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Infectados com Covid-19 pioraram por conta da densa fumaça que invadiu o estado que mais sofreu com queimadas em 2020 em toda a Amazônia Legal

Reportagem
27 de janeiro de 2021
14:18
Este artigo tem mais de 3 ano

Raimundo Lopes, morador do seringal Catuaba, na zona rural de Rio Branco, se recusou a fazer teste para identificar se estava infectado com Covid-19 quando começou a sentir os primeiros sintomas da doença, que se assemelhavam aos de um resfriado. Quando uma tosse seca o afligiu, ele seguiu batendo o pé, argumentando que deveria ser apenas uma reação à fumaça que inundou todo o município da capital do Acre entre julho e setembro do ano passado. 

Motorista de carros da prefeitura de Rio Branco, aos 77 anos, Lopes seguiu trabalhando e aspirando fumaça até sua esposa, Francisca Holanda, de 76 anos, insistir na visita ao hospital. Ele foi internado no dia 18 de setembro no Hospital de Urgência e Emergência de Rio Branco (Huerb), onde ficou por uma semana. “Ele já tem vários problemas de saúde e não se cuida, aí toda a família ficou muito preocupada”, relatou à reportagem a neta de Raimundo, Isabele Cristina Bezerra dos Santos. 

Mesmo aos 17 anos, Isabele conta que também sofreu com as queimadas históricas de 2020. Foram 265 mil hectares de áreas queimadas entre janeiro e a primeira semana de novembro no estado amazônico, 39,13% a mais do que no mesmo período de 2019 – marca que supera o recorde de fogo visto pelo estado no século 21. Na capital do estado, as imagens da fumaça bloqueando completamente a luz solar na cidade viralizaram nas redes sociais. 

Não à toa, o Acre foi o estado que mais sofreu com queimadas em 2020 em toda a Amazônia Legal. Comparativamente à área, é também o local com mais focos de incêndio no ano passado no bioma da Amazônia, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). 

“Estamos um pouco acostumados e todos os anos nos preparamos para a fumaça, mas esse ano [2020] foi histórico. Em alguns dias nem víamos o sol nascer, sabíamos que estava de dia, mas não conseguíamos ver nada por conta da cortina de fumaça fechada. Aqui já tem um clima bem quente e úmido, então era bem difícil de respirar e, por um dos principais sintomas da Covid-19 ser tosse, a gente ficou assustado”, disse a jovem. 

O médico cardiologista Odilson Silvestre, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac), revelou que durante o pico da primeira onda da pandemia, ocorrido entre maio e junho, os profissionais da saúde se preocupavam com o impacto que as queimadas, que se intensificam anualmente entre julho e outubro, teriam na saúde da população. “A gente tinha muito medo que com a queima de biomassa morressem mais pessoas”, diz. No entanto, o controle da doença no estado permitiu que a sobreposição dos fatores Covid-19 e fumaça não ocorresse ao mesmo tempo.

“Se no momento de pico tivéssemos uma qualidade de ar ruim, talvez tivéssemos uma catástrofe”, opina. “O que sabemos da literatura em relação à poluição e Covid-19 é que tanto na Ásia quanto nos EUA acharam uma relação entre a concentração de material particulado e a gravidade da Covid-19. Nos locais mais poluídos dos EUA a mortalidade foi 11% maior. Isso faz muito sentido porque qualquer doença respiratória e cardíaca piora com a poluição, o material particulado inflama o pulmão”, explica. 

Todos os municípios do Acre tiveram concentração de material particulado fruto de queima de biomassa maior do que o considerado aceitável pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no ano passado. O órgão considera que o pico anual de microgramas de partículas por metro quadrado deve ser abaixo de 25 µgm3 para que ninguém tenha a saúde afetada. 

A Agência Pública apurou que todos os municípios do estado amazônico excederam o pico anual de 25 µg/m3 por dezenas de dias consecutivos. Rio Branco e Brasileia – também um dos dez municípios de toda a Amazônia Legal com mais focos de incêndio – foram os que apresentaram piores indicadores, ambos tendo ultrapassado o limite de 25 por mais de cem dias. Em Rio Branco, o dia com maior concentração de fumaça foi 27 de agosto, com 115,81 µg/m3

De acordo com a OMS, ao ser exposta a essa concentração de fumaça por 24 horas, toda a população pode começar a ter efeitos na saúde e membros de grupos sensíveis podem experimentar efeitos mais graves, como doenças pulmonares obstrutivas crônicas e infecções respiratórias como pneumonia. 

A OMS estipula que a média anual de concentração de fumaça deve ser abaixo de 10 µg/m3. Apenas o município de Feijó se enquadra na média considerada satisfatória pelo órgão, tendo tido uma média de 8,09 µg/m3 nos últimos 365 dias. A cidade de Senador Guiomard, a cerca de 30 km da capital do Acre, teve uma média de 24,44 µg/m3 no ano passado. Já a média anual em Rio Branco foi o dobro do considerado saudável pelo órgão: 20,46 µg/m3.

Todos os municípios do Acre tiveram concentração de material particulado maior do que o considerado aceitável pela OMS em 2020

20% dos casos de doença pulmonar crônica são causados pela poluição 

Os dados foram levantados com base em 19 medidores de qualidade do ar comprados pelo governo do estado a pedido do Ministério Público do Acre, em 2019. A ferramenta específica que joga as informações para um site internacional de medição de fumaça ainda é rara no Brasil: poucos municípios brasileiros estão ligados à rede, o que dificulta a comparação com o restante da Amazônia e do país. 

Foster Brown, cientista ambiental estadunidense e pesquisador associado ao Centro de Pesquisa Climática Woodwell, vive há 28 anos em Rio Branco pesquisando mudanças climáticas na Amazônia. Ele lamenta a dificuldade de trabalhar com dados na região. “A ausência de evidências não é evidência de ausências. Grande parte da Amazônia sofre por não ter medidores, e uma coisa é dizer que a fumaça está dando dor de cabeça à população ou atrapalhando a respiração, mas outra coisa é ter valores provando que a concentração de partículas está muitas vezes maior do que o permitido pela OMS”, afirma. 

Segundo o pesquisador, o principal efeito agudo da exposição contínua à fumaça de queima de biomassa é a dificuldade de respirar, principalmente para quem tem asma, que também se configura uma comorbidade da Covid-19. “Mas é mais difícil mensurar manifestações de problemas cardíacos a longo prazo, crônicos. A fumaça que impacta os pulmões também passa para a circulação do sangue, então há alguns impactos para a saúde humana, até mesmo desenvolvimento de câncer, que só conseguiríamos medir com um bom estudo epidemiológico e dados.” 

O médico Odilson Silvestre diz que cerca de 20% dos casos de doença pulmonar crônica são causados pela poluição. “O consumo de cigarro, que é uma poluição causada pelo próprio indivíduo, tem diminuído por aqui, mas a poluição de queima de biomassa é algo que você não escolhe. A população está ali vivendo, não enxerga aquilo, mas está lá, causando doenças crônicas”, diz. 

De acordo com Silvestre, que é mestre em saúde pública pela Universidade Harvard, seus pacientes idosos portadores de doenças cardíacas crônicas, outra comorbidade para a Covid-19, se sentem mais cansados durante as temporadas de fumaça. Ele revela que uma preocupação que deve se manter é com os pacientes que desenvolveram sequelas pós-coronavírus. “Agora são portadoras de uma doença respiratória crônica, e a poluição é um fator precipitante de sintomas”, explica. 

Médico Odilson Silvestre: “A população não enxerga, mas está lá, causando doenças crônicas”

Como no caso do motorista Raimundo Lopes, Silvestre relata que alguns pacientes chegaram a confundir os sintomas, acreditando estar com Covid-19. A confusão não se deu apenas em idosos. O estudante de ensino médio Gabriel Guedes Araújo, morador de Rio Branco, chegou a ser mandado para casa pelo médico quando foi se consultar acreditando estar infectado com o novo coronavírus. 

“O meu único sintoma foi uma tosse seca bem forte, então o médico nem pediu exame, nem nada, disse que era só por conta da fumaça, que eu não deveria me preocupar. Foi no período em que estava tendo muitas queimadas, a fumaça era visível aqui na cidade. Ele nem pediu exame, só pediu para eu ficar de repouso para ver se passava”, lembra o estudante. 

Quando Gabriel voltou para casa, o pai insistiu que ele fizesse o exame que identifica o coronavírus. O exame deu positivo. Depois, Gabriel teve febre e cansaço, mas os sintomas melhoraram após duas semanas.

Um caso semelhante ocorreu com o estudante de engenharia florestal Tiago Felipe da Silva, que também foi acometido de uma forte tosse em meados de setembro. Os médicos que atenderam o jovem no posto de saúde chegaram a debater se deveriam fazer um teste e perguntar se onde ele vivia estava com muita fumaça. “Eles disseram que algumas pessoas estavam tendo sintomas terríveis com a junção da fumaça e da Covid-19”, conta. 

Tiago também positivou para o coronavírus. “Acabei ficando em dúvida se era por conta das queimadas ou da Covid-19. Nos outros anos eu não costumava ter tosse ou problema respiratório com a fumaça”, completa. 

2020: de janeiro a novembro mais de 265 mil hectares foram queimados no Acre

A engenheira agrônoma Sonaira Silva, professora da Ufac e coordenadora do projeto Acre Queimadas, destaca que, desde 2004, o impacto da fumaça na saúde da população do Acre é objeto de pesquisas científicas. “Artigos mostram como essa questão já era uma constante. Há estimativas inclusive de mortalidade precoce devido à fumaça, então já era uma preocupação antes da Covid-19”, diz. 

Segundo ela, os números dos focos de queimada têm aumentado principalmente com a expansão de novas fronteiras agrícolas no estado amazônico. “Há uma expansão muito forte ao longo da BR-364. Podemos dizer que a produção agrícola explodiu nos últimos anos.” 

Essa produção, ela diz, aumentou o desmatamento no Acre. “Cerca de 60% das queimadas que temos no Acre são oriundas do desmatamento e quase metade das queimadas vem da rematação de áreas já degradadas por pastagem ou agricultura.” 

Entre os dez municípios de toda a Amazônia Legal com focos de incêndio, quatro estão no Acre: Brasileia, Epitaciolândia, Xapuri e Capixaba. Juntos, eles tiveram mais de 1.800 focos de queimadas em 2020.

Colaboraram Rafael Oliveira, Bianca Muniz e Bruno Fonseca.

Reportagem realizada com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center.

Acesse aqui a metodologia de dados da reportagem.

Foto: UFAC - Arte: Bruno Fonseca e Larissa Fernandes/Agência Pública
Foto: Odair Leal/Amazônia Real - Arte: Bruno Fonseca e Larissa Fernandes/Agência Pública

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