Neste final de 2019, a América Latina parece determinada a colocar à prova quaisquer certezas sobre os ciclos políticos nas democracias da região. Primeiro vieram os protestos que pararam o Equador, liderados por movimentos sociais, especialmente os indígenas, em um levante que obrigou o governo a sentar-se à mesa e negociar com as populações tradicionais do país. Em seguida foi o Chile, modelo de estabilidade para alguns, de desigualdade para outros, que explodiu em protestos de rua liderados por jovens que estão incendiando a Constituição herdada da ditadura de Pinochet. Agora é a Bolívia, onde em apenas três semanas uma escalada de eventos fez a reeleição do presidente Evo Morales ir dos questionamentos a uma renúncia forçada, ao exílio e à incerteza de quem governará o país a longo prazo.
A Agência Pública conversou com a professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Sue Iamamoto, que pesquisa desde 2008 a política boliviana e os movimentos sociais do país para entender o que levou o governo de Evo Morales, primeiro presidente indígena, a ruir diante dos protestos. Autora do livro O nacionalismo boliviano em tempos de plurinacionalidade (2013), Sue aponta como, desde o início, o primeiro presidente indígena boliviano vinha acumulando desgastes com a base que o elegeu, sem nunca conseguir agradar totalmente à direita que hoje o confronta. Na visão da pesquisadora, a direita foi oportunista em aproveitar um governo já desgastado por denúncias de autoritarismo para emplacar pautas conservadoras e religiosas que excluem os indígenas da ideia de nação única que defendem tão arduamente.
Sue é categórica: a renúncia de Evo foi golpe, sim. Para a pesquisadora, apesar de as Forças Armadas não indicarem querer o poder para si mesmas, “o fato de o Exército ter sugerido a renúncia ao Evo Morales foi uma quebra institucional” que pode se transformar em um “golpe ao cubo” caso o partido de Evo seja impedido de disputar as eleições para definir o próximo presidente.
Bruno Fonseca – A renúncia dramática de Evo Morales, encurralado pelas Forças Armadas e após protestos em todo o país, parece totalmente oposta à imagem de 13 anos atrás, do primeiro presidente indígena eleito na Bolívia, com amplo apoio popular, que trazia consigo esperanças e promessas de mudanças por um país mais igualitário. Como isso foi possível? Houve um consenso no início do governo que foi se desgastando aos poucos ou foi um percurso problemático desde o início?
Sue Iamamoto – Evo Morales chega ao poder com as eleições de 2005, obtendo mais de 50% dos votos. Sua agenda popular, que costumamos chamar “agenda de outubro”, propunha a Assembleia Constituinte, mais representação dos povos indígenas na Bolívia, a nacionalização do gás e a reforma agrária. Nesse sentido, inicialmente o mandato de Evo foi marcado por um processo de mudança, sobretudo em relação à terra e à autonomia dos povos indígenas, que se realizou de maneira parcial, digamos. Isso porque os primeiros anos de governo foram muito tensos, com questionamentos vindos de vários grupos. Em 2008, por exemplo, houve o Massacre de Porvenir [massacre encomendado pelo então governador do estado do Pando, influente opositor de Evo Morales, e que deixou pelo menos 20 pessoas mortas, a maioria governista]. Houve também a mobilização em Santa Cruz, pedindo a autonomia departamental durante o processo da aprovação da Constituinte, em 2007 — que não deixa de ser relacionada ao contexto atual [na época, o movimento cívico de Santa Cruz protestou pela autonomia da região e criticou o governo plurinacional indígena. Os cabildos [comícios convocados por lideranças municipais, sobretudo nas regiões de Santa Cruz e La Paz] foram muito intensos nesse momento, nesse início de governo Evo, pedindo autonomia departamental, uma pauta regionalista.É nesse contexto, como disse, bastante tenso, que a Bolívia inaugura o Estado plurinacional, que reconhece os povos indígenas e garante uma série de direitos que não estavam previstos anteriormente. Contudo, a Constituição passa por uma série de acordos com setores da oposição, que impõem reformas para que ela seja aceita. O governo de Evo vai progressivamente se tornando mais hegemônico, no sentido de realizar mais acordos com a direita, com setores empresariais, mesmo com as multinacionais, por exemplo, de mineração, ao mesmo tempo que vai abandonando algumas das pautas que defendia anteriormente. Evo vai se afirmando cada vez mais desenvolvimentista, ele se alinha com essa pauta de integração nacional, de exploração dos recursos naturais, de desenvolvimento do país com base numa matriz extrativista – uma visão talvez mais alinhada com os povos indígenas do ocidente, sobretudo. Enfim, vai se criando um desgaste.
Rute Pina – Você diz um desgaste com a própria base que elegeu Evo?
Sue Iamamoto – Sim, um desgaste com as pessoas que defendem a Bolívia plurinacional, com os grupos do movimento indígena. É um desgaste que vem se aprofundando por anos…
Bruno Fonseca – Como se deu essa aproximação de Evo com pautas desenvolvimentistas?
Sue Iamamoto – Eu acredito que já estava, de certa forma, na origem do governo. Desde 2006, Evo vinha apoiando alguns setores e retirando o apoio de outros. Por exemplo, o governo apoia a agroindústria e os camponeses colonizadores – que são camponeses que recebem terras para colonização ou que migram do ocidente para o oriente para estabelecer cultivos. Isso gera um conflito com os indígenas que lá estavam. O caso de Tipnis [por exemplo]. Esses conflitos existiam, não dá para dizer “ah, ele foi vendido pra direita”; não dá para afirmar que “nossa base popular sempre foi pelo bem viver e contra o extrativismo”. A Bolívia é um país extrativista, de longa tradição mineira, e que encara a exploração dos recursos naturais como algo da sua realidade cotidiana. Setores da sociedade boliviana que poderiam realizar um debate mais aprofundado na Bolívia sobre as suas matrizes econômicas, sobre a forma como lidava com o meio ambiente, foram deixados de lado pelo governo, inclusive denunciados, em um discurso muito parecido com o que Jair Bolsonaro tem em relação às ONGs da Amazônia. Enfim, há esse conflito.
Rute Pina – Se Evo passou a se aproximar da pauta desenvolvimentista, em que momento o governo começa a desagradar a setores da direita, do empresariado que, em tese, aprovariam essas políticas?
Sue Iamamoto – Não acho que os opositores de Evo da direita estejam nas ruas por conta do seu modelo extrativista e vejo que, em certa medida, a direita entrou no caldo de denúncias de ineficácia do governo de maneira oportunista. Esses setores agropecuários, por exemplo, os de Santa Cruz, não são setores ambientalistas ou estão apoiando a causa indígena. Houve episódios de racismo lamentáveis em Santa Cruz, por exemplo. O que vejo é que muita gente se afastou do governo por conta do autoritarismo de Evo: já existia um questionamento do centralismo do poder nas mãos do presidente, da inexistência de críticas ao governo ou do surgimento de novas figuras políticas. Aí houve o referendo de 2016, que, de certa forma, proibiu que Evo fosse candidato uma vez mais. O governo contornou essa proibição de uma maneira muito questionável. Para mim, esse foi o principal precedente dos conflitos de agora. O que é preocupante, contudo, é como o processo atual muda muito rapidamente: se a princípio temos setores da oposição defendendo um segundo turno, de repente isso se torna uma renúncia forçada, com base em uma fraude que, até então, ainda não estava comprovada pela OEA – esses setores não chegaram a esperar que houvesse de fato uma investigação e já pediram a renúncia. Rapidamente, o discurso muda em defesa de uma união nacional, de pacificação, de defesa da bandeira tricolor, que seria a única bandeira da Bolívia, que nos unifica. Surge o discurso que os povos indígenas querem nos dividir, e isso é muito preocupante. Ou seja, muito rapidamente a pauta saiu da defesa da democracia, do respeito ao referendo de 2016, para uma pauta conservadora que exclui os setores indígenas e que defende a Bíblia. É isso que mais me preocupa no processo, ele está muito acelerado. A oposição, que antes era unificada por uma figura de centro, o Carlos Mesa, parte para o discurso de Luis Fernando Camacho, bastante questionável, de pacificação, que reivindica a Bíblia, e não a Constituição boliviana, e descarta o processo democrático que a sociedade boliviana acumulou no último período. Eu acho que existe uma aceleração do processo político e mudança de pauta que são bastante preocupantes.
Bruno Fonseca – Era esperada a ascensão de Luis Fernando Camacho? Ele, que não havia sequer concorrido às eleições, se coloca como a voz da direita oposicionista. De onde ele vem e qual a força desse discurso religioso extremo na Bolívia hoje?
Sue Iamamoto – O Camacho é uma liderança que vem do setor empresarial de Santa Cruz, a família dele tem vários negócios, é uma família de empresários. Mas, além de empresário, ele fez parte da União Juvenil Crucenista e tem um discurso extremamente religioso. Ele reivindica Deus o tempo todo, a justiça divina, que é algo novo para mim, que não havia visto antes com essa força principalmente entre esses setores de Santa Cruz. Isso me espanta. Era sabido que o setor evangélico estava se organizando em torno de pautas radicais, que até obtiveram votação expressiva em algumas cidades da Bolívia, mas não me parecia haver espaço para que isso ganhasse uma dimensão nacional. Com essa virada política, com Camacho assumindo a liderança, temos figuras até mesmo fanáticas que dizem que Evo tem que resolver suas contas por uma questão de “justiça divina”. Há uma radicalização do discurso com figuras que agora são lideranças do processo que eu não imaginava que seriam anteriormente. Nisso eu vejo um paralelo com o Brasil, de discursos de muita radicalização, de criminalização e violência contra a oposição. A Bolívia tem um setor de evangélicos que é crescente, já era um fenômeno, mas achei que não fosse possível tomar essa dimensão rapidamente. Há um vídeo de uma liderança comunitária indígena pedindo a renúncia de Evo: enquanto ele diz que Evo não respeita os valores indígenas, a rotatividade de cargos, ele conclui que “ se Deus quiser, nós vamos pacificar o país”. É algo que chama atenção porque traz, no meio do discurso indígena, o discurso de Deus, religioso, da vontade divina. Ainda que muitas comunidades indígenas bolivianas sejam católicas, eu nunca havia escutado uma liderança indígena reivindicando Deus e uma justiça divina. Esse tipo de linguagem não faz parte do cotidiano indígena.
Bruno Fonseca – Ele tem forças para se tornar o próximo presidente?
Sue Iamamoto – Ele diz que ele é um líder cívico e que não quer concorrer às eleições, que ele não é político. Existe esse discurso, mas eu acho que, neste exato momento, ele é a liderança da oposição, é ele quem organiza as convocatórias, ele é a voz de interlocução com as pessoas que estão nas ruas e acabou substituindo o Carlos Mesa nesse papel – essas coisas são significativas. É possível que, ao se convocar novas eleições, abra-se a possibilidade que se convoquem novas chapas eleitorais: assim, outras pessoas que não estavam concorrendo, outros partidos que não estavam presentes nas eleições anteriores, poderão concorrer. E aí, nessa situação, pode ocorrer uma articulação entre grupos religiosos para que uma liderança desses grupos entre na disputa eleitoral. Contudo, outro ponto que é fundamental é a questão da chapa do MAS [Movimento ao Socialismo, partido de Evo]. Uma das grandes demandas é que, nas novas eleições, Evo e o vice [Álvaro] García Linera não possam concorrer pelo referendo de 2016. Mas, se eles não concorrerem, o MAS pode concorrer? O partido pode apresentar então outra chapa? O MAS é uma força política muito importante na Bolívia, como seria possível bancar um processo eleitoral que exclua uma força política que tem obtido cerca de 40% dos votos? Se estamos apontando um golpe – e eu particularmente caracterizo o fato de o Exército ter sugerido a renúncia ao Evo Morales como uma quebra institucional –, se a chapa do MAS for proibida, seria um golpe ao cubo, digamos, muito mais antidemocrático, então isso também tem que ser acompanhado. Inclusive, é preciso acompanhar se os parlamentares do MAS irão conseguir chegar ao governo.
Rute Pina – Você cita essa discussão sobre ter havido um golpe na Bolívia. Na sua avaliação, houve golpe?
Sue Iamamoto – Foi golpe, sim. O Evo naquele momento estava cumprindo o mandato, terminando, mas cumprindo, mas o Exército, ao sugerir a renúncia, praticamente obriga o presidente a renunciar. Ele teve a casa da sua irmã, a de várias figuras oficiais atacadas, a polícia já tinha se amotinado, não estava atuando para evitar essas queimas e atos de vandalismo, assim o pronunciamento do Exército foi uma interferência na ordem constitucional boliviana. Agora, é claro, tem uma série de matizes nesse sentido, não acho que o Exército queira tomar o poder na Bolívia, o Evo não qualifica o golpe como um golpe militar, o Exército historicamente sempre foi um aliado do governo do MAS. Eu acho que foi uma atitude fácil do Exército pedir para Evo renunciar. O Exército não é uma instituição civil, ele é o Exército; naquele momento, o único detentor da força pública atuando. Nesse sentido foi golpe, sim.
Rute Pina – E como fica a composição da Assembleia Plurinacional, que toma posse em janeiro?
Sue Iamamoto – O MAS [partido de Evo] é maioria [dos parlamentares da Assembleia Plurinacional]. Mas há pessoas que renunciaram ou que estão com medo, então tem que ver como é que ficou a composição, mas a maioria ainda é do MAS. Existe uma expectativa de que ela volte a funcionar, digamos assim. O Mesa falou que é “importante que os parlamentares do MAS venham”, que “reconheçam a renúncia de Morales” e comecem esse processo de negociação. Mas eles vão conseguir chegar lá ou a oposição e setores que estão nas ruas vão operar para que não haja essa saída da Assembleia Legislativa Plurinacional? Camacho declarou que o ideal era construir uma junta de notáveis, que eles iam ficar mobilizados, estando atentos ao que estava acontecendo na Assembleia Plurinacional. O que vai acontecer aqui? Então eu acho que isso é algo que a gente tem que prestar atenção também.
Rute Pina – Você citou o Exército. Em outro processo muito recente na América Latina, na Venezuela, há análises que atribuem que Nicolás Maduro conseguiu manter o seu governo por causa da lealdade desse setor. Já na Bolívia, não aconteceu o mesmo. Por que os militares desembarcaram do governo de Morales?
Sue Iamamoto – Acho que é uma leitura difícil de ser feita neste momento. O Exército boliviano teve muita proximidade com o Evo durante esse período todo, eu realmente não esperava que eles fossem pedir sua renúncia. E acho que é por isso que ele renunciou: ele não contava com o Exército pedindo a renúncia e se sentiu totalmente desprotegido nesse processo. A partir do momento que o Exército sai dos protestos, para mim pareceu que ele estava favorecendo uma quebra institucional, que estava obrigando o governo a renunciar. Outras análises vão dizer que o Exército deixou de agir por receio de represálias. Em 2003, por exemplo, quando o governo de Sánchez mandou o Exército reprimir as pessoas que estavam nas manifestações, figuras que eram cabeças do Exército foram julgadas e foram presas, porque morreram 60 pessoas naquele conflito – porque o Exército atirou nessas pessoas. Diferentemente do Brasil, por exemplo, onde o Exército nunca sofre julgamento de violação de direitos humanos. Então, há análises que vão dizer que o Exército tinha aí uma indisposição de entrar nos conflitos sociais com medo dessa posterior represália. Mas eu discordo um pouco dessa visão porque acho que o que estava colocado como ação do Exército não era uma ação repressiva contra a população, era uma ação de proteger as pessoas de se enfrentarem ou criar barreiras de contenção entre setores, que era o que a polícia vinha fazendo antes. Alguém pode dizer que o Exército buscou a solução mais fácil, já que o pêndulo estava mais inclinado para o setor da oposição e, com a saída do informe da OEA, eles pularam do barco logo. Mas, se você for ver as renúncias de integrantes do governo do Evo, a grande parte é porque a famílias dessas pessoas estavam sendo ameaçadas, como “sequestraram o meu sobrinho”, “botaram fogo na casa da minha irmã”’. O Exército, ao dizer que o governo tinha que renunciar, não se comprometeu a preservar a integridade física dessas pessoas.
Rute Pina – E como a classe média está posicionada nesse jogo de forças?
Sue Iamamoto – Eu acho que a classe média e setores urbanos não perdoaram o governo por conta do referendo revogatório de 2016. Esses setores se organizaram de maneira muito arraigada sob essa bandeira da democracia boliviana. São poucos os setores e organizações da classe média que têm demonstrado apoio ao governo. Boa parte do apoio ao MAS vem dos setores rurais, da periferia. Em El Alto, que é uma cidade que fica na periferia de La Paz, ou seja, é uma periferia gigantesca, o Evo Morales ganhou, por exemplo.
Bruno Fonseca – Sindicalistas da Central Obrera Boliviana (COB) apoiaram o governo durante as eleições, mas também retiram seu apoio do governo. Como é que é a relação deles com o Evo?
Sue Iamamoto – Eu acho que, para alguns setores, foi um impasse. Eles ficaram durante muito tempo nas ruas, são 20 dias de paralisação cívica. Nesse sentido, esses setores abriram mão, reconheceram que não estavam mais conseguindo bancar a defesa desse projeto nas ruas. Eu não descarto que tenha tido algum tipo de coordenação no sentido de treinar alguns grupos paramilitares que atuavam na oposição e que criaram e organizaram enfrentamentos. Não descarto que tenham ocorrido esses processos. Acho que o processo está complicado nesse sentido. Não dá pra falar que foi tudo um processo cívico, que as pessoas saíram das suas casas com a bandeira boliviana nas costas e felizes e foram lá reivindicar a democracia. Mas também não dá pra falar que foi uma manipulação para que os bolivianos fossem lá e queimassem a casa da irmã do presidente. Há algo no meio dessas duas narrativas.
Bruno Fonseca – Houve muitos atos contra a Whipala, até de militares arrancando a bandeira indígena da identificação. Como surgiu e o que representa esses atos?
Sue Iamamoto – Eu acho que existe uma identificação de que a Whipala é algo relacionado ao MAS, que seria um símbolo imposto do Evo e do MAS. Obviamente, os setores sociais que estavam no levante de El Alto em 2003 não vão dizer isso. Não é à toa que agora, neste momento, tem muitas pessoas [de El Alto] que estão fazendo atos em defesa da democracia e do governo do Evo Morales, reivindicando então essa bandeira como um símbolo da trajetória de conquistas dos povos indígenas e dos setores populares. Dito isso, falando sobre a questão do racismo, acho que as coisas são mais misturadas. Por exemplo, num momento da eleição, o Evo tratou de maneira bastante displicente e preconceituosa estudantes que estavam nas ruas. Daí apareceram na mídia vários estudantes saindo nas ruas com cartazes dizendo “Evo Morales: eu não sou como o seu pai, que pagou com ovelha a sua escolinha”. Dizer isso é dizer que nós “somos aqui da cidade, nós sabemos estudar, nós temos conhecimento, nós somos bem informados e você não, você faz parte de uma estrutura típica indígena corrupta”. Então existem, sim, formas racistas de representar o Evo.
Bruno Fonseca – Esse grupo de oposição, principalmente do Camacho, tem pauta anti-indígena, eu digo, uma proposta realmente contra direitos indígenas ou não?
Sue Iamamoto – Olha, eu não vi isso aparecendo nas falas dele até agora, contra os direitos indígenas. O que a gente vê aqui é uma oposição simbólica à Bolívia plurinacional, então a queima da Whipala, a denúncia dos 14 anos do governo Evo como “14 anos de opressão”. Eu acho que o discurso que foca na [bandeira] tricolor e em Deus é um discurso que destoa muito do discurso que foi hegemônico até agora, da pluralidade boliviana. Existia um discurso de incorporação dos povos indígenas, um discurso de ter políticas descolonizadoras. Já no discurso da oposição, a palavra “indígena” não existe… Existem apenas bolivianos, a bandeira tricolor e Deus. Não dá pra falar diretamente “os povos indígenas são nossos inimigos”. No Brasil, se o Bolsonaro fala que não vai ter incentivo para terra indígena, ele está atacando uma porcentagem pequena da população brasileira. No caso da Bolívia, isso é muito diferente. A Bolívia é um país que tem, no mínimo, 40% de população autoidentificada como indígena. Nenhum setor que queira liderar o país neste momento vai falar contra os movimentos indígenas. O fato deles queimarem e darem tanta centralidade à queima da Whipala dá o tom do que eles estão achando que é o indígena aceitável, eles não reivindicaram a Bolívia Plurinacional em nenhum momento… Eles estão falando Bolívia única e tricolor. Então, isso também diz muita coisa.
A autoproclamada presidenta da Bolívia, Jeanine Añez, ergue uma Bíblia enquanto entra no palácio presidencial em La Paz
Rute Pina – A Bolívia passou por um processo de constituinte e formação do Estado plurinacional, onde se discutiu um novo modelo de democracia, baseado na autonomia das comunidades. Quando essa parcela está nas ruas reivindica mais democracia, o que eles estão pleiteando? É a preservação desta trajetória boliviana ou vem um modelo de democracia “importado”, inspirado em outros países como EUA?
Sue Iamamoto – O [sociólogo boliviano] Fernando Mayorga defende que existem duas posturas, duas visões de democracia e de ideias que estão em jogo. Ele caracteriza que os atores da oposição estavam se levantando por um ideal de liberdade com alternância, que não seria possível que o governo se mantivesse tanto tempo no poder. Já os apoiadores do Evo Morales estavam se mobilizando por um ideal de justiça social, já que seu governo foi um dos poucos que conseguiu garantir o mínimo de distribuição de renda, garantia de serviços públicos no interior da Bolívia e uma série de mudanças qualitativas – os índices de extrema pobreza diminuíram muito na Bolívia nesses últimos anos. Dito isso, eu acho que essa questão não está colocada. Quando as pessoas defendem o Evo e falam “meu voto tem que ser respeitado”, elas estão reivindicando a maioria, dizendo que “somos mais de 40% da população boliviana, portanto nosso voto tem que ser respeitado”. Já quando o outro lado reivindica seu voto, essas pessoas estão dizendo que as regras do jogo foram descumpridas. As principais contradições do governo Evo estão, para mim, e sempre estiveram na pauta indígena, na pauta do extrativismo, do modelo econômico. Mas, infelizmente, essas contradições não estão colocadas nesse debate, elas não estão sendo disputadas pelas pessoas nas ruas. E quem defende o Evo Morales está defendendo o indígena simbólico, o indígena da Whipala, o Evo Morales como indígena. Aí você vê a importância do símbolo da Bolívia indígena e plurinacional, mas eles não estão defendendo a autonomia indígena quando eles saem às ruas para defender o governo do Evo Morales.
Rute Pina – Para encerrar: do ponto de vista geopolítico, qual a importância dessa disputa que acontece hoje na Bolívia?
Sue Iamamoto – Do ponto de vista dos ciclos progressistas latino-americanos, a Bolívia foi um dos ciclos que trouxe mais promessas. Havia a questão da representação indígena no poder, a necessidade de ter governos que respondam aos setores mais pobres da população, uma reivindicação de justiça social. O governo encarnava isso, de certa maneira, tanto por ser indígena quanto por ser popular, de maneira que era muito forte. Eu particularmente não achei que teria um revés nesse sentido. Nunca achei que isso seria possível, esse nível de racismo nas ruas e nos discursos das pessoas, que as pessoas queimassem a Whipala, por exemplo. Do ponto de vista do que significa isso para a esquerda, existe uma derrota. Mesmo em um processo em que temos uma combinação de sucesso econômico com governo popular. A Bolívia não estava na crise em que o Brasil estava quando houve o golpe de 2016, por exemplo. E mesmo assim há essa volta atrás.
Do ponto de vista geopolítico, acho que existe, talvez, uma derrota moral para a esquerda latino-americana, que via no processo boliviano uma inspiração. Esse se dá de maneira paralela à abertura de novos ciclos progressistas, como o caso do Chile e Equador. Mas, no caso boliviano, acho que ele reitera os labirintos da esquerda e a forma como a esquerda boliviana não conseguiu construir soluções aos seus desgastes, aos seus desafios. Ela não conseguiu se renovar e pensar de maneira mais ampla e mais plural no sentido de entender a sociedade e as mudanças na sociedade latino-americana.
Além disso, um governo de direita na Bolívia será vantajoso aos interesses do governo Bolsonaro. A Bolívia fornece gás natural para o Brasil, os contratos de gás se renegociam agora. O Evo estava numa situação bastante complicada, com dois governos de direita em dois dos seus principais compradores de gás natural. Com um governo de direita na Bolívia, o Brasil tem condições de fazer acordos com relação ao gás que são bastante prejudiciais à população boliviana e mais favoráveis aos brasileiros, que era o que acontecia antes da nacionalização do gás.
Então, existe um impacto para a população boliviana. Eles não estão colocando muito o que significa ter um governo neoliberal: o que significa ter um governo que vai fazer de tudo para atrair investimentos estrangeiros e agradar empresas estrangeiras; fazer de tudo para acomodar esses interesses no país com pouca negociação com os interesses nacionais. O governo do Evo tinha uma característica de conciliação. Mas, assim como no Brasil, existe uma diferença entre o que representa o PT e o que representa o governo Bolsonaro na sua abertura ao capital internacional. No caso da Bolívia, isso também vai se refletir nessa mudança de perspectiva econômica dos governos.