Romildo, uma liderança rural de Anapu (PA) que, por questões de segurança, não será identificada com o nome real, está ameaçado há mais de três anos por sua atuação na luta por reforma agrária na região onde foi assassinada a missionária americana Dorothy Stang, em 2005.
Ele falou à Agência Pública sobre a escalada de violência no município, que desde 2015 já registrou 15 mortes, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Duas delas ocorridas recentemente: a do líder sem-terra Márcio Rodrigues dos Reis (à direita na foto acima) e do conselheiro tutelar Paulo Anacleto [à esquerda na foto, morte ainda não contabilizada pela CPT], assassinados nos dias 4 e 9 de dezembro, respectivamente.
Márcio Rodrigues dos Reis, 33 anos, foi morto com uma facada no pescoço após uma emboscada. Segundo nota da CPT, Márcio estava trabalhando como mototaxista e foi chamado para levar um passageiro na zona rural. “Antes de chegarem ao suposto destino, o passageiro pistoleiro desferiu um golpe de faca em seu pescoço, Marcio não teve como reagir e teve morte instantânea. Seu corpo foi localizado por pessoas que trafegavam pela vicinal e avisaram a polícia civil de Pacajá”, descreve a nota.
Márcio fazia parte de um grupo de famílias sem-terra que reivindicava o assentamento em uma terra grilada em Anapu, na Gleba Bacajá, quando passou a sofrer ameaças. Márcio também era a principal testemunha de defesa do padre Amaro, sucessor da missionária Dorothy Stang e acusado por ruralistas de liderar ocupações.
Márcio chegou a ser preso duas vezes acusado de invasão de propriedade e porte ilegal de arma. Após sair da prisão pela segunda vez, em setembro de 2018, decidiu deixar Anapu por causa das ameaças de morte que recebia. Voltou para a cidade em 2019 para encontrar a família — tem quatro filhas — e recuperar o emprego como mototaxista.
No dia do assassinato de Márcio, o ex-vereador e então conselheiro tutelar Paulo Anacleto teria recebido uma ligação telefônica horas antes do assassinato. Segundo Romildo, ele próprio testemunhou a ligação junto a outras pessoas. Ele relata que Anacleto comentou que o autor da ligação, um conhecido fazendeiro da região, perguntava sobre a morte de Márcio horas antes da confirmação oficial do óbito. “Nós vimos e podemos afirmar que nós vimos”, diz Romildo. Segundo ele, a ligação indicaria que o fazendeiro tinha conhecimento da emboscada.
Outras fontes consultadas pela reportagem confirmam que foi o ex-vereador e conselheiro tutelar Paulo Anacleto quem organizou um cortejo de mototaxistas rumo ao velório de Márcio. No dia do cortejo, Anacleto teria sugerido aos presentes que o autor da ligação poderia ser o mandante do crime. “Ele falou em voz alta”, diz Romildo.
Cinco dias após o assassinato de Márcio, Anacleto também foi morto próximo à praça central de Anapu — e o filho de cinco anos viu o pai morrer. Testemunhas disseram que um homem desceu da garupa de uma moto e disparou contra ele, que estava dentro do carro.
Os assassinatos são investigados pela Polícia Civil do Pará. A reportagem procurou a assessoria do órgão para saber sobre as linhas de investigação e sobre uma possível conexão entre os crimes relacionados a disputa de terras, mas não obteve resposta até a publicação.
O Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento para acompanhar investigações e solicitou providências contra escalada de violência às autoridades de segurança pública do Pará. Segundo Romildo, se ele precisar depor, será morto por pistoleiros. “Eu só presto depoimento sob sigilo”, afirmou. “Em menos de uma semana, entre os dias 4 e 9 de dezembro, ocorreram dois assassinatos que podem estar ligados aos conflitos agrários históricos na região”, diz nota divulgada pelo MPF.
Assassinatos no país por questões relacionadas a disputa de terra somam 28 em 2019, segundo a CPT. No caso de Anapu, “existe uma milícia rural composta por pistoleiros, organizada por madeireiros e grileiros de terras públicas”, diz a pastoral. “Quem contraria seus interesses está sentenciado à morte. No governo Bolsonaro esse grupo tem tido apoio e total liberdade de ação. Com medo, muitas lideranças já saíram de Anapu, outras tem medo de denunciar os crimes temendo ser a próxima vítima. Enquanto isso, a grilagem e o desmatamento avança sobre as áreas de assentamentos criados”, diz outro trecho do comunicado.
Em agosto, a Pública relatou outro caso de liderança ameaçada em Anapu que precisou deixar a região para não morrer. Em setembro, nossa reportagem também revelou como a região do sudoeste paraense tem sofrido com a intensificação das invasões por madeireiros e desmatamento ilegal e omissão do Incra na proteção dos territórios ameaçados.
“Dar a cara a tapa é praticamente uma sentença de morte”
Romildo conta que desde que passou a atuar na região, ele e sua família sofrem com as ameaças. “Eu comecei a ser perseguido desde o início da luta, tive que mudar os meus horários”, conta.
Após a morte de Márcio e Paulo, Romildo deixou Anapu temporariamente e deseja ser incluído no programa estadual de proteção a defensores de direitos humanos. “Eu sou alvo agora”, diz. “Vários amigos me falaram: a hora que você entrar nessa luta vai ter problema. Essas pessoas aqui são marginalizadas. Você dar a cara a tapa junto com eles é praticamente uma sentença de morte”, afirma.
Professores também são ameaçados
Em outro episódio, dois docentes da Universidade Federal do Pará (UFPA) com atuação em Anapu também passaram a receber ameaças após gravarem um vídeo em apoio a famílias camponesas que buscam ser assentadas. No vídeo, Anderson Serra e Gilberto Marques, que é diretor da Associação de Docentes da Universidade Federal do Pará, questionam a prisão considerada “arbitrária” de um agricultor pela Polícia Civil e também o assassinato do trabalhador rural Márcio dos Reis.
Em áudios e prints de mensagens em grupos de WhatsApp que a Pública teve acesso, os docentes são chamados de “bandidos graduados” e “vagabundos”. Em um áudio, uma pessoa não identificada faz ameaças implícitas de morte, dizendo que trabalhador que disse ter “costas quentes” acabou assassinado. Em outro áudio, uma pessoa afirma que os docentes deveriam ser enquadrados na Lei de Segurança Nacional por “insuflar a violência e promover a desordem no campo”.
“A nossa situação não é a mais grave, a mais grave é a dos trabalhadores. E tem um agravante: a partir dessa semana agora, tanto o Judiciário quanto o Ministério Público entram em recesso, então é um período muito complicado, porque em tese eles [fazendeiros] se sentem mais fortalecidos. É uma preocupação grande nossa, da possibilidade de um novo assassinato lá dentro”, diz o docente Gilberto Marques.
O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) emitiu uma nota de solidariedade aos professores da UFPA, considerando as ameaças “inaceitáveis”.