decreto Estadual 739/2013, que define o cadastro como um instrumento de apoio à regularização fundiária no âmbito do programa Municípios Verdes, ação de combate ao desmatamento no estado do Pará?

“O CAR é realmente apresentado como um primeiro passo para a regularização fundiária. Isso inclusive foi dito pela ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira em várias negociações das COPs [Conferências do Clima]. O CAR é apresentado como a política pública de monitoramento e que, inclusive, ao fazer esse monitoramento pode resolver problemas fundiários”, afirma Marcela Vecchione, pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (Ufpa). “É como se a gente estivesse começando pelo final. A questão fundiária na Amazônia é muito séria e não tem fácil solução. E essa associação do CAR com a questão fundiária já está dominada no discurso oficial”, critica.

Também o Decreto Estadual 1.379/2015, que criou o Programa de Regularização Ambiental (PRA) de Imóveis Rurais do Estado, admitiu como documento válido para o CAR e para o próprio PRA a apresentação de um Certificado de Ocupação de Terra Pública (COTP). O Instituto de Terras do Pará (Iterpa) também anunciou, em parceria com a ONG Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), o Cadastro Ambiental Rural Fundiário (Carf) para acelerar a regularização fundiária no estado. Valendo-se do modelo do CAR, o Imazon afirma que o Carf será mais rigoroso, mas alguns especialistas temem a ideia.

“A gente está descobrindo agora as imperfeições do CAR, e o governo já quer partir para o fundiário? O modelo do CAR não segue o Estatuto da Terra, não segue a posse pacífica e comprovada. Se isso migrar e for efetivado no estado, os fazendeiros podem usar isso para dar legitimidade à grilagem. Hoje mesmo, na prática, ele já está sendo usado para especular terra. Migrando para um modelo fundiário, fechou a tampa da panela”, afirma o professor Carlos Augusto Ramos.

Além disso, o acesso ao CAR pelas populações tradicionais, como os quilombolas, ribeirinhos e até povos indígenas, é outro problema. “Muitas comunidades quilombolas, por exemplo, que apresentam o CAR à pretensão dela [a área pretendida por essas comunidades], estão sobrepostas ao CAR de terceiros. Infelizmente, o acesso a essas comunidades ainda é restrito. Há um atraso com relação a essa população. E em muitas situações já há cadastros sobrepostos a essas comunidades. Eu não vejo um filtro técnico para solucionar esse tipo de situação”, afirma o professor Girolamo Treccani, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufpa. “Para essas comunidades, essa política está caindo de paraquedas”, diz.

“Todo o formato do CAR – Área de Proteção Permanente, Reserva Legal etc –, isso se relaciona muito com a forma que você explora o uso da terra. Só que a forma de uso de um médio e grande produtor rural é completamente diferente das comunidades que têm posse coletiva da terra. Nessas comunidades, tem áreas particulares e tem também uso de determinadas áreas de forma coletiva, mas o CAR não pega esse tipo de sutileza”, avalia a professora Marcela Vechione, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Ufpa. “O CAR gera um certo enquadramento do uso da terra para uso do médio e grande proprietário rural. Não levar em conta essas formas distintas de uso pode gerar uma padronização do que deve ser a forma certa e adequada ambientalmente. E isso é perigoso porque pode mudar pouco a pouco a relação que se tem com a terra e com a importância de se ter a posse coletiva. Já tem notícias de conflitos dentro das próprias comunidades quilombolas, por exemplo”, conclui. Segundo ela, os conflitos se davam porque alguns quilombolas registravam CARs individuais nos quilombos, que são áreas coletivas.

O Marajó tinha “donos”

A região paraense da ilha do Marajó é um microcosmo do caos fundiário que assola a Amazônia Legal. “Treze anos atrás nem se falava em reforma agrária ou regularização fundiária”, explica Rita Serra, vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri Pará). A maior ilha do Brasil e também a maior ilha fluviomarinha do mundo era “uma região tida como um lugar que tinha donos”, afirma. Segundo ela, muitos fazendeiros e produtores locais se apropriaram de áreas públicas por meio de títulos e certidões falsas nos cartórios locais e mantinham grandes propriedades em terras que ainda eram da União. As populações que ficaram nas propriedades passaram a ser tratadas como “moradores” dos fazendeiros e trabalhavam nas terras, repartindo o lucro com supostos proprietários. “Os capatazes não deixavam os moradores nem colocar telhado nas casas”, diz.

A situação, segundo ela, mudou com o II Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA), criado no primeiro governo do ex-presidente Lula (2003-2006), que passou a incluir a população ribeirinha entre o público-alvo da reforma agrária. “Algumas medidas políticas mudaram essa lógica no Marajó. Principalmente com a criação dos assentamentos diferenciados em áreas de ilha, como os agroextrativistas e Resex”, ressalta.

O Acordo de Cooperação Técnica firmado em 2005 entre Incra e Secretaria de Patrimônio da União (SPU), que disponibilizou áreas de ilha, terrenos de marinha e várzeas dos rios para a criação de assentamentos sustentáveis de reforma agrária, é um marco desse processo. O acordo permitiu que os assentamentos voltados para as populações tradicionais passassem a disputar espaço com as propriedades rurais no arquipélago. Em 2010, uma portaria da SPU fez acirrar a disputa, permitindo a concessão de áreas na Amazônia Legal em favor da população ribeirinha por meio de Termos de Autorização de Uso (TAUs).

“Quando começa esse processo, desencadeou-se conflitos na região. Os caras que se diziam donos não aceitavam de forma alguma perder essa condição”, explica Rita. A tensão culminou em violência e batalhas judiciais. Segundo o MPF e Rita, um grande proprietário da região, Liberato Magno Silva Castro, invadiu terras quilombolas que estavam em processo de identificação no município de Cachoeira do Arari, no Marajó. De acordo com a denúncia feita pelo procurador Felício Pontes Jr., houve invasões e expulsão de quilombolas. “Eles chegaram com a equipe que foi derrubar a nossa casa com quatro soldados e um oficial de polícia. Nós ficamos lá em baixo da árvore com 15 crianças, sofrendo todas as consequências, quer dizer, uma humilhação muito grande”, relatou na denúncia um quilombola expulso por Liberato.

Estudo feito pela pesquisadora Rosa Acevedo Marin, do Naea-Uf, apresentado na denúncia, mostra que 70 famílias foram expulsas de terras vizinhas à Fazenda São Joaquim, suposta propriedade de Liberato. O MPF também registra o caso do quilombola Teodoro Lalor de Lima, “preso inúmeras vezes, de forma injusta e ilegal”, em 2008. Cinco anos depois, o quilombola, então presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Gurupá, foi assassinado a facadas em Belém. A Comunidade de Gurupá foi reconhecida pelo Incra somente um ano após a morte de Teodoro.

No arquipélago do Marajó, os ribeirinhos e quilombolas relatam atraso no acesso ao CAR. “Só agora que nós estamos nos juntando para fazer o CAR. Nós vamos começar em Ponta de Pedras e vamos conversar com as comunidades para fazer o cadastro, principalmente para que outros proprietários não explorem as propriedades através do CAR. Estamos sofrendo investidas muito grandes nessas áreas com o CAR e precisamos desse documento para enfrentar isso”, explica Rita Serra.

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