Buscar

Em entrevista ao vivo na Casa Pública, jornalista angolano falou sobre os rumos das relações políticas entre os dois países depois das denúncias da Lava Jato

Casa Pública
24 de outubro de 2016
16:17
Este artigo tem mais de 7 ano

“Parte do meu trabalho tem sido contra o medo.” Foi com essa frase que Rafael Marques abriu a última edição da Conversa Pública, sobre as conexões entre Brasil e Angola e a dura realidade do país sob o governo de José Eduardo dos Santos, no poder há 37 anos.

Um dos principais ativistas pela liberdade de expressão em Angola, Rafael Marques de Morais é conhecido internacionalmente por ser um implacável investigador do regime corrupto que governa o país. “As histórias não assustam tanto porque os atos de corrupção na Angola são bastante transparentes”, brincou o jornalista durante a entrevista na Casa Pública.

Ele investiga escândalos de corrupção e denuncia violações de direitos humanos no país africano em matérias publicadas no seu site, Maka Angola, e na imprensa internacional. Sua atuação combativa já lhe rendeu diversos processos e até 40 dias na prisão. O jornalista foi preso em 1999, condenado a cumprir pena por seis meses depois de ter escrito um artigo no qual denunciava “a responsabilidade do presidente da República na promoção da incompetência, do peculato e da corrupção como valores sociais e políticos”. Seu encarceramento foi um marco na luta contra o autoritarismo em Angola e chamou atenção de diversos grupos que lutam pela liberdade de expressão pelo mundo, inclusive no Comitê de Direitos Humanos da ONU.

“Eu passei por várias situações em que entendi que, quanto mais medo tivesse, mais estaria a contribuir com o autoritarismo no meu país”, resumiu ele durante a conversa. Uma das primeiras ocorreu em 1992, quando começou sua carreira jornalística: “Eu fui fazer um trabalho com um deputado que geria um terminal do porto de Luanda. Seu trabalho era retirar as mercadorias de lá e vender nas suas próprias lojas. Eu escrevi isso para o único jornal do país, o Jornal de Angola. Logo depois meu colega fotógrafo foi assaltado e agredido por esse mesmo deputado e nós tivemos que fazer uma notícia, mesmo depois de ter publicado a história, a dizer que tudo aquilo era mentira”, lembra. “Quando vemos as coisas assim acontecerem e tomamos uma atitude de aceitação, estamos contribuindo para piorar a situação.”

Natalia Viana e Eliza Capai ao lado de Rafael Marques durante a Conversa Pública sobre Angola (Foto: Agência Pública)
Natalia Viana e Eliza Capai ao lado de Rafael Marques durante a Conversa Pública sobre Angola (Foto: Agência Pública)

Rafael Marques conduziu também uma investigação sobre a filha do presidente angolano, Isabel dos Santos, a mulher mais rica de todo o continente africano. “Em junho passado ela foi nomeada presidente do conselho administrativo da petrolífera estatal Sonangol. Todas as grandes empreitadas agora estão sob o comando da filha do presidente”, critica o jornalista, que ironiza o fato de ela ainda ter tempo para “passar a vida no Instagram, com fotos em Mônaco ou Hollywood”. Quando a investigação que conduzia foi finalmente publicada, na revista Forbes, Dos Santos decidiu comprar os direitos da revista em português, em um nítido ato de constrição da liberdade de imprensa. “Hoje a revista Forbes em Angola publica propaganda do governo”, conta Rafael Marques.

O país ainda se recupera da guerra civil que assolou seu território entre 1975 e 2002. “Angola hoje vive uma crise profunda precisamente porque os cidadãos, como forma alternativa de sobrevivência em um sistema autoritário, preferiram contribuir para este sistema”, avalia Rafael Marques. Para ele, agir contra o status quo não é uma questão de coragem. “Eu também tenho medo. É uma questão de afirmação da cidadania”, conclui.

Corrupção bilateral

O jornalista contou durante o debate que, desde sua chegada ao Brasil, a pergunta que mais ouviu é sobre o envolvimento do ex-presidente Lula nos casos de corrupção na Angola. Ele avalia que antes mesmo do governo petista as relações políticas entre Brasil e Angola já eram extremamente corruptas. Para ele, o boom econômico vivido pelos dois países durante o governo Lula aumentou os investimentos brasileiros no país africano e, com mais dinheiro envolvido, veio mais corrupção. “Não é exclusivo do Lula. Se olharmos para trás, podemos ver o envolvimento de figuras como o ex-presidente José Sarney, que inclusive assinou o prefácio de um livro do presidente angolano”, conta. “Em Angola somos levados a acreditar que ter integridade é algo de errado e que ser corrupto é o que vale.”

O principal canal dos investimentos brasileiros em Angola é justamente a Odebrecht. “Não há empresa que tenha acesso tão privilegiado ao presidente angolano como a Odebrecht”, avalia. No entanto, ele pondera que esse acesso direto se faz necessário para toda e qualquer empresa estrangeira que deseje se instalar em Angola, dada a proximidade dos setores público e privado no país.

Ao falar sobre os limites também frágeis entre a política externa brasileira e os interesses da empreiteira, Rafael Marques brinca: “A Odebrecht é um braço da política brasileira na Angola ou a política brasileira na Angola é um braço da Odebrecht?”. Para ele, “o Brasil é um país que tem muito a contribuir em Angola, mas as relações comerciais são sempre marcadas pela Odebrecht”. Ele relata que as grandes obras da empresa no país pouco contribuíram para melhorar a vida da população ou o nível de industrialização e que muitas delas, como as que envolvem pavimentação de estradas, são de qualidade duvidosa.

Crises simultâneas

Angola hoje vive uma crise econômica, além de política. A economia angolana, muito dependente da exploração petrolífera, tem sido severamente afetada pela queda acentuada do preço do barril ao longo dos últimos anos. “A situação econômica continua a deteriorar-se porque não houve diversificação da economia. Mais de 95% das receitas na Angola dependem do petróleo”, avalia Rafael Marques. O cenário de crise aproxima o país africano do Brasil, embora Angola não esteja ainda em recessão, já que o PIB do país continua crescendo. “A crise se deve mais ao saque do que ao petróleo. Foram os excessos da classe política angolana, que se transformou também em classe empresarial”, avalia.

“Angola hoje vive uma crise profunda precisamente porque os cidadãos, como forma alternativa de sobrevivência em um sistema autoritário, preferiram contribuir para este sistema”, avaliou Rafael Marques (Foto: Agência Pública)
“Angola hoje vive uma crise profunda precisamente porque os cidadãos, como forma alternativa de sobrevivência em um sistema autoritário, preferiram contribuir para este sistema”, avaliou Rafael Marques (Foto: Agência Pública)

Embora os dois países estejam enfrentando crises políticas e econômicas, a conjuntura social é muito mais favorável à liberdade de expressão no Brasil. “Há um espaço de debate que os brasileiros poderiam aproveitar melhor para discutir os seus problemas. Em Angola é diferente”, diz Rafael Marques. Ele acredita que, apesar de haver debates políticos no país, eles geralmente acontecem fora da capital, Luanda. “Na cidade há uma dificuldade muito grande em alugar um espaço para realizar uma discussão, por exemplo, e a repressão às manifestações é sempre muito violenta.”

“Um ativista nunca para com sua luta”

[relacionados]

Diante de tantos casos de abuso e autoritarismo do governo angolano, Rafael Marques se tornou uma figura simbólica de resistência em seu país. No entanto, ele rejeita o rótulo de ícone e reitera que a sua batalha é a mesma de todos os cidadãos angolanos. “Certa vez um sociólogo angolano foi a Portugal dizer que um exemplo de que havia democracia em Angola era eu estar vivo”, conta o ativista, “mas eu não represento a democracia em Angola nem a liberdade de expressão. É a Constituição angolana que consagra estes direitos para todos os cidadãos.”

Indagado sobre as constantes ameaças e processos que sofre, Rafael Marques diz que a questão principal não é sua vida, porque, segundo ele, o ativismo não para com a morte de uma pessoa. “A questão é como os cidadãos angolanos podem exercer sua cidadania”, explica o jornalista.

Ele lembrou ainda que a dificuldade em se expressar politicamente é ainda maior para as mulheres. Menciona o caso de Laurinda Gouveia, presa política angolana que foi torturada por seis comandantes da polícia simultaneamente. “A violência contra ela foi muito mais marcante do que contra seus colegas homens”, analisa.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes