“Não é justo, hoje, querer criminalizar o garimpeiro no Brasil. Não é porque meu pai garimpou por um tempo. Nada a ver”, disse o presidente Jair Bolsonaro em 14 de maio deste ano. Dias antes, em 10 de maio, a comunidade Palimiu, na Terra Indígena (TI) Yanomami, foi atacada por garimpeiros. No mesmo dia, a capa da Folha de S.Paulo reportava outra urgência no território: a desnutrição infantil. O jornal estampou a imagem de uma criança indígena de 8 anos, da comunidade Maimasi, na região da Missão Catrimani. Deitada em uma rede, a criança tinha as costelas aparentes, o que revelava um grave quadro de desnutrição.
Segundo o missionário que divulgou a imagem, havia seis meses que a aldeia não era visitada por equipes de saúde. Dias depois, em 22 de maio, quando vários outros ataques de garimpeiros à Palimiu já tinham ocorrido, o povo Yanomami novamente ganhou as manchetes: uma criança de 1 ano e apenas 3 kg, da comunidade Yaritha, na região de Homoxi, morrera com quadro grave de desnutrição. A remoção aérea da criança para a capital Boa Vista (RR), solicitada na tarde do dia 20, não foi feita a tempo.
A tragédia ocorrida em Homoxi não é um fato isolado: em 2019 e 2020, nos dois primeiros anos do governo de Bolsonaro, pelo menos 24 crianças Yanomami com menos de 5 anos morreram por desnutrição, de acordo com dados obtidos pela Agência Pública na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Os números podem ser ainda maiores, já que não há cobertura integral de saúde no território e existe a presença de povos isolados no território Yanomami. Os óbitos ocorreram em 15 dos 37 polos-base do Distrito de Saúde Especial Indígena (Dsei) Yanomami, sendo 11 deles localizados em Roraima e os demais no Amazonas.
O número é ainda mais gritante quando se olha proporcionalmente. Entre 2019 e 2020, 352 crianças brasileiras menores de 5 anos morreram tendo como causa principal a desnutrição, segundo dados disponíveis no DataSUS. Isso significa que aproximadamente 7% dos óbitos com esses critérios no país ocorreram no território Yanomami, que possui apenas 0,013% da população do país – uma sobrerrepresentação de 557 vezes. Tanto os dados da Sesai quanto os do DataSUS ainda são preliminares e podem mudar em atualizações futuras.
Em 2019, 4,13% dos quase 5 milhões de crianças menores de 5 anos no Brasil tinham um quadro de desnutrição aguda (baixo ou baixíssimo peso para a idade), segundo dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde. No mesmo ano, de acordo com informações fornecidas pela Sesai via LAI, 54,32% das 5.260 crianças Yanomami acompanhadas tinham quadro de desnutrição. Em 18 dos 37 Polos Base do Dsei Yanomami, a porcentagem era superior a 50%, chegando a 79,34% em Arathaú, na região do Parima.
Segundo as fontes consultadas pela reportagem, o principal fator que explica o quadro é a ausência estatal na TI Yanomami. “A sociedade tem que entender que essas crianças são doentes porque não há uma atenção à saúde para as comunidades. É um descaso com a saúde, é muito precária”, afirma Júnior Hekurari, presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana (Condisi-YY) e responsável por trazer a público o caso da criança morta por desnutrição em Homoxi.
“A situação de vulnerabilidade que os Yanomami vivem é em decorrência da ausência do Estado. Eles costumam dizer que não são vulneráveis, eles falam que foram colocados numa situação de vulnerabilidade pelo Estado”, diz o médico e pesquisador Paulo Basta. Ele é um dos responsáveis por um estudo sobre desnutrição infantil entre os Yanomami, feito pela Unicef com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e órgãos governamentais, em 2019. Com foco nos polos-base de Auaris e de Maturacá, os pesquisadores chegaram a um número de 81,2% de crianças com desnutrição crônica e 48,5% com desnutrição aguda nas duas regiões.
De acordo com Basta, a desnutrição infantil entre os Yanomami é especialmente acentuada na faixa etária entre 1 e 5 anos de idade. Em muitos casos, as crianças enfrentam quadros de diarreia ou de outras doenças, como a malária, e não conseguem mais recuperar o peso. “Esse fenômeno ocorre exatamente quando a criança desmama. Quando nasce, ela está com alimento garantido, tem leite materno, está sendo acolhida, tem todos os nutrientes necessários para crescer. Quando ela desmama, começa a engatinhar, pega um chão que não tem saneamento, não tem água potável para beber, não tem água para lavar as mãos, tem uma escassez de alimentos tradicionais no território”, explica.
À ausência do Estado, se soma a crescente presença de garimpeiros ilegais no território Yanomami – periodicamente incentivados pelo presidente da República. “O garimpo é a origem de todas as mazelas ali. Em Roraima, pelo menos. Se você tira o garimpo ali, olha, a saúde, não vou dizer que seria maravilhosa, mas evoluiria muito”, afirma o procurador Alisson Marugal, do Ministério Público Federal em Roraima (MPF-RR). Ele é autor de uma ação judicial, movida em março deste ano, que pedia o restabelecimento do fornecimento de alimentação nas Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSIs) da TI Yanomami.
Visitas não ocorrem com regularidade
Das cerca de 371 aldeias existentes na TI Yanomami, somente 78 têm uma UBSI – que, via de regra, não tem estrutura médico-hospitalar adequada. “É uma mesinha, o médico com um estetoscópio, uma caneta e um armário de medicamentos”, afirma Paulo Basta. Como o acesso à maioria das UBSIs não é possível por via terrestre, não é raro que os postos de saúde fiquem desguarnecidos. “Nós tivemos um período em que o Dsei Yanomami ficou sem transporte aéreo, precisou de um helicóptero vir do Rio de Janeiro. Isso significa que a equipe de saúde não vai pro posto de saúde e as remoções [de pacientes graves] deixam de ser feitas”, relata o procurador do MPF-RR Alisson Marugal.
Mesmo quando há disponibilidade de transporte, algumas equipes acabam deixando de se deslocar para o posto por conta da presença hostil de garimpeiros – o que ocorreu em Palimiu, após a série de ataques que se sucederam em maio na região.
Nos locais onde não há UBSIs – cerca de 79% das comunidades –, o atendimento dos pacientes depende majoritariamente de visitas das equipes de saúde. Segundo o missionário Carlo Zacquini, houve redução do tamanho das equipes pela Sesai, o que impactou o atendimento. “[Há] falta de equipes para visitar as aldeias; quando visitam, não ficam o tempo necessário para fazer os tratamentos ou não têm os remédios suficientes para usar. Isso acaba contribuindo para essa situação de desnutrição, de verminoses agudas”, explica.
Dados obtidos pela Pública, também por meio da LAI, confirmam esse cenário: somente 71 das cerca de 371 aldeias Yanomami receberam alguma visita de nutricionista entre 2019 e 2020, o que representa menos de 20% do total. Essas visitas se concentraram em apenas 11 dos 37 polos-base (29%), e, dos dez polos- base com maior porcentagem de crianças com déficit de peso em 2019, oito não receberam nenhuma visita. Além disso, entre os 15 polos-base que registraram alguma morte por desnutrição infantil entre 2019 e 2020, nove não receberam nenhuma visita.
Para Júnior Hekurari, do Condisi-YY, é necessário que o Dsei Yanomami planeje uma melhor distribuição dos funcionários entre os polos-base. “Eles estão mandando funcionários onde tem 2, 3, 4 mil Yanomami. São três pessoas para atender 4 mil. Não tem como o funcionário fazer visita, porque 24 horas tem paciente. Ele não pode deixar o polo-base para visitar uma comunidade de três dias, dois dias andando”, diz.
Na visão do procurador Alisson Marugal, o cenário também reflete o fracasso da política educacional entre os Yanomami, que acaba por afetar a segurança alimentar, especialmente na primeira infância. “A gente precisa desenvolver a educação entre os Yanomami, com foco na alimentação escolar, que vai ser uma forma de formar lideranças indígenas politicamente conscientes de seus direitos territoriais, de formar agentes de saúde”, afirma.
Mais de um ano sem alimentação nos postos
O território dos Yanomami e Yek’wana ocupa cerca de 96.650 km² nos estados de Roraima e Amazonas, uma área um pouco maior do que a de Portugal e um pouco menor do que a do estado de Pernambuco. Principalmente na parte de Roraima, o acesso a algumas aldeias só é possível por meio de transporte aéreo, geralmente feito por aviões de pequeno porte. Em outras, é necessário fazer o trajeto por barco.
Para boa parte dos Yanomami, receber atendimento em uma das 78 UBSIs significa uma caminhada de horas, às vezes até de dias. Por razões culturais, é comum que os pais viajem com a família inteira até o posto de saúde em busca de tratamento para malária, desnutrição ou outras doenças. Muitas vezes, chegam com fome, já que precisam abdicar da caça e da coleta de alimentos durante o trajeto. Além disso, em boa parte dos casos, é necessário que o doente permaneça no posto de saúde durante o tratamento.
Até 2019, considerando as particularidades da TI Yanomami, o Dsei local realizava licitações anuais e fornecia alimentação para crianças e adultos com déficit nutricional e para pacientes que precisassem permanecer nas UBSIs para tratamento. Com a centralização das licitações na Sesai em Brasília, porém, o cenário mudou. De acordo com a argumentação do órgão, feita com base em interpretação de uma portaria interna de 2017, os Dsei só teriam a obrigação de fornecer alimentação nas Casas de Saúde Indígena (Casai), onde são acolhidos indígenas que precisam fazer tratamentos mais complexos na cidade. No caso do Dsei Yanomami, a Casai está localizada em Boa Vista.
Com a suspensão do fornecimento de gêneros alimentícios, muitos indígenas deixaram de buscar tratamento e os postos de saúde Yanomami passaram a depender de doações de organizações como a Cruz Vermelha e o Instituto Socioambiental (ISA), além da Fundação Nacional do Índio (Funai). Durante esse período, foi aberto um financiamento coletivo pela plataforma Voaa, ligada ao site “Razões Para Acreditar”. Com apoio do Condisi-YY, a “vaquinha” arrecadou mais de R$ 288 mil, que serão utilizados na compra de 200 cestas básicas e de ferramentas.
“Se uma criança estiver doente, [o pai] não vai primeiro buscar a alimentação, vai tentar salvar a sua criança, então o postinho tem que ter alimentação”, explica Júnior Hekurari. “Dependendo da situação, se é pneumonia, se é malária, se é outra doença, o médico interna. Se não tiver alimentação, não tem como. A mãe não vai saber dar remédio no horário certo se mandar pra comunidade. A maioria dos Yanomami não sabe ler. E são vários tipos de medicamentos ao mesmo tempo para tomar”, diz.
Ainda em 2020, o procurador Alisson Marugal apresentou recomendação demandando que a Sesai voltasse a fornecer alimentação nos postos de saúde do Dsei Yanomami. O órgão, porém, negou o pleito, e Marugal ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) no início de março de 2021, pedindo o restabelecimento.
Em abril, uma semana antes da audiência de conciliação marcada pelo juiz responsável, a Sesai voltou atrás e decidiu abrir uma licitação para a contratação dos gêneros alimentícios. Os contratos foram firmados em junho, totalizando cerca de R$ 713,7 mil. Apesar disso, o fornecimento de alimentação não teria sido restabelecido em todos os postos de saúde Yanomami, segundo Júnior Hekurari. “Eu estava lá em Auaris, onde tinha mais de 50 internações, e estava sem alimentação. Também no Olomai [comunidade localizada no mesmo polo-base], onde tem pessoas desnutridas”, afirma.
O garimpo e a desnutrição
A foto da menina com desnutrição, que estampou a capa da Folha de S.Paulo e trouxe o tema novamente à tona, foi obtida e divulgada pelo missionário católico Carlo Zacquini, um dos fundadores da Comissão Pela Criação do Parque Yanomami (CCPY) – hoje, Comissão Pró-Yanomami. A organização foi uma das impulsionadoras da luta pela demarcação do território, efetivada em 1992.
Desde 1968 na região, Zacquini se tornou testemunha ocular do impacto da presença não indígena no território. Ele viu o primeiro caso de desnutrição grave na década de 1970, durante a construção da rodovia Perimetral Norte (BR-210). A obra rodoviária resultou também na chegada da malária, do sarampo e de outras doenças infectocontagiosas que não existiam no território Yanomami, o que acabou por dizimar parcela significativa de aldeias próximas à estrada. “Eu testemunhei a morte de dezenas e dezenas de indígenas por causa de uma epidemia de sarampo, isso em questão de poucos dias, duas semanas. Encontrei pessoas quase esqueléticas, porque não tinham força nem para caçar, muito menos para trabalhar na roça ou fazer coleta de produtos no mato”, conta o missionário.
Na década de 1980, principalmente a partir de 1987, o território Yanomami passou a ser vastamente invadido por garimpeiros, na primeira grande corrida pelo ouro na região. A Funai, então presidida por Romero Jucá, em vez de retirar os garimpeiros ilegais, expulsou os missionários e as equipes de saúde voluntárias da região. No período de desassistência, entre 20% e 25% dos Yanomami morreram por conta de doenças e ataques de garimpeiros.
A desintrusão “definitiva”, ocorrida em 1992, reduziu a ocorrência de doenças como a malária, mas não cessou a invasão garimpeira. No ano seguinte, um grupo de garimpeiros dizimou todos os habitantes da aldeia de Haximu, na região do Parima. A condenação de cinco dos acusados pelo crime de genocídio foi inédita e segue sendo o único caso do tipo na Justiça brasileira.
A partir do início do governo Bolsonaro, em 2019, a presença garimpeira tornou a crescer exponencialmente na TI. De acordo com o relatório “Cicatrizes da Floresta”, produzido pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume) em parceria com o ISA, as macrorregiões mais afetadas pelo garimpo são atualmente três, todas elas banhadas por rios: a do Uraricoera, que inclui os polos-base de Waikás, Palimiu e Uraricoera; a do rio Parima, onde fica o Polo-Base de Arathaú; e a dos rios Mucajaí e Couto Magalhães, onde estão os polos-base de Kayanau, Maloca Paapiu e Homoxi. Ao menos outros nove polos- base da parte roraimense da TI Yanomami têm áreas degradadas por garimpeiros, que também afetam regiões próximas.
Segundo dados do projeto Amazônia Minada, que monitora requerimentos de mineração em áreas protegidas da região, pouco mais de um terço (34,3%) do território Yanomami está coberto por requerimentos para extração mineral – uma área superior à da Bélgica. “O garimpo quando entra na comunidade, costumo dizer que é só a ponta do iceberg”, afirma o pesquisador da Fiocruz Paulo Basta.
“A primeira providência [do garimpo] é promover uma devastação completa na floresta, derrubar árvores, afugentar todas as espécies nativas, da fauna, da flora, promovendo uma alteração do ecossistema local, o que muda a população de mosquitos, provocando casos de malária. Surtos de malária estão diretamente associadas com o garimpo”, explica. Segundo o pesquisador, que já publicou outros artigos sobre o tema, muitos dos casos de desnutrição infantil na TI Yanomami estão associados a episódios recorrentes de malária entre as crianças, o que gera queda no estado nutricional de difícil reversão.
“Nós estamos sofrendo uma invasão dos garimpeiros na TI Yanomami”, afirma Júnior Hekurari. “Sujando água, levando vários tipos de doenças nas comunidades. Onde não existia a malária, tá existindo, porque através de garimpeiros, de água suja, contaminando, levando essas doenças, a malária chegou. A malária falciparum [forma mais grave da doença], que não existia há dois, três anos atrás”, conta.
A “água suja” que Júnior Hekurari menciona é especialmente contaminada por mercúrio, utilizado na separação do ouro dos demais sedimentos. Um estudo de 2016 revelou que algumas aldeias chegavam a ter 92% de seus habitantes contaminados por mercúrio, o que inclui crianças menores de 5 anos. A contaminação afeta também os peixes, que são base de alimentação de algumas comunidades. Em Maturacá, na parte amazonense da TI Yanomami, um estudo semelhante, feito em 2019, constatou a presença de mercúrio em 56% das mulheres e crianças da região.
Contaminados repetidamente pela malária, pelo mercúrio e também por outras doenças, os pais e as mães Yanomami ficam muitas vezes impossibilitados de caçar, semear seus roçados ou de coletar alimentos. Como não há energia elétrica nem a possibilidade de armazenar alimentos por períodos longos, a incapacidade de buscar alimentos por conta de doenças infectocontagiosas é fator relevante no cenário da desnutrição infantil no território.