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Ministério Público e Polícia Federal seguem o dinheiro para desvendar esquemas ilegais de comercialização de ouro; lobista do garimpo participa de audiência com Hamilton Mourão

Reportagem
22 de junho de 2020
12:02
Este artigo tem mais de 4 ano

Uma mudança de foco na atuação da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF) está amarrando os fios que ligam os garimpos ilegais a instituições financeiras que, autorizadas pelo governo, compram o ouro na Amazônia. As investigações da Força-Tarefa Amazônia (FTA) miram uma “lavanderia” de dinheiro sujo a céu aberto que, segundo uma das principais entidades do setor, a Associação Nacional do Ouro, movimenta anualmente entre R$ 4,5 a R$ 5 bilhões, o equivalente a algo em torno de 17% da produção oficial do minério, estimada, em média, em 100 toneladas.

As magníficas cifras, na maior parte, são resultados da extração ilegal de ouro em terras indígenas e em unidades de conservação ambiental. Mas incorporam também outras atividades clandestinas, como o contrabando, o descaminho do ouro ou mesmo o tráfico de drogas, que se aproveitam dos frágeis controles oficiais na Amazônia para acessar a economia formal.

“A gente passou a olhar para onde o ouro estava indo e como estava sendo internalizado na economia. É mais prático e produtivo focar no agente da “lavagem” do que em milhares de garimpeiros”, disse à Agência Pública a procuradora da República Ana Carolina Bragança, chefe da FTA.

Levantamento da Pública em apenas sete operações de vulto deflagradas nos últimos três anos pela FTA – Dilema de Midas I e II, Elemento 79, Minamata, Crisol, Ouro Perdido e Japeusa – mostra que, da extração ao comércio, foram movimentados cerca de R$ 650 milhões em ouro de origem suspeita. Segundo a PF e o MPF, a maior parte do minério é extraída de dezenas de garimpos ilegais que se proliferam por toda a Amazônia Legal, especialmente em regiões com a bacia do rio Tapajós, a maior província mineral do planeta em extensão, com 98 mil quilômetros quadrados, e de outras terras indígenas como a Yanomami, Raposa Serra do Sol, Tenharim, Munduruku e Kayapó, nos estados do Pará, Amazonas e Roraima.

Os investigadores seguiram o rastro do ouro ilegal e foram bater na porta de instituições instaladas no coração financeiro da América do Sul, em São Paulo, beneficiárias indiretas desse mercado clandestino. No seleto grupo que negocia com ouro estão 14 instituições, entre bancos, corretoras e seis distribuidoras de títulos e valores mobiliários (DTVMs), autorizadas pelo Banco Central a negociar ouro, todas elas filiadas à Associação Nacional do Ouro (Anoro).

Desde 2013, o presidente da Anoro é o empresário de garimpo e agente financeiro na avenida Paulista, Dirceu Santos Frederico Sobrinho, dono principal da Mineradora Ouro Roxo Ltda., da D’Gold Purificadora de Metais Preciosos e da FD Gold DTVM. Ele diz que o ouro clandestino é parte das 35 toneladas retiradas anualmente de garimpos, incorporadas à produção anual pela Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão do Ministério de Minas e Energia, substituto do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Depois de ziguezaguear por zonas garimpeiras e cidades das zonas de mineração como moeda corrente, o ouro de origem ilegal é vendido em postos de compra de grandes instituições financeiras e incorporado à economia formal por mecanismos fraudulentos. Já limpo, passa a fazer parte das reservas cambiais nacionais.

Frederico Sobrinho é réu num processo por danos ambientais em Itaituba (PA). Ele também foi acusado em 2011 de lavagem num caso de apreensão de barras de ouro em poder de sua DTVM, a FD Gold, procedentes de garimpos ilegais de unidade de conservação no Parque Nacional do Tumucumaque (Amapá) e da Guiana Francesa. O processo encontra-se trancado por ordem judicial.

No caso de dano ambiental, Frederico Sobrinho foi acusado de usar cianeto na amalgamação do ouro, danificando um rio. À Pública, ele disse que aguarda julgamento, mas que apresentou à Justiça informações que provam sua inocência.

O presidente da Anoro é uma das lideranças nacionais que bancam o lobby para legalização dos garimpos em terras indígenas, como quer o presidente Jair Bolsonaro. Frederico Sobrinho frisa, no entanto, que a entidade é contra garimpo ilegal e defende a retirada de garimpeiros de terras indígenas onde a atividade não possa ser regularizada. Em setembro do ano passado, enquanto garimpeiros bloqueavam a BR-163, no Pará, para protestar contra a ação do Ibama e ICMBio, que haviam queimado equipamentos de mineração apreendidos, o empresário era recebido no Palácio do Planalto pelos ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Onyx Lorenzoni (Cidadania), então chefe da Casa Civil, e Ricardo Salles (Meio Ambiente). Queria apoio do governo para impedir a repressão aos garimpos.

Há poucos dias, ele participou de audiência com o vice-presidente, Hamilton Mourão, que preside Conselho da Amazônia, a quem entregou um documento em que empresários do garimpo e agentes financeiros assumem o compromisso de combater a ilegalidade desde que o governo federal garanta o fim de ações repressivas e da destruição de equipamentos de mineração. O presidente da Anoro afirma que Mourão ouviu atentamente os pleitos da entidade e criou um grupo de estudo para avaliar o caso dos garimpos no contexto da política governamental que será aplicada na Amazônia.

O vice-presidente Hamilton Mourão durante audiência com Dirceu Frederico dos Santos Sobrinho, Presidente da Anoro; o Deputado Federal Euclydes Pettersen (PSC/MG); Paulo Pettersen, Prefeito de Carangola/MG; Jose Altino Machado; Presidente Fundador da FINAMA

Por sua vez o MPF calcula que a extração ilegal do ouro causa prejuízos ambientais equivalentes a 12 vezes o lucro. Dirceu Frederico Sobrinho admite que a atividade tem gerado danos ao meio ambiente e passa, em grande parte, pela clandestinidade. Mas afirma que, por tratar-se de uma questão complexa, com repercussão social e na economia, não pode ser considerada apenas como caso de polícia.

“Nós queremos que em vez de repressão os órgãos governamentais capacitem e orientem os garimpeiros a agir na legalidade e com respeito ao meio ambiente”, disse ele em entrevista à Pública. O empresário acha que medidas como cadastro do garimpeiro, criação da nota fiscal eletrônica e a produção de relatórios diários por instituições autorizadas pelo Banco Central na primeira compra do ouro como ativo financeiro – eliminando-se as transações do minério como mercadoria – permitiriam um controle da atividade que hoje os órgãos oficiais não possuem e melhorariam a arrecadação de tributos como CFEM [Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais], IOF [Imposto sobre Operações Financeiras] e IRPF [Imposto sobre a Renda da Pessoa Física].

Nas contas da entidade, entre 2016 e 2019 o país deixou de arrecadar R$ 319,5 milhões em tributos, montante referente a mais de 267 toneladas de ouro exportado sem recolhimento de impostos federais no período. O comércio internacional sem controle, segundo ele, beneficiaria países vizinhos, como a Bolívia, que saltou de uma exportação mensal de 300 quilos mensais para 1,5 tonelada de ouro. Nos documentos entregues ao vice-presidente, eles reclamam também da burocracia e morosidade da ANM em avaliar pedidos de lavra e locais onde os garimpos são permitidos. Só no Tapajós, onde há uma reserva mineral de 28.745 quilômetros quadrados identificada, de 1990 a 2018, de 48.691 requerimentos apresentados, 2.023 permissões de lavra garimpeira (PLGs) foram outorgadas, dos quais apenas 560 estão em vigor. Há, segundo ele, 11 mil processos pendentes de análise na ANM. Em todo o país, o total de PLGs ativas é de 2.434.

O problema é que as tratativas com o governo foram iniciadas num momento em que a FTA aperta o cerco das investigações sobre as instituições financeiras que gravitam em torno da Anoro justamente para combater a extração e lavagem do ouro. A procuradora Ana Carolina Bragança diz que é necessário esforço para criar um marco regulatório que organize e legalize o setor mineral, mas quer do Conselho da Amazônia prioridade para retirar os garimpos ilegais das terras indígenas, especialmente agora que a pandemia do coronavírus avança assustadoramente contra as aldeias.

O caso Ouro Minas

Garimpo ilegal movimenta anualmente entre R$ 4,5 a R$ 5 bilhões

Uma das operações da FTA mais recentes, a Dilema de Midas, atingiu em cheio a Ouro Minas DTVM, uma das maiores empresas filiadas à Anoro, que teve parte de seus ativos em ouro e bens sequestrados pela Justiça Federal, em julho do ano passado, em São Paulo. A PF identificou a compra de 611 quilos de ouro retirado ilegalmente de uma área intangível, numa floresta em Óbidos, próxima à Terra Indígena Z’oé, região de Santarém, no Pará. A empresa aparece em outras duas operações da FTA, a Warari-Koxi, em Roraima e a Minamata, no Amapá.

O valor total do ouro comercializado pela empresa à época da operação foi calculado em cerca de R$ 70 milhões, mas o prejuízo causado pela destruição da floresta, segundo estudo de impacto encomendado pelo MPF, foi de R$ 1 bilhão quando contabilizado tudo o que foi perdido com a supressão da floresta, da madeira aos custos sociais e de saúde.

A Justiça bloqueou bens da R.N. Participações, nome comercial do posto da Ouro Minas, e de seu proprietário, Raimundo Nonato da Silva, de um geólogo, Gerson Pereira de Oliveira, acusado de falsificar contratos de parceria para atuar como procurador na lavagem do ouro ilegal, e de três funcionários da empresa em Santarém, totalizando a cifra de R$ 70 milhões bloqueados. A compra era respaldada por falsas declarações de origem ou amparadas em PLGs regulares, mas em nome de outros garimpeiros, usadas para “esquentar” as operações fraudulentas. Segundo a FTA, a empresa tinha os números de PLGs armazenados em seu banco de dados. O vendedor fornecia apenas o CPF e RG e os funcionários preenchiam a nota fiscal como se o ouro fosse originário de Itaituba, a quase 600 quilômetros do garimpo ilegal em que o minério era extraído.

“Tendo uma PLG com lavra autorizada, o sujeito pode comprar ouro ilegal com dinheiro sujo e declarar como oriundo daquela área. A PLG é a melhor forma de “lavar”. Basta vender numa compradora autorizada, com titularidade correta, e o dinheiro está limpo, mesmo que o ouro tenha saído de um garimpo sujo. Essa mecânica serve para qualquer atividade ilegal”, explica o perito da PF Gustavo Geiser, que trabalha em Santarém. Ou seja, o garimpo “lava mais limpo” qualquer dinheiro, inclusive de tráfico de drogas e corrupção.

Como a DTVM mantém um contrato particular de remuneração pelos serviços, onde o dono do Posto de Compra de Ouro (PCO) exerce o papel de mandatário da instituição, papel semelhante a uma franquia, o MPF conseguiu apenas o bloqueio dos bens ao enquadrá-la como beneficiária das transações ilegais. Mas não denunciou seus dirigentes, embora todas as notas fiscais de compra tenham sido emitidas com o CNPJ da Ouro Minas DTVM.

Na denúncia, os procuradores comparam os compradores do ouro a receptadores de bens ou produtos de origem criminosa, como ocorre, por exemplo, com os donos de oficinas de desmanche que absorvem carros roubados. A diferença é que o valor do ouro é infinitamente superior aos produtos normalmente enquadrados no crime de receptação.

Procurado pela Pública, o principal acionista da Ouro Minas, Juarez de Oliveira e Silva Filho, que foi garimpeiro e é empresário de mineração, não quis dar entrevista. A assessoria de imprensa da empresa disse, em nota, que o sequestro de valores é resultado de “um grande conflito de leis e normas que traz insegurança jurídica para o setor mineral” e que o próprio governo trabalha para ajustar a legislação. A empresa afirma que o ouro apreendido está coberto de nota fiscal e informações prestadas ao PCO pelo vendedor. A assessoria diz que a empresa passa por frequentes fiscalizações e que nenhum de seus sócios sofreu condenação judicial.

O caso do PCO da Ouro Minas demonstrou que a própria lei facilita a lavagem ao permitir que as informações sobre origem do minério sejam tratadas sem nenhum documento de comprovação, entre o garimpeiro e PCO, eximindo as DTVMs de responsabilidade. Segundo a investigação, os dados falsos eram inseridos em notas fiscais, com cópias em carbono, e não ficam armazenados em banco de dados eletrônico. Trata-se de um procedimento arcaico comum nas transações, só usado, por óbvia conveniência, na compra de ouro de garimpo.

“Depois que a nota fiscal é emitida no posto de compra, não há mais como rastrear o ouro”, explica a procuradora Ana Carolina Bragança, que coordena um demorado processo de responsabilização das instituições financeiras, da União, ANM e do Banco Central, que têm a obrigação legal de fiscalizar as operações, mas cruzam os braços, facilitando a ilegalidade.

“Beneficiária de danos ambientais”

O MPF impetrou uma Ação Civil Pública na Justiça Federal de Santarém na tentativa de forçar o governo e seus órgãos, que não conversam entre si nem compartilham informações de banco de dados, a cumprir o que na lei é definido como “obrigação de fazer”. O texto da ação, ao qual a Pública teve acesso, assinado pela coordenadora da FTA e outros quatro procuradores, é bem explícito sobre a generalizada omissão:

Levantamento da Pública mostra que em apenas sete operações deflagradas nos últimos três anos mostra que foram movimentados cerca de R$ 650 milhões em ouro de origem suspeita

“Ao adquirir ouro de origem ilícita, as rés R.N. DA SILVA REPRESENTAÇÕES e OM DISTRIBUIDORA DE TÍTULOS E VALORES MOBILIÁRIOS LTDA. colocaram-se na condição de agente econômica beneficiária dos danos ambientais causados pela lavra do minério que consumiu e internalizou na economia nacional. Mais do que isso: as empresas financiaram a persistência desses danos ambientais, fortalecendo o mercado para o produto ilegal. Os réus UNIÃO, ANM e BANCO CENTRAL DO BRASIL, por sua vez, omitiram-se no seu dever de fiscalizar”, escrevem os procuradores. Eles ressaltam que a praxe se consolidou na relação entre a economia formal e os garimpos permitidos ou ilegais. No total, esse segmento movimentou cerca de R$ 10 bilhões por ano na Amazônia.

A exploração de garimpos na Amazônia envolve atualmente cerca de 160 mil trabalhadores, número que pode ser multiplicado por quatro quando incorporados mascates, pilotos, cozinheiros, vendedores de combustível, fornecedores de insumos e prestadores de serviços em geral. Boa parte desse universo vive da exploração do subsolo de regiões onde a mineração é proibida, impondo custos sociais e de saúde às populações indígenas e ribeirinhas e ao meio ambiente.

Para o MPF, os interesses em jogo passam à margem dos discursos oficiais e privados sobre solução de problemas sociais com a legalização da atividade garimpeira. “Tem de tirar da cabeça a imagem do garimpeiro com picareta e bateia, que não existe mais. O que tem agora é o garimpeiro empresário, que tem uma draga, uma balsa, pá-carregadeira ou uma retroescavadeira hidráulica”, diz a coordenadora da FTA. Segundo ela, a atividade exige investimentos que variam de R$ 60 mil a R$ 2 milhões, algo que só o detentor de atividade econômica organizada consegue bancar.

A procuradora Ana Carolina Bragança diz que o ideal é que a ANM fiscalize a devida aplicação dos limites das concessões de lavra garimpeira e que o Banco Central mude as regras sobre o comércio, permitindo que o ouro seja tratado como ativo financeiro, e não como mercadoria de consumo, modalidade que impede os controles, permite sonegação e alimenta a clandestinidade.

“O ouro é um metal estratégico para as reservas do país e na regulação do mercado financeiro. É importante demais para que o garimpeiro defina se entra como ativo financeiro ou mercadoria. É necessário garantir que tenha origem lícita e não de áreas protegidas degradadas pela mineração, senão vamos continuar enxugando gelo, fazendo operações para sempre”, alerta Ana Carolina.

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.

Atualização (24/06/2020 às 17h00): Incluímos a resposta de Frederico Sobrinho, presidente da Anoro, à reportagem.

Romério Cunha/VPR
Ascom/Semas
Ascom/Semas

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