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Etnia do sudeste do Pará processa mineradora por retirada de cobre em área de uso tradicional, corte irregular de castanheiras e poluição de rios que servem aldeias

Reportagem
30 de julho de 2018
12:04
Este artigo tem mais de 6 ano

No dia 10 de julho os indígenas Xikrin deram início a mais nova investida judicial contra a companhia mineradora Vale S.A., a terceira maior empresa do Brasil, que na semana passada anunciou volumes recordes de produção e distribuição de minério.

Parte desse resultado se deu graças ao sucesso das operações no sudeste do Pará: entre vários outros êxitos produtivos da Vale, o aumento nos volumes de cobre, no segundo semestre de 2018, ocorreu especialmente pelo “forte desempenho da operação de Salobo” − justamente o alvo da recente ação judicial dos Xikrin contra a companhia.

Salobo não é a mais antiga, nem a maior, nem a mais polêmica operação da Vale no entorno da Terra Indígena (TI) Xikrin do Cateté, mas, segundo os indígenas, está fazendo estragos consideráveis no cotidiano da etnia. Encravada no coração da Floresta Nacional de Tapirapé-Aquiri, de onde extrai 100 mil toneladas anuais de cobre, entrou em operação no ano de 2012, depois de ser alvo de denúncias dos Xikrin e de cobranças de explicações por parte do Ministério Público Federal (MPF).

Com a licença de operação de Salobo vencida, os advogados dos Xikrin querem evitar que a renovação aconteça após análise do Ibama. No xadrez jurídico que essa etnia joga nos tribunais federais contra a Vale, já existem 15 processos ativos entre as duas partes, incluindo Salobo:

“Em razão da ausência de estudos de componente indígena e pelo descumprimento de condicionantes, as licenças emitidas até agora são nulas. Apenas após a apresentação dos estudos e da oitiva das comunidades indígenas é que o Ibama deverá emitir ou não uma nova licença de operação, conforme julgue viável o empreendimento”, argumentam os representantes legais dos indígenas no processo.

Eles cobram o cumprimento de um princípio básico do direito indígena, inscrito na Constituição Federal e objeto de uma norma internacional (a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário: serem ouvidos sobre qualquer empreendimento que incida sobre seu território, seu modo de vida ou sua cultura. Esse direito estaria representado no Estudo de Componente Indígena, que deveria ter sido feito, segundo argumentam os Xikrin, antes da emissão da primeira licença à Salobo, ainda nos anos 1990.

“A Constituição do Brasil não consagrou um estudo póstumo de impacto ambiental às comunidades indígenas; ela consagrou um estudo prévio de impacto ambiental, por meio de componente indígena específico (CF, art. 225, § 1º, IV) e os órgãos ambientais, infringindo o princípio da precaução, permitiram o funcionamento” de Salobo, lamentam os advogados na inicial da Ação Civil Pública, que tramita no Tribunal Federal da 1ª Região, em Marabá.

O processo acusa de negligência Ibama, Funai, ICMBio e Iphan por não terem exigido com suficiente ênfase que a Vale projetasse os impactos de Salobo sobre os indígenas Xikrin. Por isso são réus na ação, ao lado da Agência Nacional de Mineração (o antigo DNPM) e até do BNDES, que os Xikrin esperam impedir de financiar projetos da mineradora.

Procurados pela reportagem, os órgãos públicos enviaram notas oficiais. A do Ibama foi sucinta e citou a Funai: “No momento, o Ibama analisa o pedido de renovação da Licença de Operação (LO) do Projeto Cobre Salobo. O Instituto solicitou posicionamento técnico da Funai, órgão interveniente, sobre o cumprimento da condicionante 2.11 da LO 1.096/2012, que trata das comunidades indígenas Xikrin, e aguarda as informações”. A condicionante 2.11 impõe a “preservação da integridade física e cultural das comunidades Xikrin que apresentem interface com o empreendimento”. Para os indígenas, isso significa realizar o estudo de componente indígena; mas o texto da licença obriga a empresa apenas a “demonstrar o status” das tratativas nesse sentido em relatórios anuais.

Já a Funai defendeu que os indígenas sejam ouvidos adequadamente e que eles “têm autonomia para buscar seus direitos”. O órgão indigenista deixou explícita uma insatisfação com o processo licenciatório: “A Funai tem a obrigação de proteger e promover os direitos indígenas, buscando intervir em processos que possam afetar povos e terras indígenas. No caso, a Funai não foi consultada adequadamente ao longo do processo de licenciamento”, diz a nota.

A companhia Vale S.A. se manifestou em uma linha: “A Vale ainda não foi citada na ação”.

Cultura tradicional impactada

O fato de não haver estudo de componente indígena não é mero problema burocrático. No caso de Salobo, esse documento poderia ter alertado a companhia de que a área em que o projeto se instalou é considerada pelos Xikrin de uso ancestral, embora esteja de fato fora dos limites legais de suas terras.

Todos os anos, em novembro, os Xikrin deixam as aldeias no interior da TI Xikrin do Cateté e vão até o vértice dos rios Itacaiunas e Aquiri, onde está localizado um dos melhores castanhais da área, que eles chamam Piu Prodjô. Nesse local eles montam acampamento e permanecem até março, quando termina a safra da castanha-do-pará. Mas ao abrir as clareiras por onde passam as linhas de transmissão de energia, o mineroduto e a estrada de escoamento de Salobo, a Vale derrubou, segundo a nova ação, cerca de 300 castanheiras, que foram abaixo junto com o resto da mata que estava nesses trajetos, informação confirmada pelo ICMBio.

“Nesse ambiente de mata nativa, a mineração do Projeto Salobo se desenvolveu às custas de derrubadas de centenas de árvores castanheiras, prejudicando sobremaneira a subsistência física e cultural da comunidade Xikrin do Cateté”, ressalvam os advogados dos indígenas na peça jurídica que deu início à ação.

A Vale foi autorizada pelos órgãos ambientais [ICMBio e Ibama], o que não reduz o prejuízo indígena conforme admite o próprio ICMBio: “Todas as supressões vegetais no período de 2009 a 2018 impactam áreas de coleta dos indígenas dentro da Floresta Nacional Tapirapé-Aquiri. O fato dos indígenas da aldeia Xikrin coletarem castanha no interior da floresta é histórico e de conhecimento do órgão licenciador (Ibama), inclusive esta informação está presente nos estudos de impacto ambiental”, reitera o órgão em manifestação à reportagem.

Fora dos gabinetes de Brasília, o cacique Tunira Xikrin explicou com as suas palavras o tamanho do problema: “Lá tinha uma castanheira, todo o inverno a gente ia prá lá, mas agora já foi tudo acabado pela mineração de Salobo”.

Segundo o ICMBio, a mineradora já providenciou o plantio de 50 mil mudas de castanheiras para compensar as derrubadas e “atualmente está recompondo uma área de aproximadamente 500 hectares” − o que para os indígenas não é animador, pois a árvore demora 20 anos para começar a produzir.

Local de formação de guerreiros

O castanhal de Piu Prodjô está situado em uma área maior, que os mais velhos chamam Gnognhogô, que, além de ser referência para a coleta da castanha-do-pará abrigava, uma importante parte da preparação dos jovens Xikrin na dura caminhada para se tornarem guerreiros da etnia.

Se um menino é admitido como guerreiro, ele se torna liderança: pode assumir cargos de chefia nas aldeias e até nas associações, ganha responsabilidades perante os outros Xikrin e é respeitado de igual para igual pelos mais velhos. Mas para isso, passa por provas nas quais precisa demonstrar conhecimentos tradicionais e também resistência e valentia. Em Gnognhogô, as novas gerações recebiam ensinamentos sobre “elementos culturais e saberes tradicionais relacionados a caça, a pesca e a coleta de uma infinidade de espécies vegetais e não somente a castanha”, segundo anotou o antropólogo Waldenir Bernini Lichtenthaler, em um parecer encomendado pelo MPF em 2012 sobre o conflito.

Depois de ser treinado pelos mais velhos, um aspirante a guerreiro deve “caçar sozinho no mato sem medo de onça”, “braçar roça sozinho” e ser o último a voltar da pescaria tradicional indígena − que eles chamam “bater timbó”, em referência a um cipó abundante na região, que em contato com a água retira o oxigênio, obrigando os peixes a subir para a superfície, tornando-os mais vulneráveis às flechas dos Xikrin. Há provas mais ingênuas, como sentar sozinho no meio do nhobi (uma construção no centro da aldeia) e lá permanecer da tarde de um dia até a manhã seguinte sem comer nem beber água. Mas outras são assustadoras mesmo para os indígenas, como precisar derrubar uma casa de marimbondos da árvore e suportar sem chorar as picadas dos insetos, explicou à Pública um dos guerreiros da aldeia Djudje-kô, da TI Xikrin do Cateté, Bep-Krá.

Reduto da memória dos velhos

Os velhos, por sua vez, também se ressentem do que consideram uma invasão do território Xikrin pela Vale − eles sabem que existe uma área demarcada, mas sua memória tem registradas excursões que extrapolavam em muito esse domínio registrado oficialmente.

Em um relatório sobre a etnia, a antropóloga Isabelle Vidal anota esse fato: os Xikrin ocuparam e transitaram “por um vasto território que incluía o igarapé Sossego, o rio Parauapebas, percorrendo trilhas até o rio Bacajá”, além de terem chegado, ao sul, “até os limites da atual Terra Indígena Kayapó, chegando perto da cidade de Conceição do Araguaia”. “A oeste, transitavam por áreas que ultrapassam a região das serras do Onça e do Puma. Em toda essa região, há locais com referências históricas dos Xikrin”, completa.

Bem no ponto onde a Vale instalou Salobo, e que está fora dos limites oficiais das duas terras que a etnia habita, os velhos asseguram que estava assentada uma antiga aldeia Xikrin, a “aldeia grande” chamada Pukati ãgore.

“A aldeia Pukati ãgore está situada no caminho do Kakarekré para o Bacajá – tem um rio que chama Mruiaroti nho gnõ – rio Boto na língua de branco. Fica para lá do rio Aquiri, indo em direção ao Salobo”, registrou Bepkaroti Xikrin em entrevista a Isabelle Vidal.

Esse local guarda um cemitério indígena, e, embora os Xikrin não tenham costume de fazer culto aos ancestrais − conforme salienta o antropólogo Cesar Gordon, da Universidade Federal do Rio de Janeiro −, eles têm o hábito de fazer uma manutenção anual no local. Segundo o cacique Tunira, os indígenas limpam a área e assim prestam reverência aos mortos − é um ritual parecido com o que fazem os ocidentais católicos no Dia de Finados, quando é comum levar flores ao cemitério e limpar as lápides de entes queridos que já partiram. Mas no ano passado, quando os velhos se embrenharam na mata para essa missão, não reconheceram o caminho até o local e acabaram perdidos. “Ninguém não achou, só encontrou a estrada, tá tudo mudado, tem entrada pra trator, picada, essas coisas”, lamenta o cacique Tunira.

“Independentemente dessa ausência de elemento religioso, toda a área guarda um sentido histórico e identitário para os índios. Mesmo considerando que a região tem uma importância econômica para o país, era de se esperar da Vale e do órgão indigenista mais respeito à história dos Xikrin. Por que a Vale não ajuda a criar um projeto sério de estudo histórico e arqueológico daquela área, com produção de documentos e registros?”, provoca Gordon.

Encontro da paz

A comunidade Xikrin se divide oficialmente entre as terras Xikrin do Cateté, mais ao sul, e Trincheira-Bacajá, cujo limite norte chega quase até Altamira. No ponto em que estão mais próximas uma da outra, são cerca de 150 quilômetros de distância − exatamente pelo corredor onde foi aberta a mina de cobre e instalada a usina de beneficiamento de Salobo.

No passado, a etnia vivia toda junta, andando por esse vasto território. Mas, em algum momento do século XX, houve essa cisão e os Xikrin se dividiram entre as 13 aldeias ao norte e as três ao sul. A partir do projeto da Vale, os indígenas passaram a ser obrigados a fazer um desvio na rota tradicional para visitar os parentes. Tunira, que vive na aldeia Kateté, na TI Xikrin do Cateté, planejava visitar os avós em Trincheira Bacajá, e, mesmo se programando para sair cedo da manhã, chegaria apenas de tarde: “Vou ter de pegar a rota grande”, justificou.

Chegou a haver guerra entre os dois lados e, quando a paz finalmente se instalou, a região onde hoje está Salobo se transformou em espaço de convívio.

“É uma área reconhecida pelos mais velhos como a região de andança dos povos juntos, uma coisa que une esses povos, hoje separados por esta obra. Eles iam até esse lugar, conviviam e depois se separavam novamente”, revela a antropóloga Thais Mantovanelli, que pesquisa impactos da Usina de Belo Monte sobre os indígenas da Volta Grande do Xingu, os Xikrin de Bacajá inclusos.

Os índios se queixam ainda de que houve piora nas condições ambientais de vários rios no entorno do empreendimento e até de que os animais que caçam estão escasseando em razão do ruído provocado pela operação de Salobo. “Peixe virou punura [ruim, estragado] também. Nem dão coisa nenhuma para a gente, tão só tirando, tirando, acabando com tudo aqui”, se revolta o cacique Tunira.

A comunidade Xikrin se divide oficialmente entre as terras Xikrin do Cateté e Trincheira-Bacajá

A questão está em aberto até agora, conforme assinala o procurador da República Ubiratan Cazetta, que acompanha diversos processos judiciais que opõem os Xikrin e a Vale: “Há muito os Xikrin questionam essa operação. Não é difícil imaginar que é historicamente habitada por eles, embora do ponto de vista formal não esteja dentro da área demarcada. A questão toda acaba em uma pergunta: quanto o projeto influencia a área indígena? Esse é o parâmetro para se ter a consulta prévia, haver impacto comprovado. A legislação é complexa, é difícil dizer, mas eu não afastaria essa possibilidade”.

Estrangulados pela mineração

A frente contra Salobo não é a única batalha dos Xikrin contra a Vale na região da bacia do Itacaiunas, onde está localizada a TI Xikrin do Cateté. Eles questionam também a operação de Onça Puma, acusada de contaminar com metais pesados as águas do rio que é o centro da vida dessa comunidade e dá nome à sua terra − o Cateté. Esse processo está em fase de perícia técnica, que pode detectar com precisão os impactos da extração e beneficiamento de níquel sobre o rio.

Eles se voltaram também contra S11D, que a empresa apresenta na internet como “o maior projeto de mineração do mundo”, e discutem, ainda, na Justiça, um mecanismo capaz de garantir que as compensações financeiras que a Vale paga pelo empreendimento mais antigo na região − Ferro Carajás − sejam aplicadas segundo uma lógica comunitária pelos indígenas, com o objetivo de assegurar a futura autonomia produtiva e econômica da etnia.

Mas a Vale possui 14 empreendimentos em funcionamento no entorno da TI Xikrin do Cateté. Embora todos tenham impacto sobre o modo de vida tradicional dos Xikrin, não há nenhum cálculo sobre a ação em conjunto desses projetos na vida indígena. Eles se sentem estrangulados pela mineração, que reduz suas possibilidades de deslocamento fora dos limites estabelecidos e é fator de poluição de ar e água na região. No caso em questão, as vistorias do Ibama no igarapé Salobo e no rio Itacaiunas, em trechos próximos à lavra e à usina, revelaram turbidez maior nas águas, o que pode modificar as características de fauna e flora aquáticas. Também foram registrados níveis de elementos químicos e de metais acima dos permitidos − a empresa foi alertada para tomar providências. Os Xikrin temem que esses cursos d’água acabem como o próprio Cateté, rio que dá nome à TI e que apresenta volumes de metais pesados incomuns em seu leito desde que Onça Puma entrou em operação. Uma complexa perícia técnica está em andamento para estabelecer a responsabilidade da mineradora na contaminação.

“Os impactos como um todo são cumulativos. Há Onça Puma, Salobo, um conjunto de operações que não podem ser vistas autonomamente, porque fecham um bloco de influência que atinge a comunidade”, concorda o procurador da República Ubiratan Cazetta.

Entretanto, nem os estudos de impacto nem as decisões judiciais levam em consideração essa sinergia de projetos. “Nesse aspecto, eles estão invisibilizados”, lamenta o representante do MPF.

A profusão de jazidas minerais nessa região habitada pelos Xikrin foi, inclusive, responsável pela retirada de uma parcela de suas terras a oeste, onde hoje está localizada a Mineração Onça Puma, fatos já denunciados pelos indígenas.

“Se olhar o mapa de mineração, essa terra indígena está inteiramente requisitada pelas empresas: tanto dentro como fora de seus limites, no entorno, ela está todinha cheia de requerimentos”, alerta a coordenadora do programa de monitoramento de áreas protegidas do Instituto Socioambiental (ISA), Fany Ricardo.

De fato, o levantamento anual da entidade sobre interesses minerários em terras indígenas mostra que 99% do subsolo dentro da TI Xikrin do Cateté já possui protocolos formalizados na Agência Nacional de Mineração para extração de minérios. Onça Puma, por exemplo, que opera lavras a poucos quilômetros da borda da reserva, já possui alvos registrados dentro de seus limites − e eles são muito maiores do que os explorados atualmente.

Por enquanto, a mineração em terras indígenas está vedada porque falta regulamentar um artigo da Constituição Federal que organiza a atividade, assegurando a soberania dos povos silvícolas sobre a decisão e a participação deles nos resultados financeiros de mineradoras.

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