O sem-terra João Antônio conta que perdeu a noção do tempo que passou com o cano da pistola da Polícia Militar de Candeias do Jamari, em Rondônia, grudado em sua nuca. Foi o suficiente para que o metal parecesse menos gelado em contato com a pele e para que os quatro policiais fardados que o haviam abordado apelassem para outros métodos de violência, como colocar uma granada no escapamento de sua moto, levá-lo para o mato e dizer que iriam explodi-lo.
A violênciaaconteceu cerca de um mês após a família de João, que teve o nome trocado na reportagem por questões de segurança, e outras cerca de cem famílias de camponeses terem sofrido uma ação de reintegração de posse.
O despejo realizado há quase dois anos [7 de maio de 2018] foi o segundo enfrentado pelos sem-terra do acampamento Boa Sorte, que desde 2019 vivem a angústia de outras duas novas ações de despejo propostas contra eles.
Como apurou a Agência Pública, com base em um levantamento feito com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), pelo menos outros 52 acampamentos podem sofrer despejos neste ano na Amazônia Legal, região que engloba nove estados do país.
Rondônia, Pará e Maranhão são os estados com maior número de acampamentos de sem-terra e pequenos agricultores posseiros ameaçados por essas ações de reintegração, geralmente propostas por fazendeiros e grandes grupos do agronegócio.
Em Rondônia, além do Boa Sorte, outros 13 acampamentos estão ameaçados de despejo em 2020. No Maranhão, ações de reintegração de posse podem despejar 12 acampamentos. No caso do Pará, são 11 possíveis despejos apenas na região sul e sudeste do estado.
Consórcio contra os sem-terra
Para o corregedor-auxiliar da Defensoria Pública de Rondônia, Victor Hugo de Souza, a situação dos acampados do Boa Sorte está entre as mais vulneráveis do estado. “Com a insegurança jurídica sobre a terra, eles não sabem o que fazer. É uma questão de sobrevivência porque precisam plantar para poder comer.”
Desde que se mudaram para a região, alguns por volta de 2014, outros mais recentemente, os sem-terra do Boa Sorte seguem defendendo que o espaço onde estão acampados comporia o Projeto de Assentamento Flor do Amazonas IV, quarta parte de 33 mil hectares que formam um conflito fundiário retratado pela Pública e envolvem o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), camponeses e fazendeiros.
João explica que o motivo dado pelos policiais para a sessão de violência que sofreu se deve à sua permanência no lote reivindicado pelo fazendeiro Hernando Neto Linhares, o primeiro a ingressar com ação contra os sem-terra, em 2017.
Linhares, que já foi presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Rondônia (Fecomércio-RO), herdou as terras do tio, Francisco Teixeira Linhares, falecido em 2010. As demaisações contra os sem-terra são de pessoas que alegam ter comprado do próprio Hernando parte dos hectares, que foram loteados em propriedades menores — caso de Anísio Raimundo Teixeira e Marselha Rita Serrate.
A última notificação de despejo aos acampados do Boa Sorte é de outubro de 2019 e foi solicitada pelo médico Luís Eduardo Maiorquim, vizinho da terra requisitada por Hernando. Ex-secretário estadual de Saúde de Rondônia, Maiorquim foi preso preventivamente em março de 2019 em uma operação que investiga indícios de corrupção na Secretaria de Estado da Saúde (Sesau) e solto no mês seguinte.
A reportagem da Pública percorreu, pela estrada, às margens da área reivindicada pelo médico e não identificou plantações ou criação de animais, apenas uma casa ainda em construção, chamada pelos sem-terra de “mansão”. Uma dos acampados contou que chegou a conversar com o ex-secretário de Saúde. “Ele disse que não precisa da terra, mas que comprou e então é dele. Nós precisamos para criar os nossos filhos”, recorda. Segundo os sem-terra, a CPT e o próprio advogado de Marselha, Renato Juliano Serrate de Araújo, os fazendeiros atuam em uma espécie de consórcio contra os camponeses.
Milícia rural, tortura e assassinato
Segundo o procurador Raphael Bevilaqua, do Ministério Público Federal em Rondônia (MPF-RO), além da iminência dos despejos, a situação de violência de policiais e pistoleiros torna a situação alarmante. “Pistolagem envolvendo agentes de segurança pública é muito comum na região. Eles agem como uma milícia rural”, afirma.
Bevilaqua afirma ter encaminhado boletins de ocorrência das agressões da polícia contra os sem-terra para a procuradoria criminal, onde está sendo elaborada uma recomendação conjunta para a atuação da polícia local.
“Disseram que eu era um verme que não deveria estar vivo”, lembra João sobre a fala de um dos policiais. Diariamente ele refaz a pé o caminho de uma hora onde a polícia o abordou para deixar o filho mais velho [com 6 anos à época] na escola municipal.
João afirma que conseguiria identificar cada um dos quatro policiais envolvidos. “Com certeza! Não sai da minha cabeça.” Apesar dos detalhes nas informações apresentadas pela vítima logo após o crime à Corregedoria-Geral da Polícia Militar de Rondônia, o inquérito foi concluído um ano depois da denúncia, em agosto de 2019, e está parado no Ministério Público do estado, sob sigilo. João aguarda desde então uma audiência de identificação.
João temeu ter o mesmo fim que Hugo Rabelo Leite, sem-terra morto no primeiro despejo do Boa Sorte, em 7 de dezembro de 2017. De acordo com os acampados, a polícia expulsou todos e a prefeitura os acolheu num pequeno ginásio no centro de Candeias do Jamari. Hugo voltou ao acampamento, com mais dois sem-terra, para supostamente pegar pertences esquecidos.
Na versão dos acampados, Hugo foi recebido à bala por policiais que estariam trabalhando como jagunços para o fazendeiro. Na versão da Polícia Militar, houve um tiroteio envolvendo os acampados, que também atingiu Hernando no maxilar.
A morte de Hugo segue impune. Consultado, o Ministério Público Estadual de Rondônia (MP-RO) e a Defensoria Pública de Porto Velho informaram não ter informação sobre o inquérito que apura a morte de Hugo. De acordo com o agente da CPT Josep Iborra Plans, o inquérito foi instaurado na Polícia Civil em Candeias do Jamari, mas está parado. Procurada, a Polícia Civil não comentou.
Viver com medo
O “sonho de uma realidade favorável”, convertido em preces otimistas, levou à escolha do nome “Boa Sorte” ao acampamento, de acordo com a sem-terra Berenice Lopes. A realidade tem sido mais como um revés. Aos 56 anos, Berenice chegou a ser levada ao posto de saúde após o primeiro despejo do acampamento, em novembro de 2017. Quando ela e uma amiga tentaram intervir enquanto um policial batia em um acampado que tem deficiência mental, ambas levaram um soco.
A sem-terra, uma mulher pequena, saiu correndo e foi atingida então pelo efeito de bombas de gás lacrimogêneo. “Pegou uma do meu lado e eu caí. Acordei no pronto-socorro”, recorda Berenice, afirmando que “nunca havia visto tanta violência”.
A amiga também atingida pela agressão, Rosa Lima, confessa não andar mais sem companhia. “Eu sou uma das pessoas ameaçadas de morte nesse grupo”, explica. “Eu dava nome aos bois, denunciava os fazendeiros. Tá no sangue, na alma. Se eu tiver que morrer brigando por terra, vou morrer feliz”, afirma. Entre os poucos pertences que Rosa guardou após duas reintegrações está uma panela cravejada de buracos de balas.
Em outubro de 2019, segundo informações da mídia local, a Polícia Ambiental apreendeu três espingardas e um revólver num barco, após denúncia feita pelos acampados do Boa Sorte. Os sem-terra já haviam recebido, em julho, uma carta anônima denunciando a presença de pistoleiros que estariam vivendo em um flutuante perto do acampamento.
“Eles já sabem todos os passos dos líderes dos movimentos dos acampados”, diz o bilhete, que informa que os homens possuem um grande arsenal de armas e que haviam sido contratados em um consórcio de fazendeiros para matar os sem-terra. O bilhete foi enviado com fotos dos pistoleiros.
Na sede da Associação dos Produtores Rurais Flor do Amazonas (Aproflam), um abrigo sem paredes e chão de terra, cerca de 30 mulheres, homens e crianças, sentados em pequenas toras de madeira, aguardavam a chegada da reportagem. “O que é barraco para as pessoas para nós é uma casa. Não temos condições de nos manter sem a Justiça nos dar o direito de construir”, alertou Rosa, se esquivando do título de liderança. “Se eu apontar um líder, vou estar apontando um caixão.”
Nenhuma família do acampamento possui casa de alvenaria, e muitas já perderam documentos, objetos pessoais, animais domésticos e, principalmente, a produção agrícola após os despejos. “Você vive em cima de uma terra com medo de plantar. Pode estar plantando hoje e perder tudo no dia seguinte”, diz Rosa.
A sem-terra Luzinete Correia, por exemplo, conta que perdeu quase mil mudas de café que estavam prontas para serem plantadas. “A gente sai, volta, acha que vai dar certo, e acabam destruindo tudo. Agora já estou com as mandiocas plantadas e produzindo e vieram dar a nova ordem de despejo”, reclama.
A sem-terra Berenice Lopes e seu marido, Hélio Moreira Lopes, em frente à plantação de mandioca do casal
Documento suspeito do Incra
Em uma das ações que podem levar os sem-terra a novo despejo neste ano, a requerente, Marselha Rita Serrate de Araújo, afirma ter comprado as terras diretamente de Hernando.
Conforme revelou a Pública, um documento suspeito do próprio Incra favoreceu a empresária na disputa judicial. Nele, o órgão agrário alega que não tem interesse nos pouco mais de mil hectares para reforma agrária.
O documento está assinado por Eustáquio Chaves Godinho, chefe da divisão de Ordenamento da Estrutura Fundiária da Superintendência Regional do órgão, que já foi preso — e absolvido posteriormente — pela emissão de documentos ilegais para facilitar a privatização de terras da União.
No início de novembro de 2019, além de Eustáquio, o superintendente regional do Incra Erasmo Tenório Silva e outros funcionários do órgão foram afastados. A medida administrativa serviu para “resguardar apurações disciplinares em curso”.
Em entrevista à reportagem, quatro dias antes do afastamento, o superintendente regional do Incra informou que as terras do acampamento Boa Sorte não fazem parte do Flor do Amazonas IV e que não existe nenhuma chance de os sem-terra serem assentados.
Com a mudança de comando no Incra, a visão do atual superintendente de Porto Velho, Ederson Littig Bruscke, parece ser outra. Em nota, ele afirma que as terras onde estão acampados os sem-terra do Boa Sorte são terras públicas vendidas irregularmente aos fazendeiros, e portanto ainda podem se tornar assentamento.
O procurador Raphael Bevilaqua suspeita que a empresária Marselha seja uma laranja que integre o consórcio composto por ao menos 15 fazendeiros, uma vez que ela reivindica a regularização da mesma área que já foi objeto das reintegrações de posse de Hernando e Anísio. “É a mesma área que fica sendo loteada múltiplas vezes, porque eles não podem fazer aquisição das terras concentradas para regularizá-las”, explicou Bevilaqua.
Procurada, a defesa de Marselha afirmou que “o pessoal [sem-terra] vai sair de lá”, mas não pôde continuar a entrevista por telefone e não voltou a atender a reportagem, que não conseguiu contato com a defesa de Maiorquim e de Hernando.
Sem-terra do acampamento Boa Sorte se reúnem em sede da Associação
Cenário de conflitos em 2020
A reportagem entrou em contato com agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) dos nove estados da Amazônia Legal e fez um mapeamento dos acampamentos de sem-terra ou posseiros que podem sofrer despejos em 2020. Pelo menos 52 ações de reintegração de posse estão ajuizadas e já tiveram decisões liminares em seu favor, recentemente, em todos os estados.
Em Rondônia, a Pública reuniu informações sobre 13 acampamentos ameaçados neste ano, o mesmo número de acampamentos que sofreram despejos em 2019. No estado, um dos casos é o da ocupação Che Guevara, do MST, onde 130 famílias acampam há quase 20 anos. Localizada no município de Alto Alegre dos Parecis, a ocupação fica dentro da fazenda Sol Nascente.
No Pará, os dados se referem ao sul e sudeste do estado, onde são contabilizadas pelo menos 11 ocupações ameaçadas de despejo. Entre elas está o caso da fazenda Santa Lúcia, palco do massacre de Pau d’Arco. O despejo de mais de 200 famílias marcado para este mês foi suspenso temporariamente, e uma audiência pública está marcada para fevereiro.
Já no Maranhão, de acordo com os dados da CPT, pelo menos 57 ações de reintegração de posse ainda não tiveram decisão da Justiça, sendo que, nos últimos quatro anos, dez deles já tiveram audiência de justificação prévia (podendo ter decisão liminar a qualquer hora). Uma delas, de acordo com os arquivos da organização, sofre violência de pistoleiros: é o caso do povoado Bem Feito, localizado no município de Formosa da Serra Negra.
No Amapá, os dados sobre os quatro despejos ocorridos em 2019 e os outros quatro previstos neste ano têm um componente em comum: a maioria das ações de reintegração de posse foi pedida pela empresa Amapá Florestal e Celulose (Amcel), contra posseiros e pequenos agricultores. A empresa já foi condenada a devolver 118 mil hectares de terra à União na CPI das Terras Públicas do Amapá e é identificada pela própria CPI como a principal responsável pela grilagem de terras do estado.
A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.
Bruno Fonseca/Agência Pública
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Julia Dolce/Agência Pública
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Jaqueline Pacífico de Souza
José Cícero da Silva/Agência Pública
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