“Há possibilidade iminente de colapso do sistema de saúde, em 10 dias”, afirma um documento do ministro Eduardo Pazuello sobre o sistema de saúde de Manaus. O diagnóstico foi a principal conclusão de uma comitiva do Ministério da Saúde que visitou a capital do Amazonas mais de uma semana antes do colapso no sistema de saúde local. Exatos 10 dias depois, hospitais de Manaus esgotaram suas reservas de oxigênio com pacientes morrendo por asfixia.
Além de prever com exatidão a data do colapso no sistema de saúde, o Ministério da Saúde diagnosticou com 10 dias de antecedência dificuldades na compra de materiais para consumo hospitalar, como medicamentos e equipamentos, problemas na contratação de profissionais de saúde habilitados para trabalhar nas UTIs e a necessidade de estruturar novos leitos rapidamente para os pacientes que já precisavam de internação no início de janeiro.
O governo também já sabia da possibilidade de transferência de pacientes para hospitais universitários federais de todo o Brasil e para a rede de saúde no Rio de Janeiro.
As informações estão em documentos produzidos pelo próprio Ministério da Saúde e foram enviadas pela Advocacia Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal no último domingo, dia 17.
A Agência Pública questionou o Ministério da Saúde sobre o tempo para início das ações, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem. A reportagem também questionou a secretaria Estadual de Saúde do Amazonas sobre comunicados e pedidos de auxílio ao Ministério da Saúde para fornecimento de oxigênio e atendimento a pacientes, que ainda não foi respondido.
O passo a passo de uma crise anunciada
Nas semanas finais de 2020, o Ministério da Saúde emitiu um alerta: o governo observou um aumento de casos em Manaus na semana do Natal, e um segundo aumento, ainda mais significativo, a partir de 27 de dezembro — nessa data, vendedores do gás em Manaus já apontavam aumento da procura, como a Pública revelou. Segundo dados do próprio Ministério, o número de internações dobrou em uma semana, saindo de 36 casos, em 20 de dezembro, para 88 casos, em 27 de dezembro.
Devido à situação em Manaus, no dia 28 de dezembro, em Brasília, o ministro Eduardo Pazuello se reuniu com o secretariado e principais assessores do Ministério da Saúde. Segundo o próprio ministério, foi a partir dessa reunião que o governo decidiu enviar um grupo técnico da pasta para o Amazonas, para “avaliar a situação”, diz o governo. O governo ainda optou por atrasar a viagem em alguns dias, para depois do ano novo, “em virtude do início de mandato de gestores municipais e de possíveis trocas de secretariado”, registra o documento.
Era 3 de janeiro de 2021 quando a comitiva do Ministério da Saúde chegou a Manaus. O grupo, chefiado pela Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, contou com mais dois diretores e cinco técnicos do Ministério da Saúde. Na semana, o número de hospitalizações havia dobrado novamente: 159 internações.
No dia seguinte, 4 de janeiro, o governo reconheceu: “há possibilidade iminente de colapso do sistema de saúde, em 10 dias”, relata documento que leva o nome de Eduardo Pazuello, produzido pelo próprio Ministério da Saúde. O governo ainda previu um “substancial aumento de casos” e “aumento da pressão sobre o sistema” entre o período de 11 a 15 de janeiro. A pasta também adiantou a possibilidade de “evacuação de doentes”, com apoio de hospitais universitários federais da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e dos hospitais federais do Rio de Janeiro.
A conclusão foi possível após reunião da comitiva do Ministério da Saúde com o Governador do Estado do Amazonas, Wilson Miranda Lima, o Prefeito da Cidade de Manaus, Davi Almeida, o Secretário Estadual de Saúde, Marcellus José Barroso Campêlo, a Secretária Municipal de Saúde de Manaus, Shádia Hussami Hauache Fraxe e outras pessoas ligadas à área da saúde.
Na reunião, o Ministério da Saúde, além de prever o colapso do sistema de Manaus, diagnosticou a falta de profissionais para funcionamento de novos leitos, dificuldade na compra de materiais de consumo hospitalar e equipamentos, problemas para contratar equipes para atuar em UTIs e necessidade de abrir mais vagas em tratamento intensivo. Na data da reunião, a ocupação dos leitos de UTI na capital estava em 89,1%.
Na mesma data, a comitiva diagnosticou que o Hospital e Pronto Socorro 28 de Agosto estava com quadro de superlotação, profissionais de saúde exauridos e desorganizados no atendimento dos pacientes e EPI dos profissionais de saúde inadequados. A visita ainda encontrou falta de insumos para atendimento dos pacientes nas unidades de saúde na capital.
Layla Mariana Santos Batista, 27 anos, com dois tios internados com Covid-19 em Manaus conta que o primeiro hospital que procurou disse “eu não posso atender a sua tia”, era o hospital 28 de Agosto. “Eu clamei, implorei, mas disseram que não podia atender porque não tinha mais onde colocar ninguém dentro do hospital”. Segundo ela, a tia Maria Madalena Santos de Araújo, 43 anos, só conseguiu vaga no pronto socorro João Lúcio, que é referência da Zona Leste de Manaus. “Lembro de uma outra moça chegar num carro gritando que o pai dela estava morrendo, o atendente falou: ‘não temos cadeira, traz ele no colo’. Eles levaram ele como se fosse um pedaço de carne, sabe? Nas costas”, relembra.
Governo enviou Pazuello após prever colapso e soube da falta de oxigênio
Em resposta ao diagnóstico de um colapso próximo no sistema de saúde de Manaus, o governo decidiu enviar o ministro da Saúde à cidade entre os dias 10 a 13 de janeiro. Pazuello chegou à cidade dia 11.
No dia 6 de janeiro, o Ministério da Saúde publicou o “Plano Manaus”, com decisões para o Governo Federal e também orientações às administrações estaduais e municipais para lidar com o colapso iminente.
Enquanto Pazuello foi a Manaus, o Ministério da Saúde ordenou que a Secretaria Executiva do Ministério realizasse a “aquisições e distribuição de insumos” para a cidade, além da contratação de profissionais de maneira célere”.
Os documentos elaborados pelo Ministério da Saúde deixam claro: desde a visita da comitiva, orientou-se a atuação conjunta do Governo Federal junto ao Governo do Amazonas para tratar da crise de saúde. Foi ordenado inclusive contato com o Ministério da Defesa, “alertando para o possível agravamento do quadro e solicitando que meios sejam colocados em alerta”.
O plano do governo incluiu diversas outras secretarias, como a Secretaria de Vigilância em Saúde, para analisar a cepa do vírus circulante em Manaus e avaliar a possibilidade de que ela seja mais grave ou contagiosa.
A atuação do Ministério da Saúde, contudo, ocorreu tarde demais para Manaus. Em documento do dia 17 de janeiro, o governo reconhece que “os casos de hospitalização seguiram subindo” nos dias seguintes à execução do “Plano Manaus”. Segundo documento que também leva o nome de Pazuello, “a rede hospitalar passou a operar no limite de sua capacidade”.
Nesse documento, o governo admite que “foi detectado, ainda, logo no início do período, a gravíssima situação dos estoques de oxigênio hospitalar em Manaus, em quantidade absolutamente insuficiente para o atendimento da demanda crescente”. Segundo a pasta, no dia 8 de janeiro, o governo foi comunicado pela empresa responsável pelo abastecimento da rede hospitalar da cidade, como revelou reportagem da Folha de S. Paulo. “Tal problema chegou ao conhecimento do Ministério no dia 8 de janeiro, por meio de um e-mail enviado por Petrônio Bastos, da White Martins”. A mensagem explica “o possível desabastecimento e indicando, ao Estado, buscar outras fontes para o produto”.
No e-mail, enviado pelo Gerente Executivo Unidade de Negócios da White Martins, Petrônio Bastos, a empresa pede que a Secretaria de Saúde compre volumes adicionais de oxigênio de outros fornecedores. A Pública perguntou à empresa sobre o comunicado e respostas do governo, mas não obteve resposta.
Diante do comunicado, o próprio ministro da Saúde teria visitado “instalações ligadas ao armazenamento e manejo de oxigênio hospitalar”. O documento também descreve que Pazuello visitou as “instalações da White Martins em Manaus” e realizou “reconhecimento, na mesma empresa, das obras onde será instalada uma nova planta”.
Transferência de pacientes prevista no início de janeiro ocorreu após colapso
No dia 10 de janeiro, ainda antes do colapso da saúde em Manaus, o Ministério da Saúde recebeu uma proposta de enfrentamento à pandemia realizada pelos médicos Paulo Porto e Roberto Zeballos que reforçaram a iminência do colapso da estrutura de saúde da cidade.
Ainda segundo o governo, no dia 10 já se discutia a “avaliação da implementação de lockdown” no Amazonas com o governo Estadual. Apenas no dia 14, o governador publicou decreto que proíbe a circulação de pessoas entre 19h e 6h em Manaus.
De acordo com o Ministério da Saúde, as entregas de oxigênio pela pasta começaram no dia 12, com cilindros de oxigênio gasoso comprados da White Martins e enviados desde Guarulhos. A FAB afirma ter enviado cilindros desde o dia 8 de janeiro.
No dia 14, o Ministério da Saúde enviou 120 mil unidades de hidroxicloroquina e 250 mil de oseltamivir. Segundo a pasta, no dia 15 de janeiro, quando o sistema hospitalar já havia colapsado, houve distribuição de equipamentos para a Secretaria de Saúde do Amazonas. De acordo com o governo, foram entregues 78 ventiladores pulmonares para UTIs, 40 para transporte de pacientes, 2,1 mil óculos e protetores faciais e 94,6 mil máscaras cirúrgicas.
A remoção de pacientes, prevista desde a visita da comitiva no dia 4 de janeiro, começou a ser acertada no dia 14, segundo histórico apresentado pelo Ministério da Saúde.