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Levantamento inédito da Pública com dados do Fiquem Sabendo mostra que governo paga até hoje pensões de agentes responsabilizados por crimes durante o regime militar

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22 de janeiro de 2020
10:00
Este artigo tem mais de 4 ano

José de Souza morreu em 17 de abril de 1964, nas primeiras semanas da recém-instaurada ditadura militar brasileira. Um dos cinco filhos de Nair Barbosa e Alcides de Souza, ele era mecânico e ligado ao Sindicato dos Ferroviários do Rio de Janeiro. Ele havia sido preso nove dias antes, detido para averiguações sob a acusação genérica de envolvimento em “atividades subversivas em conivência com o sindicato”.

Levado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara, Souza foi mantido em uma sala com cerca de cem pessoas igualmente presas pelo regime. Durante a detenção, o mecânico presenciou companheiros de cárcere indo prestar depoimentos e voltando desmaiados. “Constantemente [se] escutava gritos e tiros de metralhadora nas dependências do Dops”, afirmou um colega de cela de Souza em depoimento à Comissão de Direitos Humanos e Assistência Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ).

Foram os militares que deram a notícia: o corpo de Souza estava no pátio do Dops. Ele teria se atirado pela janela do terceiro andar do edifício às 5 da manhã. O laudo médico informou óbito por choque com fratura de crânio com hemorragia cerebral.

Levaria 50 anos para que a história de Souza fosse reescrita. No relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, a morte do mecânico foi apontada como consequência de ter sido torturado pelas autoridades que o prenderam arbitrariamente. Segundo o documento, Souza morreu em decorrência da tortura por agentes do Estado –entre eles Cecil de Macedo Borer, então diretor do Dops da Guanabara – no contexto das sistemáticas violações de direitos humanos promovidas pela ditadura militar.

A morte de Souza foi decisiva para a CNV incluir Borer em uma lista de 377 pessoas apontadas como responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura. Além de José, Borer foi responsabilizado por assinar documentos sobre a morte de Edu Barreto Leite, terceiro-sargento do Exército brasileiro que teria se jogado de uma janela após ter sido perseguido pelos órgãos de inteligência por suposto envolvimento em atividades subversivas. Borer também foi o responsável pela primeira prisão do ex-governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, em 1933, quando este era estudante, e por coordenar os policiais que perseguiram e balearam o ex-deputado do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Carlos Marighella em um cinema, no Rio de Janeiro, em 1964.

Apesar do seu papel como diretor do Dops, Borer teria se aposentado no ano seguinte à morte de Souza, em 1965, recebendo aposentadoria militar. A partir de 2003, o ex-chefe do centro de tortura ainda deixou uma pensão vitalícia para a ex-companheira, Maria de Lourdes Mendonça. Em dezembro, o valor bruto pago foi de R$ 29 mil.

O benefício não é exclusividade de Borer: segundo apuração inédita da Agência Pública, ao menos outras três pessoas ligadas a crimes na ditadura deixaram pensões para beneficiários pagas até hoje, 35 anos após o fim do regime militar.

Sigilo de pensões de herdeiras de militares caiu 35 anos após fim da ditadura

O pagamento de pensões a viúvas e filhas solteiras de militares era um segredo mantido a sete chaves pelo governo federal. Apesar de custarem cerca de R$ 20 bilhões por ano, o governo se recusava a divulgar a lista detalhada dos pensionistas, com nomes dos beneficiários, valores recebidos e quem é o instituidor da pensão. A Pública tentou acessar esses dados em 2018, com outros veículos de jornalismo, mas teve os pedidos de acesso à informação negados pelo Ministério da Defesa, que alegou que a publicação desses dados fere sigilo pessoal. Na época, as Forças Armadas se limitaram a informar que havia cerca de 110 mil filhas de militares que recebiam pensões vitalícias.

Contudo, em janeiro deste ano, o Fiquem Sabendo – agência de dados independente especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI) – obteve, após uma batalha judicial que levou cerca de três anos, a base completa de pagamentos a servidores inativos do governo federal. A lista contém todos os pensionistas e aposentados, inclusive as pensões vitalícias a filhas e viúvas de militares. Somente em novembro de 2019, todos esses pagamentos chegaram a mais de R$ 2,4 bilhões.

A Pública cruzou a base do Fiquem Sabendo com a lista de 377 pessoas apontadas como responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura feita pela CNV. A reportagem encontrou quatro nomes que, apesar de serem responsabilizados por violações de direitos humanos no regime militar, deixaram pensões a suas viúvas pagas até hoje, como é o caso de Borer, ex-diretor do Dops.

O número final pode ser ainda maior, visto que na lista da CNV há nomes comuns sem informações de identificação, como registro ou CPF, o que torna impossível descartar homônimos de nomes comuns. A reportagem considerou apenas aqueles casos nos quais, além de o nome completo ser idêntico, as informações de órgão pagador da pensão coincidiam com as de atuação disponíveis no relatório da CNV, bem como a data da morte do instituidor da pensão.

Legistas acusados de emitirem laudos falsos também deixaram pensões vitalícias

Apontados pela CNV como autores de laudos de causa de morte fraudulentos, três médicos-legistas do Instituto Médico Legal (IML) à época da ditadura militar também deixaram pensões para suas viúvas. Em dezembro, elas receberam valores entre R$ 3,3 mil e R$ 5,8 mil.

Ex-servidor do IML do Rio de Janeiro, o médico-legista Elias Freitas é apontado pela CNV como partícipe em sete mortes ou desaparecimentos forçados entre 1969 e 1982, parte deles de vítimas de torturas. Segundo a apuração da CNV, Freitas emitiu laudos fraudulentos sobre as vítimas Eremias Delizoicov, Geraldo Bernardo da Silva e Roberto Cietto, em 1969; Juares Guimarães de Brito, em 1970; Carlos Eduardo Pires Fleury, em 1971; Aurora Maria Nascimento Furtado, em 1972; e Solange Lourenço Gomes, em 1982.

Freitas foi também o médico-legista responsável pela necropsia do corpo do sargento Guilherme do Rosário, morto pela explosão de uma bomba no episódio do Riocentro, em 1981. Antes de morrer, ele chegou a ser diretor do Hospital da Polícia Civil, no Rio de Janeiro. Sua viúva, Olga Pereira Freitas, ganha pensão vitalícia desde 2008, tendo recebido R$ 5,8 mil em dezembro de 2019.

Colega de Freitas no IML carioca, o médico-legista Olympio Pereira da Silva é apontado pela CNV como autor de laudo fraudulento do militante estudantil Antônio Carlos Nogueira Cabral, morto por ação do Estado brasileiro com indícios de tortura em 1972. Ex-professor de medicina legal da Universidade Candido Mendes, ele é autor de livro sobre a área.

Seu filho, Olympio Pereira da Silva Júnior, foi ministro do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1994 e 2015. Em entrevista à série “Memórias do Ministério Público Militar (MPM)”, ele afirmou que o pai “sempre achou que ‘comunista comia crianças’”, e “com certeza estava inserido nesse contexto de repressão”. Para o ex-ministro do STM, o médico-legista tinha “um posicionamento bem de milico”. Desde 1993, a viúva de Olympio “pai”, Emília Cardoso Pereira da Silva, ganha pensão vitalícia, tendo recebido R$ 3,3 mil em dezembro de 2019.

Médico-legista do IML de São Paulo, Lenilso Tabosa Pessoa foi apontado pela CNV como responsável por laudo fraudulento da morte do militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) Hélcio Pereira Fortes, em 1972. Segundo testemunhas, Fortes foi vítima de sessões de tortura nas dependências do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo.

O médico-legista foi professor de medicina legal das faculdades de direito da USP e de São Bernardo do Campo. Desde que ele morreu, em 2007, sua viúva, Silvana Cristina Videira Tabosa Pessoa, recebe pensão vitalícia. Segundo a base obtida pelo Fiquem Sabendo e divulgada pelo governo federal, ela recebeu R$ 4,3 mil em dezembro do último ano.

Nenhum envolvido em tortura foi punido após relatório da CNV

Sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em novembro de 2011, a CNV iniciou seus trabalhos em maio de 2012, entregando o relatório final em 10 de dezembro de 2014. Instituída para “apurar graves violações de Direitos Humanos” entre 1946 e 1988, a CNV listou 434 mortos e desaparecidos políticos e apontou 377 pessoas como responsáveis por crimes no período da ditadura militar.

Para Cecília Coimbra, fundadora do grupo Tortura Nunca Mais, o trabalho da CNV foi tímido, ainda que tenha sido um “primeiro passo importante”. De acordo com a psicóloga, presa pela ditadura militar entre agosto e novembro de 1970, a CNV teve o alcance reduzido por acordos políticos e pela influência de grupos ligados às Forças Armadas, que temiam uma revisão da Lei da Anistia, de 1979.

“Essas pessoas sequer foram chamadas [pela Justiça] para serem ouvidas. Das que foram chamadas pela CNV, algumas não compareceram. Outras que compareceram, os depoimentos foram mantidos em sigilo até hoje”, afirma a ex-presa política. Segundo Cecília, com a formação de uma comissão que não tinha poder de encaminhar as denúncias para o Judiciário, a responsabilização dos 377 agentes do Estado pela CNV trouxe poucos efeitos práticos.

Uma das pessoas escolhidas por Dilma Rousseff para compor a CNV, a advogada e professora universitária Rosa Cardoso ressalta que, para chegar a resultados práticos, iniciativas como essa dependem de “opções políticas”. “Dos governantes até agora eleitos, alguns encaminharam esse problema, para que ele se desenvolvesse e chegasse a determinados resultados, e outros impediram que isso acontecesse, como é o caso do governo atual, que até nega que houve uma ditadura. A questão não avança por causa disso, porque depende de decisões políticas, para que se desenvolva numa direção ou em outra”, diz.

Segundo Rosa, a formulação da lista de responsáveis pelos crimes cometidos durante o regime militar foi feita para cumprir normativas do direito internacional que regem iniciativas da chamada “justiça de transição”, como as comissões da verdade. Para a advogada, que coordenou a CNV entre maio e agosto de 2013, a responsabilização atende a um “clamor por justiça” que as vítimas de atrocidades têm. “Se você não tem um autor, você não tem responsabilização e não tem aplicação de uma punição, e o fato fica impune”, afirma.

Apesar de o relatório final da CNV destrinchar vários dos crimes cometidos por agentes do Estado ao longo do regime militar, nenhum dos 377 nomes apontados foi responsabilizado judicialmente. Algumas iniciativas para que houvesse punição foram barradas pelo Judiciário em diferentes instâncias, geralmente sob o argumento de que os crimes haviam prescrito ou de que estavam cobertos pela Lei de Anistia. É o que ocorreu no caso Rubens Paiva, em que ação penal iniciada pelo Grupo de Trabalho Justiça de Transição, do Ministério Público Federal, foi interrompida pelo desembargador federal Messod Azulay em 2014 – Cecília Coimbra, do Grupo Tortura Nunca Mais, era uma das testemunhas de acusação.

A única condenação do Brasil relativa aos crimes da ditadura foi feita pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). Inédita, a sentença de 2010 responsabilizou o Estado pelo desaparecimento de cerca de 70 pessoas na região do Araguaia, onde estava instalada a guerrilha do Araguaia. O conjunto de sanções imposto pela CIDH, que inclui a responsabilização penal dos envolvidos, nunca foi cumprido pelo Brasil.

Bruno Fonseca/Agência Pública

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