O reflexo da soja deixa ainda mais verdes os olhos cheios de água da agricultora Reginalda Santos da Silva. O olhar é fixo no entrevistador e a voz firme só se interrompe com o sacolejo do carro nas estradas esburacadas que cortam o cerrado do Piauí. Um cheiro que lembra vinagre invade o veículo. Os olhos ardem, a garganta seca. “Esse mesmo cheiro que você tá sentindo aqui, quando eles tão jogando veneno, você sente na água lá na comunidade”, conta Reginalda.
Um avião passa pulverizando as plantações de soja, cena comum nos meses de colheita por ali, entre janeiro e maio. Fora do carro, o cheiro beira o insuportável.
Reginalda tem 37 anos, mas o semblante abatido traduz o cansaço da lida da roça e do sofrimento causado na comunidade em que vive pela entrada das grandes empresas agropecuárias, grileiros e especuladores de terra no chamado Matopiba – na divisa entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Reginalda nasceu e se criou na zona rural de Bom Jesus (PI) em uma das tantas comunidades que estão no epicentro da disputa ferrenha que se trava na última fronteira agrícola do país, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Delimitado por um convênio entre a Embrapa e o Incra em 2015, o Matopiba compreende 73 milhões de hectares de cerrado que abarcam 337 municípios, 35 terras indígenas, 745 assentamentos de reforma agrária e uma gama de comunidades tradicionais como quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco, além de 46 unidades de conservação do segundo maior bioma brasileiro, considerado a savana mais rica em biodiversidade do mundo.
Com 90% de sua área inserida no cerrado, o Matopiba tem vastas extensões de terra planas – os platôs, no alto das chapadas –, ideais para ocultivo de soja e de outras commodities. Esse é o principal fator para a disputa que atinge a população que ali vive, pressionada pela valorização do preço das terras e por políticas de incentivo do governo ao agronegócio. Segundo a pesquisadora Joana Colussi, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), enquanto a safra de grãos cresceu 3,5% em média no Brasil entre 2001 e 2013, chegou a atingir 20% ao ano no Matopiba.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicado no ano passado revelou que entre 1995 e 2012 a área destinada ao cultivo de commodities no Matopiba mais que dobrou. Apenas quatro culturas (soja, milho, algodão e arroz) ocupavam 89% dos mais de 4 milhões de hectares de lavoura, concentrados em dez municípios na divisa entre os quatro estados. O valor bruto da produção das últimas três safras analisadas pelo Ipea é de R$ 11,6 bilhões, a maioria deles proveniente de empreendimentos agropecuários de grande extensão: 0,5% dos 324 mil estabelecimentos responderam por 58% do valor total. Desse total, R$ 9,8 bilhões vieram de lavouras temporárias.
A viagem pelas estradas de terra que cruzam as fazendas no alto das chapadas revela, na paisagem, a ascensão do agronegócio. Pela janela lateral do carro, mares verdes de commodities passam – às vezes por horas – fundindo-se ao horizonte sem que se enxergue o fim das lavouras. Vez ou outra, caminhões, maquinários pesados, equipamentos de irrigação e aviões despejando agrotóxicos sustam a monotonia. O cenário muda nas encostas das chapadas e nos “baixões”, próximos aos rios. Ali vivem as comunidades tradicionais do cerrado – frequentemente chamadas “geraizeiras” –, formadas por agricultores familiares que fazem o uso tradicional das terras, algumas delas há mais de cem anos. São eles, os moradores das “gerais” como a família de Reginalda, que pagam o preço da expansão do agronegócio no Matopiba.
Assédio, ameaças e incêndios
São muitos os episódios de violência narrados com serenidade por Reginalda, mas em alguns momentos a emoção transborda. “A gente vem sofrendo muito com essa coisa da grilagem. Não temos sossego, não conseguimos dormir direito. Hoje você tá vivo e amanhã você não sabe se vai estar”, diz, a voz embargada pelo choro.
O assédio dos funcionários pagos por fazendeiros e especuladores interessados nas terras ocupadas pelas comunidades é um tormento constante, relatam os moradores, surpreendidos por pessoas com aparelhos de GPS fazendo georreferenciamento – às vezes até dentro dos seus quintais. Quando reagem, correm risco de vida, como aconteceu em dezembro de 2015 na comunidade do Salto, onde vive Reginalda. “Eu tava pra roça esse dia. Quando eu cheguei, tinha uma equipe de Gilbués, a mando de um tal de Irineu Ungarelli. Eles queriam tirar uns pontos [de GPS] dentro do quintal da casa da minha irmã”, relata Reginalda. Ela, a irmã e a filha expulsaram os invasores, entre eles um homem fardado que se identificou como Ivan, ex-policial militar do município de Gilbués. Logo em seguida, porém, Ivan foi flagrado pelas mulheres junto com um vaqueiro de Ungarelli no quintal de outro morador da comunidade. Aí eu disse: ‘Moço, eu já não disse pra você não tirar ponto aqui dentro? Vai embora’. Ele me empurrou, esse que tava com a roupa de polícia. Eu empurrei ele de volta e disse que ele fosse embora ou eu ia tocar fogo no carro deles”, conta.
Os homens foram embora, mas avisaram que voltariam com o suposto dono da terra, Irineu Ungarelli, já processado sob a acusação de invadir outra área: a fazenda Boqueirão, situada no município de Dianópolis, Tocantins, também no Matopiba. A fazenda pertence ao juiz eleitoral Jocy Gomes de Almeida, que entrou com uma ação de interdito proibitório (para impedir a violação da posse de alguém) contra Ungarelli. Em audiência do processo, Gomes de Almeida afirmou que homens a mando de Ungarelli entraram na fazenda, onde mora o seu pai, para fazer georreferenciamento. O processo ainda está correndo. A Pública telefonou várias vezes para Ungarelli em três números diferentes, mas não conseguiu contato.
Pelo lado das vítimas, são muitas as histórias de agressão – e não apenas por parte dos homens de Ungarelli e grileiros locais. Sete boletins de ocorrência e um termo de declaração ao Ministério Público (MP) mostrados à reportagem registram uma série de ameaças à mão armada e invasões às casas da agricultora e de seus familiares também pelas grandes empresas como a SLC, um dos maiores conglomerados agrícolas do país, que recebe aporte financeiro do fundo britânico Valliance.
Em depoimento ao MP, prestado em 22 de agosto de 2017, uma das vizinhas de Reginalda afirmou que a comunidade foi invadida em junho daquele ano por quatro homens armados que diziam estar a mando dos grupos empresariais SLC e JB – este do carioca João Batista Fernandes, cujas iniciais, JB, batizam várias de suas empresas. Um dos invasores, segundo o depoimento, era Luiz Lobo Costa, ex-candidato a vereador pelo município de Currais (PI) e sócio de Fernandes. Segundo os relatos, eles fixaram placas e marcações em concreto dentro da comunidade com os avisos: “Credenciados e protegidos por lei”, sinalizando a propriedade das terras invadidas. As delimitações geográficas e medições estavam sendo feitas como se fossem a reserva legal de propriedade da empresa no Cadastro Ambiental Rural (CAR). A prática, que se repete em outras comunidades visitadas pela reportagem, é qualificada por especialistas como “grilagem verde”: em vez de separarem uma área de reserva legal na área da propriedade, como exige o Código Florestal, as empresas estabelecem os perímetros da área a ser preservada sobre as terras da comunidade.
Uma das fazendas da empresa, a Paineira, está no platô bem acima das comunidades do Salto I e II, na zona rural dos municípios de Bom Jesus e Monte Alegre do Piauí. A Pública questionou a SLC a respeito do episódio citado no termo de declaração ao Ministério Público. A Pública trocou emails com a assessoria da SLC (veja aqui). A reportagem não conseguiu contato com João Batista Fernandes nem com seu sócio Luiz Lobo Costa, apesar de tentativas em mais de uma dezena de números atribuídos a ambos.
Também são comuns as tentativas de obter na Justiça a reintegração de posse sobre áreas das comunidades. O terreno do pai de Reginalda, Avelino, foi alvo de um pedido de reintegração de posse por parte de Rejane Marceles Nascimento, que apresentou uma certidão de matrícula falsa e um contrato de venda de benfeitorias supostamente assinado por Avelino. “O cara que fez isso [um funcionário de Rejane] foi lá, conversou com o pai, contou uma história diferente e fez o pai assinar”, relata Reginalda. Ela explica que Avelino não sabe ler e só copia o próprio nome, que consta no contrato de compra e venda mostrado à reportagem. Com os documentos, Rejane conseguiu uma decisão liminar e Reginalda teve de ir embora para a cidade, acompanhando o pai. “Sabe o que é você sair chorando de casa, sem nada, só com seus meninos nas mãos?”, ela pergunta, ainda emocionada. Enquanto estava fora da comunidade, a casa de seu pai foi incendiada. O processo já foi extinto e o pai de Reginalda recuperou o terreno – o contrato de compra e venda foi declarado ilegal na Justiça piauiense. A reportagem não conseguiu contato com Rejane.
Segundo os moradores da comunidade, houve mais quatro incêndios criminosos além desse. “Eles queimavam nossas casas quando a gente saía para algum lugar. Quando a gente voltava, estava tudo queimado”, conta outro morador ouvido sob anonimato. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha o conflito na comunidade desde 2011, registrou em seus documentos dois desses incêndios. Nunca houve punição aos responsáveis.
E não adianta ter documentos de posse, guias de pagamento de Imposto Territorial Rural (ITR), protocolos de regularização fundiária no Instituto de Terras do Piauí (Interpi), papéis mostrados pelos moradores à reportagem. Parte da comunidade está inserida em uma Reserva Extrativista ainda não regularizada (Resex Riacho Salto Bom Jesus), mas não há nenhuma proteção pelo Estado contra os abusos praticados pelos fazendeiros. “Eles soltam gado nas nossas plantações, cortam as cercas, toda hora passa alguém armado”, enumera Reginalda. “Eu nasci e me criei no Salto, meus avós já moravam lá. E agora a gente tem que passar por isso.”
Com a casa no chão
O jovem agricultor Jaime Lima Honório, de 21 anos, equilibra-se sobre o que restou da antiga casa de sua mãe – hoje um amontoado de tijolos na comunidade de Sete Lagoas, zona rural de Santa Filomena (PI). Com algum esforço, puxa dos escombros o que sobrou dos pertences da antiga moradia: cacos de um vaso de barro, uma serra para fazer tábuas. “É o que sobrou da casa onde eu morava”, diz resignado.
Em 21 de maio de 2015, quando a casa foi derrubada, a mãe de Jaime havia deixado os filhos com o irmão e saído com o marido para colher arroz na roça. “A gente escutava a máquina trabalhando, achava que eles estavam arrumando a estrada. Só que, quando a gente voltou pra casa, eles estavam juntando o restolho da nossa casa”, relembra. “Minha mãe simplesmente assistiu toda a casa dela indo ao chão, como se ela tivesse num cinema especial. Ela assistiu a destruição da casa dela, da vida dela ali.” Jaime conta que o operador da máquina era parente de um dos moradores da comunidade e funcionário da empresa paulista Damha Agronegócios. Os moradores da comunidade dizem ter visto o logo da Damha estampado nas máquinas que faziam o serviço. Um boletim de ocorrência foi registrado no dia seguinte, mas não houve nenhuma providência – diligências, investigação ou coisa semelhante.
Quando a casa de Jaime foi derrubada, a Damha já movia uma ação de reintegração de posse contra as sete famílias que ali permanecem. “Há 12 anos, eram cerca de 35 famílias. Hoje restaram sete”, afirma Mark Isan Cavalcante, morador de Sete Lagoas e diretor do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Santa Filomena. A rotina de violência fez com que a maioria dos moradores deixasse a comunidade – muitos, aliás, negociando suas posses com a Damha antes de partir. Em nove boletins de ocorrência e termos de declaração mostrados à reportagem, são registrados episódios que vão de incêndios criminosos nas plantações a invasões à comunidade pela empresa de segurança contratada pela Damha (Norte Sul Segurança Privada), acompanhada por policiais militares de Santa Filomena e pelo gerente da fazenda, Alpheu Cavalcanti. “Durante quase um ano, a empresa [Damha] colocou os seguranças deles dentro da nossa área. A gente não podia cortar um pau de lenha, não podia ir na fonte, que eles iam seguindo. Se cercava uma área, eles mandavam derrubar”, relata o agricultor Antônio Nunes Pereira. Procurado pela Pública, Alpheu Cavalcanti disse “não ter conhecimento sobre o assunto colocado” e não quis comentar os episódios citados na reportagem. A Norte Sul Segurança Privada alegou que não presta mais serviços à Damha e não compactua com nenhum tipo de abuso de seus funcionários.
A Damha pediu a reintegração de posse exibindo uma escritura com origem em um título de Data – um título de propriedade de terras públicas estaduais cedido pelo estado do Piauí e validado judicialmente. Um dos beneficiários da Data, Antônio Luiz Avelino, conseguiu na Justiça 5.470 hectares da Data Sete Lagoas, e parte da área incide sobre a comunidade. A terra foi herdada pelo filho de Antônio, o ex-governador do Tocantins Moisés Nogueira Avelino (MDB-TO). “Essa propriedade era dos meus avós, passou pros meus pais. Depois, eu fui mexer com soja por lá, ela passou para o meu nome e eu vendi para a Damha uns cinco anos atrás”, afirma o neto de Antônio Luiz Avelino, o empresário Igor Pugliesi Avelino, ex-deputado federal pelo Tocantins. A compra de parte do imóvel foi efetuada por R$ 1,2 milhão em março de 2013. O imóvel – rebatizado fazenda AD Esmeralda – é uma das sete fazendas que a empresa possui no país, que, juntas, somam 55 mil hectares. A Damha registrou no CAR a área de reserva legal da fazenda sobre a comunidade. O caso ainda se arrasta judicialmente.
A comunidade afirma que a ocupação da região tem mais de cem anos. O pedido liminar de reintegração de posse foi negado em juízo. Em uma inspeção judicial feita pela Vara Agrária de Bom Jesus, onde corre a ação de reintegração de posse movida pela Damha, o juiz Heliomar Rios Pereira constatou in loco provas que confirmam os depoimentos dos moradores, como as antigas fundações de uma escola. Roças de subsistência, casas de adobe e ruínas, que também foram verificadas por uma perícia judicial que atestou a antiguidade da ocupação. “O bisavô do avô do meu pai já existia aqui”, diz Antônio Nunes Pereira. À luz de uma vela, ele mostra fotografias tiradas por eles em locais da comunidade antes da chegada da Damha. “Nessa época, não tinha empresa, não tinha ninguém. Era só a gente mesmo ocupando”, relembra nostálgico.
Após um encontro de povos do cerrado promovido pela CPT, os moradores de Sete Lagoas tiveram contato com alguns indígenas Gamela, do Maranhão. A CPT fez uma série de entrevistas com alguns moradores mais antigos, e, segundo Jaime, houve uma identificação imediata entre os Gamela e a comunidade. “Minha mãe e meus tios relataram que a avó deles era índia. E foi aí que eu comecei a investigar”, relata o agricultor. “Eu descobri que eles [os familiares mais antigos] vieram do Morro D’Água [localidade próxima a Sete Lagoas que também registra ocupação tradicional e alguns moradores que se declaram indígenas], onde tinha uma tribo. Havia muita violência com os índios e meus familiares deixaram a cultura deles. Antigamente os índios eram pegos a cachorro, amarrados, expulsos de suas terras e eles deixaram a cultura para sobreviver”, relata.
Em uma das últimas audiências do processo, a comunidade se autoidentificou como indígena. A Fundação Nacional do Índio (Funai) fez a primeira visita à comunidade no último dia 5 de maio com o objetivo de iniciar os trabalhos de reconhecimento. Em entrevista concedida pelo telefone, o advogado da Damha Agronegócios, Lincon Hermes Guerra, confirmou que a empresa derrubou de fato a casa da agricultora Maria Zulmira, mãe de Jaime, e outras casas da comunidade, mas disse que assim o fez porque ela havia negociado sua posse com a empresa. “As casas onde moram as pessoas que estão lá estão intactas. As casas que foram destruídas pela Damha estavam abandonadas, sem ninguém dentro”, afirma Guerra. “Agressões, ameaças ou atentados contra a lavoura deles [dos moradores da comunidade] eu desconheço”, diz. Guerra afirma que a denúncia é um “comportamento extraprocessual de má-fé.” E diz que a casa destruída não consta na perícia judicial feita na área, o que não condiz com o documento, ao qual a reportagem teve acesso. Guerra foi preso em março na Operação Sesmaria e responde em liberdade a um processo por grilagem de terra movido pelo MP.
E o rio ficou vermelho
É hora do café da manhã e a cozinha é tomada pelos vapores do cuscuz, do café preto e do beiju. Sobre a mesa do agricultor Juarez Celestino de Souza, na comunidade de Melancias, também há uma garrafa de refrigerante sem rótulo cheia de um líquido que lembra aqueles sucos artificiais. “Foi assim que ficou o rio no inverno passado”, diz, apontando para a garrafa. Um ano depois, a água permanece vermelho-amarronzada. “Em época de chuva, o veneno todo que eles jogam lá em cima desce aqui pro baixão”, explica. Ele reclama que as fazendas acima da comunidade não fazem adequadamente as curvas de nível, contenções na encosta da serra que impediriam os agrotóxicos de descer aos rios.
A situação o entristece particularmente – um de seus maiores orgulhos é o pequeno curso d’água que passa atrás do quintal. De lá, ele tira boa parte do sustento: os peixes e a água para as plantações de brejo e criação de animais. “A comunidade aqui tem uma relação muito forte com o rio. Se ele morrer, vai todo mundo embora”, afirma. Ele conta que, quando as águas ficaram vermelhas, muitas plantas morreram e houve mortandade de peixes nos tanques que os moradores fazem nas margens. “Você ia nos criadouros aqui em cima e via um monte de peixe amontoado, tudo morto”, confirma o irmão de Juarez, Juraci José da Silva. Além disso, o quintal está repleto de moscas-brancas, uma praga que ataca as árvores frutíferas que, por causa dos agrotóxicos, foge para os baixões, invadindo as plantações dos pequenos agricultores.
Acima da comunidade de Melancias, a atividade rural é intensa. Na serra fica uma das fazendas da Insolo Agroindustrial, gigante do agronegócio com mais de R$ 160 milhões em capital social, dezenas de milhares de hectares plantados no Piauí e aporte de um fundo de investimento ligado à Universidade Harvard. Não é a única grande empresa que está por lá. A Produzir Participações, ligada ao grupo Pinesso, hoje em recuperação judicial, arrenda parte da fazenda Cosmo Agropecuária para produzir soja. A área arrendada pertence aos empresários Eduardo Dall’Magro e Ricardo Tombini, que compraram a fazenda da Varig Agropecuária S.A., ligada à companhia área que quebrou em 2005. Por sua vez, Tombini é sócio de um grande frigorífico no oeste do Paraná e de uma empresa que opera no terminal portuário de Itajaí (SC). A Cosmo Agropecuária também registrou no CAR uma área de reserva legal que fica em cima da comunidade de Melancias.
Além de ser alvo de uma denúncia por desmatamento ilegal no cerrado, Dall’Magro já foi condenado em primeira instância por trabalho escravo na fazenda Cosmos, em 2009. Segundo o MPF, para prepararem a fazenda para o cultivo de soja e arroz, os trabalhadores recebiam R$ 17 reais por hectare (10 mil m2) limpo, dormiam em barracos de plástico e bebiam água suja, servida em recipientes não reutilizáveis de produtos químicos. Além disso, eram mantidos em regime de servidão por dívida. “Em pleno terceiro milênio, [os acusados] lançaram mão de práticas semiescravagistas de tratamento a trabalhadores rurais, sujeitando-os a exploração em trabalhos penosos sem que lhes assegurassem o gozo dos mais elementares direitos”, escreveu o juiz federal Marcelo de Oliveira na sentença de condenação. O processo corre em segunda instância.
Munidos de um georreferenciamento e de uma matrícula da fazenda que se sobrepõe à área da comunidade, Dall’Magro e Tombini movem uma ação de reintegração de posse contra os moradores, que, por sua vez, afirmam a antiguidade da ocupação tradicional, atestada por escolas e cemitérios. Muitos dos habitantes mais velhos foram alfabetizados em mutirões promovidos pelo padre irlandês John Antunes Myers (conhecido como padre João), que reside e atua nos baixões piauienses desde os anos 1970. “Meu pai veio da Bahia pra cá em 1942 trabalhar em um garimpo de diamantes aqui em Gilbués”, relata Juraci Silva. “Em 1944, o garimpo acabou e ele casou com a minha mãe, que já morava aqui. Meus avós já moravam aqui também, do outro lado da serra”, conta.
Sobre a mesa do café da manhã, ao lado da garrafa com a água vermelha do rio, Juarez espalha nove protocolos dos pedidos de regularização fundiária feitos pelas famílias da comunidade. O dele é datado de 1992. “Esse processo não deu em nada, não foi pra lugar nenhum”, ele diz. “Aqui frequentemente aparece alguma pessoa vendendo terra, tirando medida aqui dentro.” Por denunciar invasões e infrações ambientais, como o uso de agrotóxicos, ele já foi ameaçado de morte por fazendeiros próximos. “Um deles recebeu duas multas do Ibama e disse que na terceira ele já ia contratar uma pessoa para me matar”, afirma.
O fogo da fazenda invadiu a comunidade
“O fogo invadiu nosso brejo, acabou com o buritizal. Acabou com a minha cerca de arame, minha casa quase queima. Meu irmão apagou fogo dentro da casa dele”, relata o agricultor Presilino Pereira da Silva, de 59 anos. Era 1º setembro de 2016 quando o fogo da fazenda J.A.P., pertencente ao gaúcho João Augusto Philippsen, desceu pelos baixões, destruindo plantações e cercas e ameaçando as casas da comunidade do Chupé, em Santa Filomena (PI).
Era época de seca e o fogo correu pelo mato. O irmão de Presilino, Jovercino Pereira da Silva, subiu até a fazenda e ouviu do proprietário que ele fez a queimada para preparar o terreno para o plantio, mas não sabia como apagar o fogo. Jovercino correu para chamar a esposa, Almerinda Maria de Carvalho. O casal retirou o que podia de pertences de dentro da casa pegando fogo e não se convenceu com a explicação de Philippsen, atribuindo o incêndio a um acidente. “O cara fica resistindo aqui, sem querer sair. Aí o outro vem e coloca fogo pra ver se ele sai, né?”, diz Jovercino, contando que foi duas vezes à delegacia no município de Corrente, a 300 quilômetros de distância da comunidade, mas não conseguiu registrar a ocorrência. “Faz pouco tempo que esses aí chegaram e já teve esse prejuízo.” O agricultor José Garcia dos Santos Lopes, 61 anos vividos no Chupé, atribui a derrubada de uma cerca de sua casa também aos recém-chegados.
João Augusto Philippsen adquiriu suas terras de um sócio do empresário paulista Euclides de Carli – que possui mais de 120 mil hectares bloqueados pela Justiça do Piauí desde 2016. A matrícula de Philippsen encontra-se entre as bloqueadas, mas desde 2009 há um georreferenciamento das terras que incide sobre a comunidade. “De 2000 pra cá, isso aqui se tornou o inferno. Chega gente aqui por dentro da roça e a gente combatendo”, diz Jovercino. Ele e o irmão possuem títulos provisórios emitidos pelo Interpi em 1998. Aos 63 anos, o agricultor lamenta ter de passar por isso, após uma vida no brejo do Chupé. “Nós somos nativos daqui. E eles estão acabando com o que é nosso”, protesta. A Pública ligou diversas vezes para Philippsen, mas não conseguiu contato.
Uma vida sob ameaça
O camponês Adaildo José da Silva carrega debaixo do braço uma pasta de documentos que conta a história de seu martírio. No peito, um enorme crucifixo dourado e, no rosto, o mesmo semblante cansado da roça e da violência que vimos em Reginalda. Pai de seis filhos, passou a vida toda no Morro D’Água – localidade de Gilbués (PI). Ele faz parte de uma das últimas famílias a habitar o local; boa parte dos vizinhos negociou suas posses com forasteiros. Dois deles, que identifica apenas por João e Antônio, venderam suas posses para um advogado de Brasília, Bauer Souto Santos. Após a venda, Adaildo diz que os vizinhos o expulsaram de onde vivia pois venderam a Bauer uma área de 1.000 hectares – muito maior do que aquela cuja posse detinham.
Ele construiu uma casa para si e a família a 2 quilômetros de sua antiga residência. “Esse Bauer chegou se dizendo dono de tudo e perguntou se a gente queria voltar pra mesma casa que a gente morava. Se aproveitou da inocência da gente”, relata. Adaildo aceitou a oferta, construiu uma casa ao lado da sua antiga e conta que perguntava sobre a documentação da área, mas Bauer respondia que ele não se preocupasse. Até que em 2013 o advogado pediu que Adaildo e a mãe fossem à Vara Agrária para assinar uma documentação referente à área em que moravam. O agricultor se recusou e discutiu com o advogado; a partir daí, diz Adaildo, as ameaças se tornaram rotina. São seis boletins de ocorrência registrados contra o advogado desde 2016. No mais recente, ele alega que em fevereiro deste ano Bauer e outros dois homens quebraram uma cerca de sua casa com um facão e que um dos acompanhantes do advogado parecia estar armado. A esposa de Adaildo testemunhou a cena.
Em julho de 2017, o advogado lhe entregou uma notificação extrajudicial estipulando o prazo de 30 dias para que saísse da área. No documento, Bauer alega que o acordo que firmou com Adaildo configura um comodato verbal. O advogado também apresentou ao MP do Piauí um contrato de compra e venda, datado de 2004, referente a uma área de mil hectares em nome da mãe de Adaildo, seguido de um termo de devolução da mesma área à família. O documento possui as assinaturas de Adaildo e da mãe. Ele afirma ser um documento falso; Bauer garante que o documento é verdadeiro.
Em setembro passado, Valdimar Delfino dos Santos, anunciando estar a mando de Bauer, ameaçou o agricultor com um facão e o agrediu fisicamente quando ele saía para levar os filhos à escola – o caso foi registrado pela CPT. Adaildo considerou uma ameaça também uma carta, enviada dias antes da entrevista à Pública, em que Bauer disse esperar que, quando retornasse ao Piauí, não o visse em “suas terras”. “Lembre-se que o encontrei […] sem alimento para seus filhos e o apoiei durante anos. […] Nas suas dificuldades você sempre encontrou meu total empenho e, para isso, nunca buscamos ou tivemos apoio da CPT, do MP ou da polícia”, diz a carta, com a mesma assinatura de Bauer que está na notificação extrajudicial. Após um depoimento ao MP, foi recomendado a Adaildo que saísse do Morro D’Água até que a poeira baixasse. “Eu disse não. A poeira vai ter que baixar comigo lá dentro”, relata.
Procurado, Bauer disse que em 2003 foi trabalhar em uma região próxima à do Morro D’Água e se interessou pela área por seu potencial turístico. Negou a veracidade das ocorrências que constam nos boletins. “A CPT está alimentando ele e o Ministério Público também [em relação às denúncias]”, disse em entrevista à Pública. Acusou Adaildo de inventar a história do conflito e disse que ele “resolveu virar malandro” para tomar a área, que Bauer alega ser de sua propriedade. Sobre o contrato de compra e venda feito em 2004, seguido da devolução, ele diz que, quando viu as escrituras da terra comprada dos vizinhos, percebeu que a área ocupada por Adaildo fazia parte de sua propriedade. Teria então firmado um contrato de compra e venda, mas devolvido a terra para que eles pudessem continuar vivendo ali. A CPT afirma que repudia “todas as formas de opressão contra os camponeses e reivindica das autoridades competentes providências no sentido de garantir a integridade física e as condições de vida com dignidade às famílias camponesas”.