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Debate sediado na Casa Pública discute o cerco do governo Temer contra a EBC e os rumos da mídia estatal no Brasil

Casa Pública
30 de setembro de 2016
13:26
Este artigo tem mais de 8 ano
“A comunicação pública no Brasil foi ferida de morte", afirmou o jornalista Ricardo Melo (Foto: Mariana Simões/Agência Pública)
Mauricio Stycer, Ricardo Melo e Tereza Cruvinel durante debate na Casa Pública (Foto: Mariana Simões/Agência Pública)

“A comunicação pública no Brasil foi ferida de morte.” Assim o jornalista Ricardo Melo define a dança das cadeiras que o tirou, o recolocou e o afastou em definitivo da presidência da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) por meio de uma medida provisória (MP) do governo Temer. A mesma MP extinguiu o conselho curador da empresa e foi seguida pela demissão de 30 funcionários.

Escolhido pela então presidente Dilma Rousseff para presidir a estatal responsável pelas emissoras de TV e rádio e pelo portal de notícias do governo federal, Melo teve o mandato de quatro anos interrompido com apenas duas semanas de exercício do cargo. Foi substituído por Temer pelo jornalista Laerte Rímoli, ex-coordenador de comunicação da campanha do senador Aécio Neves na eleição presidencial de 2014 e diretor de comunicação da Câmara dos Deputados durante a gestão de Eduardo Cunha.

Ricardo Melo, a ex-presidente da empresa e criadora da TV Brasil, Tereza Cruvinel (2007-2011), e o colunista de televisão do UOL Mauricio Stycer participaram de debate sobre os rumos da comunicação pública no Brasil sediado na Casa Pública, com mediação da jornalista Marina Amaral, codiretora da Pública, no último dia 24.

Para Stycer, o decreto assinado por Michel Temer alterando a estrutura da estatal ressaltou a relevância da EBC entre os meios de comunicação do país. “O fato de uma das primeiras medidas do governo Temer ter sido o afastamento do Ricardo deixou bastante clara a importância da EBC”, afirmou o colunista.

Melo sublinhou que a interrupção do seu mandato extrapola os limites da empresa: “O problema não é a EBC nem o Ricardo Melo. É uma questão que tem a ver com ambiente político geral”, afirmou. “O que estamos vendo hoje é um retrocesso em toda a linha dos direitos democráticos e sociais do Brasil: retrocesso em direitos trabalhistas, retrocesso em direitos da saúde, retrocesso em direitos educacionais, tentativa de anistiar os políticos envolvidos na questão do caixa 2… A comunicação pública, nesse contexto, é um empecilho. Se a sociedade não amadurece democraticamente, não há espaço para a comunicação pública.”

TV pública x TV comercial

Para Tereza Cruvinel, as dificuldades para a implantação de uma TV pública no país é uma questão histórica: “A meu ver, isso se relaciona com o patrimonialismo, que é uma falta de limites entre o público e o privado. Os empresários da área de comunicação sempre se relacionaram com o Estado brasileiro de forma a extrair poder e influência a partir dos veículos que controlam, a partir do controle da opinião pública. Nesse jogo entre a mídia privada e o Estado, a comunicação pública sempre dançou”.

Cruvinel relembrou a criação da TV no governo Vargas, nos anos 1950, quando Getúlio foi dissuadido por Assis Chateaubriand de criar uma TV pública para lhe dar a concessão do que viria a ser a TV Tupi. A relação entre a ditadura e a Rede Globo também foi citada pela jornalista. “A ditadura criou a Radiobrás, que esbarrou no nascimento das Organizações Globo, e aí, em vez da expansão de uma televisão pública nacional, ela optou por criar TVs educativas em cada estado do país – essas que estão aí hoje e com as quais a EBC criou parcerias durante a minha gestão, rompidas pelo governo Temer”, expôs. “Ou seja: a comunicação pública nacional não se desenvolveu ao longo dos anos por conta desses vícios de nossa elite política e empresarial.”

“Com raríssimas exceções, temos um modelo oligárquico de produção de informação”, concordou Melo. “Há uma intersecção entre a questão da comunicação livre, desimpedida, isenta, plural e o desenvolvimento social”, afirmou.

Aparelhamento?

Ao trazer para o debate a importância do que chamou de “bolsões de liberdade de expressão”, Melo rebateu ainda as críticas dos aliados de Temer de que a EBC teria sido aparelhada nas gestões de Lula e Dilma. “A lei original da empresa previa que os mandatos do presidente da EBC e do presidente da República não fossem coincidentes, justamente para evitar o aparelhamento. E hoje essa MP sacramenta o aparelhamento da emissora. Se o presidente da República não gostar do presidente da emissora, ele o afasta, porque não tem mais mandato. Além disso, a extinção do conselho curador, que trazia representantes da sociedade pautando a comunicação pública, mantém a empresa nas amarras do governo”, explicou. “O aparelhamento de que tanto se acusava as gestões anteriores está acontecendo agora. Nós temos que ter isso muito claro: todos os poderes foram concentrados nas mãos do presidente da República.”

(Foto: Juca Varella/Agência Brasil)
Ricardo Melo teve o mandato de quatro anos como presidente da EBC interrompido com apenas duas semanas de exercício do cargo (Foto: Juca Varella/Agência Brasil)

Para Stycer, a vinculação da EBC desde a criação à Secretaria de Comunicação da Presidência da República contribuiu para a percepção do aparelhamento da empresa. “Essa vinculação à Secom sinalizava de fato que era uma emissora do lado político do governo, ainda que houvesse um conselho curador para protegê-la. Esse caminho talvez não tenha sido o melhor. Havia um grupo bastante grande que defendia que a EBC fosse vinculada ao Ministério da Cultura. A mim me parecia também mais lógico”, objetou o colunista. Do ponto de vista do conteúdo, porém, Stycer disse não ver aparelhamento da emissora. “Claro que poderia se discutir algumas questões, o time de colunistas poderia ser mais plural, mas são detalhes pequenos no contexto geral da programação, que de fato era uma programação bastante variada com uma vocação interessante para encontrar oportunidades específicas da televisão pública que não são aproveitadas pela TV comercial.”

Para Cruvinel, as críticas feitas à EBC são uma expressão do autoritarismo do atual governo e refletem a perseguição da mídia privada contra a estatal. “A EBC está sendo golpeada devido à fragilidade democrática e à natureza autoritária do atual governo, mas também porque ao longo de seus oito anos ela se tornou vulnerável como resultado da imagem negativa que a imprensa disseminou sobre ela”, defendeu. “Durante o mandato do Lula, não se escrevia ‘TV Brasil’ nos jornais, era só ‘TV do Lula’, ‘Lula News’. Eu mostro para quem quiser ver. Apanhamos todo santo dia!”, contou. “Havia um ódio muito grande contra a EBC. E por quê? Não tínhamos publicidade para concorrer com a mídia privada, eles diziam que audiência também não tinha, então que ameaça era essa tão forte que a TV pública representava? Só pode ser essa questão da elite empresarial brasileira querer um pensamento único em canais eleitos e sacramentados que são as empresas familiares. Tudo dentro de um grande pacto da elite.”

Audiência compensa?

Houve unanimidade na mesa quanto ao fato de a audiência não poder ser o único critério de avaliação de uma emissora pública. “As emissoras de TV aberta são baseadas no modelo da publicidade. Elas lutam por audiência porque esta é a razão de ser delas”, disse Stycer. “No caso da TV Brasil, É interessante ter uma ideia de seu alcance com os números de audiência, mas ela não pode ter o mesmo critério de avaliação de uma emissora de TV aberta. É uma visão ultraliberal querer associar o Ibope da TV Brasil a um fracasso da emissora.”

O colunista do UOL considerou “tacanha” a comparação da audiência entre a TV estatal e as TVs comerciais, mas ponderou: “Por outro lado, tem a questão do dinheiro público, então a emissora precisa dar uma satisfação, precisa ser vista. Penso que a vocação da televisão pública seja buscar e alcançar públicos que não estão vendo a TV comercial, ou não estão satisfeitos com a TV comercial”.

Para Cruvinel, a função da comunicação pública é dar voz à pluralidade. “A audiência é sempre desejável. Se custa dinheiro público, mais ainda, mas ela não é o objetivo primordial de uma emissora de comunicação pública. O primordial é ser um espaço de pluralidade, de complementaridade, palavra que nossa constituição usa.” A jornalista destacou o pioneirismo da TV Brasil, que foi a primeira emissora a transmitir uma Paralimpíada no Brasil, em 2008, e deu exemplos de programas com baixa audiência justamente por atenderem aos requisitos da pluralidade. “Tínhamos dois programas que atendiam a públicos específicos que as televisões privadas não atendem: o Programa Especial, voltado para a inclusão de pessoas com deficiência, e a Grande Música, programa de música erudita. Vai ter audiência de massa? Não, é um nicho pequeno, mas é papel da TV pública oferecer esse tipo de programa.”

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A jornalista qualificou como “lenda” a afirmação de que a TV dá traço de audiência, lembrando que as medições do Ibope não levam em conta as parcerias da emissora com os canais estaduais nem as transmissões parabólicas, que predominam na área rural de boa parte do país.

Como de praxe nos debates da Casa Pública, o microfone permaneceu aberto ao público, e na plateia a repórter do site de notícias da EBC Isabela Vieira manifestou seu desconforto com o fato de o foco das discussões permanecer restrito à televisão: “Eu queria lembrar que a EBC é muito mais que a TV Brasil, ela tem emissoras de rádio e duas agências de notícia que têm um papel importantíssimo na garantia do direito à informação e à liberdade de imprensa, disponibilizando conteúdos para jornais e rádios de todo o país de maneira gratuita. Ficamos desconfortáveis quando toda a importância da EBC é reduzida à existência da TV Brasil”, declarou.

Isabela pediu aos debatedores que comentassem o impacto da produção do conteúdo das agências de notícias da estatal em outros veículos e terminou com um desabafo: “Eu sou concursada da Radiobrás desde o primeiro governo Lula e nós vivemos um sonho de fazer comunicação pública no Brasil. E fizemos. Mas de lá pra cá vimos esse projeto ser desmontado e, junto com a sociedade civil, estamos pagando um preço alto pelo desmonte da EBC”.

Em resposta à repórter, Melo afirmou que a Agência Brasil tem um papel que as pessoas não conseguem dimensionar, sublinhando a vocação do portal para ampliar a comunicação para além dos limites do eixo Rio-São Paulo. “A Agência Brasil alimenta centenas de sites que atingem locais que sites como UOL e G1 não chegam, por estarem confinados à ditadura Rio-São Paulo. Na maioria das vezes, a mídia pouco se lixa para o que acontece fora desse circuito”, reiterou. “Então o que está sendo desmontado é o projeto de uma rede nacional pública de comunicação, é o sistema que sai desse confinamento da comunicação nos grandes centros e que tenta transformar a opinião do Brasil na opinião do Rio e de São Paulo. ”

Melo finalizou sua fala destacando a necessidade de um debate público sobre a comunicação pública nacional. “Acho que a EBC precisa passar por um processo de discussão e reformulação. Eu tenho várias restrições sobre a maneira como ela está constituída hoje e penso que ela tem muitos vícios de uma empresa estatal. Acho essa discussão mais do que necessária, mais do que urgente, mas ela tem que ser feita como foi feito no momento de sua criação – com audiências públicas, discussões nas universidades, na academia, com os movimentos sociais… Uma empresa de comunicação pública é um processo muito mais amplo do que uma canetada em uma medida provisória. Porque a canetada é muito clara: é acabar com a comunicação pública no Brasil, que ninguém tenha ilusão sobre isso.”

O debate foi concluído com um convite dos membros do extinto conselho curador da EBC presentes na plateia para uma reunião aberta a ser realizada no dia 6 de outubro, das 13h às 17h, com o apoio da Uerj, sobre os rumos da comunicação pública no Brasil.

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