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Entrevista

“O foro privilegiado favorece a ineficiência do sistema”

Ivar Hartmann, coordenador do projeto Supremo em Números, da FGV-Rio, fala do desperdício no processamento do foro privilegiado no STF, pauta que será retomada no início de maio na corte

Entrevista
16 de abril de 2018
16:11
Este artigo tem mais de 6 ano

A depender do cargo que exercem, autoridades têm foro privilegiado na Justiça. O presidente da República, ministros e congressistas, por exemplo, só podem ser processados criminalmente pelo STF; governadores de estado, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), e prefeitos, pelo Tribunal Regional Federal (TRF).

Para o professor Ivar A. Hartmann, da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito Rio), o certo seria o julgamento ocorrer na primeira instância, “sempre, independentemente de quem é a pessoa”. Coautor do estudo “O Foro Privilegiado e o Supremo”, Hartmann analisa a seguir as características do desperdício no processamento do foro privilegiado no STF. Para ele, o pior efeito do foro é perpetuar “a noção de que, no Brasil, há pessoas especiais, pessoas que são melhores do que as outras, que estão acima da lei e são julgadas de maneira diferente”. Segundo o estudo, propostas de mudança das regras do foro impactariam até 95% das ações penais que tramitam no Supremo.

Anna Beatriz Anjos – O foro privilegiado é um fator determinante para a morosidade do STF?

Ivar Hartmann – Muitas pessoas têm feito a seguinte pergunta: o Supremo é mais rápido ou mais devagar do que a Lava Jato? O Supremo é mais rápido ou mais devagar do que o juiz Sérgio Moro? E essa pergunta pressupõe que é comparável, pressupõe que existem dois atores institucionais fazendo a mesma coisa em condições parecidas. Como essa comparação pode levar à conclusão de que o Moro é mais rápido, ou de que o Moro condena mais, as pessoas também concluem que o STF é moroso. Só que o tipo de tramitação em primeira instância é muito diferente da tramitação do foro perante um colegiado. O Supremo tem, em partes, uma quantidade enorme de outros processos para julgar de outras competências. Por isso, tem que ter muito cuidado. Para dizer que o Supremo é moroso, você está comparando com o quê?

Bruno Fonseca – O estudo fala sobre as várias decisões de declinação de competência. Isso não seria um fator para aumentar o tempo de julgamento?

Ivar Hartmann – Esse é um dos resultados mais importantes do relatório: uma grande quantidade de processos tem declínio de competência. No fundo, se compara: “existe a regra de foro” com “não existe a regra de foro” – isso para um processo corrido na primeira instância. Depois dos resultados, temos em conta que são alternativas falsas. Falsas porque a realidade que está aí é que o Supremo não julga o mérito do foro.

Bruno Fonseca – E por que o Supremo não julga?

Ivar Hartmann – É uma ilusão a comparação entre primeira instância e foro privilegiado do Supremo porque essa segunda situação não existe. Na prática, o Supremo é uma casa de passagem. Os processos vêm e vão, raramente começam e terminam na corte. Quão raramente? Uma em cada 20 das ações penais. A gente analisou em uma amostra representativa dos últimos dez anos e uma em cada 20 das ações penais tinha começado no Supremo lá atrás como inquérito e, depois, tido o seu mérito julgado como ação penal.

Bruno Fonseca – Por que existe tanta mudança de competência nos julgamentos?

Ivar Hartmann – Não é um resultado da vontade dos ministros. Você pode imaginar que, para um ministro, também é frustrante ficar com um processo e depois não poder julgar o mérito. Ele trabalha no processo, toma providências e depois o processo desce. E ele não chega a julgar. Por mais que os ministros fossem sobre-humanamente eficientes, o sistema não funciona, a regra não permite que o tribunal consiga julgar. Porque, se o parlamentar não é reeleito, o que o ministro vai fazer? E outra: o próprio Supremo é que acaba tendo que decidir sobre se aquele processo tem que tramitar perante a corte por causa do foro ou não. Quando, por exemplo, há conexão e há duas pessoas envolvidas na investigação e apenas uma tem foro: sobem os dois ou sobe só um? Essa é uma questão subjetiva, que é tomada caso a caso. Isso não é uma questão de atitude dos ministros, isso é uma questão de problema estrutural. A regra é falha.

Anna Beatriz Anjos – Esse “elevador” de ações e inquéritos, de quando o político perde o foro porque não se reelegeu, contribui para que a taxa de condenação das ações penais envolvendo o foro seja tão ínfima no STF? Vocês apontam que só 0,6% das ações penais terminam em condenação.

Ivar Hartmann – Independentemente de ter condenação ou não, isso afeta as chances de o Supremo julgar o mérito. Acho que o que a Constituição determina, o que nós como eleitores queremos, é que o mérito seja julgado. A questão não é se condenou ou não, a questão é se o Supremo chegou a julgar o mérito. […] Por que é falso ficar pensando se o Supremo condenou muito ou pouco? Porque a gente não sabe, a gente não tem nenhum dado sobre qual é a taxa de condenação por crime de colarinho branco no primeiro grau da justiça penal, da Justiça brasileira como um todo. Esse dado não existe. Deve ser muito inferior à taxa de condenação. Então, até a gente ter essa informação, não sabemos como é a realidade na primeira instância, infelizmente.

Bruno Fonseca – Em relação ao foro, o senhor aponta alguma regra que seria mais benéfica ao processo?

Ivar Hartmann – O certo seria o julgamento ocorrer na primeira instância, sempre, independentemente de quem é a pessoa. Eu acho que pode, talvez, fazer sentido o foro privilegiado para o presidente da República, para o presidente do STF, mas a regra hoje não é essa. Hoje, o foro privilegiado parece ser a regra, e não a exceção. Na minha opinião, deveria ser alterada a Constituição para que o foro fosse limitado a um número de pessoas e que possa ser contado nos dedos de uma mão.

Bruno Fonseca – Nesse sentido, existe talvez um esgotamento ou um desperdício da máquina do STF pela questão do foro?

Ivar Hartmann – O foro é problemático porque os ministros deixam de julgar o que precisam e não conseguem por causa do foro. O foro rouba tempo, rouba espaço. A gente viu isso no processo do mensalão, em que meio ano de trabalho da corte foi para fazer uma coisa que deveria ter sido feita na primeira instância. O pior efeito do foro privilegiado é que ele perpetua a noção de que, no Brasil, há pessoas especiais, existem pessoas que são melhores do que as outras, estão acima da lei e são julgadas de maneira diferente. Perpetua a ideia de que a lei não vale para todos.

Anna Beatriz Anjos – A demora para as ações serem julgadas no mérito por causa do foro favorece a impunidade?

Ivar Hartmann – Favorece o atraso. Esse atraso, às vezes, é pior para o réu, às vezes, é melhor para o réu. Tem casos em que o próprio réu ou o investigado é responsável, na medida em que ele renuncia ao mandato para que o processo desça e gere mais atrasos, mas, por outro lado, ter um processo criminal que nunca acaba também não é vantajoso para muita gente. Ainda que se possa presumir que réus não são culpados, e ainda que exista essa presunção, ainda assim a menor eficiência do tribunal pode ser ruim também para o réu. Então, tem os dois lados. A atual regra do foro privilegiado favorece a ineficiência do sistema. E isso afeta negativamente tanto os réus quanto a sociedade, que precisa e espera que as pessoas sejam julgadas.

Bruno Fonseca – Em que medida essa discussão em relação ao foro ser feita em ano eleitoral prejudica o próprio processo eleitoral?

Ivar Hartmann – A peculiaridade do Supremo é o pedido de vista. O processo não se arrastou, o processo foi brecado, foi pausado pela vontade do ministro Toffoli. Significa que qualquer outro ministro pode fazer de novo. Então, o julgamento foi reiniciado. Assim como o ministro Gilmar Mendes tomou a decisão, unilateralmente, há quatro anos, de que o processo sobre financiamento de campanha não seria julgado em tempo para a regra valer para a eleição de 2014. Isso foi uma decisão dele, unilateral. Isso não existe em outro lugar do mundo. Em nenhuma outra corte constitucional, o ministro tem esse tipo de poder. E é um poder de timing, né? Ele diz quando vai ser julgado, e não a parte. Isso quebra a ideia de que o tribunal se manifesta quando alguém leva uma questão a ele. Então, não sei como isso vai afetar as eleições.

Anna Beatriz Anjos – Por que algumas decisões viram jurisprudência e outras não? Qual é o critério usado para isso?

Ivar Hartmann – Critério individual. Quando o ministro quer, ele transforma em jurisprudência; quando ele não quer, ele não transforma.

Bruno Fonseca – No julgamento do habeas corpus do Lula, um dos argumentos da Rosa Weber era que ela seguiria o entendimento anterior do tribunal mesmo que fosse contra as convicções pessoais dela.

Ivar Hartmann – Eu gostaria que a gente tivesse 11 Rosas Webers no Supremo. Mas, infelizmente, não temos. É lamentável que ela seja a exceção e não a regra.

Anna Beatriz Anjos – É importante garantir a previsibilidade do Judiciário?

Ivar Hartmann – Sim, isso não é a minha opinião, isso são décadas e décadas de estudos de direito constitucional que apontam que é uma característica necessária, essencial, da maneira como uma corte constitucional decide.

Anna Beatriz Anjos – E ainda sobre a percepção da sociedade em relação à lisura e ao comportamento dos ministros do STF, votar duas vezes um mesmo tema como ocorreu nesse caso da prisão em segunda instância…

Ivar Hartmann – Foi a quarta vez que o plenário decidiu sobre isso em dois anos.

Anna Beatriz Anjos – Isso é uma prática comum?

Ivar Hartmann – Isso é uma prática absolutamente incomum. O problema é qual o tipo de interesse que leva o plenário a se manifestar quatro vezes sobre a mesma coisa em dois anos, sendo que eu não me lembro de isso ter acontecido em qualquer outro assunto. Infelizmente, 90% das decisões do ano passado que o tribunal tomou são monocráticas.

Bruno Fonseca – Você fala de lobby?

Ivar Hartmann – De lobby corporativo. Eu não vi nenhum veículo de imprensa até agora abordar o papel do lobby corporativo nessa trajetória dessas quatro decisões no mesmo sentido do plenário em dois anos sobre a mesma questão.

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