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Mas pesquisa interna entregue às agências de publicidade investigadas revelam jornada de mais de 10 horas diárias

Reportagem
8 de agosto de 2022
17:00
Este artigo tem mais de 2 ano

“Eu vou repetir mais uma vez: os senhores tomaram conhecimento dessa pesquisa?”. Por três vezes a vereadora Luana Alves (PSOL) perguntou aos representantes das agências Benjamim Comunicação e Social Qi (SQi) sobre dados da jornada de trabalho dos entregadores vinculados ao iFood. As perguntas foram feitas durante a última sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Aplicativos, na manhã da terça-feira, 2 de agosto, na Câmara Municipal de São Paulo.

Apesar do repetido silêncio dos representantes das agências — convocados para depor na Comissão após a publicação de investigação da Agência Pública, “A máquina oculta de propaganda do Ifood” — a parlamentar reiterou seus questionamentos pois, como revelado, as agências haviam acessado pesquisas internas do iFood datadas entre fevereiro e abril de 2021 que contém informações de interesse público. 

À CPI dos Apps, o iFood informou apenas dados relativos à média de horas logadas por entregadores no município de São Paulo. Não teriam sido repassados os detalhes sobre rotina e horas trabalhadas, coletados em pesquisa encomendada pela empresa. 

Segundo os resultados de um estudo nacional que traça um raio-X dos entregadores, encomendado pelo iFood para o Instituto Locomotiva e revelado pela reportagem da Pública, cerca de 61% dos entregadores declararam trabalhar sete dias por semana. E apenas 8% declarou que faz entregas com o iFood cinco vezes por semana. O levantamento foi feito em março de 2021, por meio de entrevistas com 1484 entregadores em todo o país, selecionados a partir de uma base de dados nacional do iFood e tem margem de erro declarada de 2.5 pontos percentuais. 

Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Aplicativos, realizada na manhã da terça-feira, 2 de agosto, na Câmara Municipal de São Paulo
CPI dos Aplicativos realizada na manhã da última terça-feira, 2 de agosto, na Câmara de São Paulo

Segundo a mesma pesquisa Locomotiva, cerca de 47% dos entregadores declararam trabalhar mais de 10 horas por dia e 17% fazem uma jornada de mais de 12 horas de trabalho diariamente. 

Esses dados, entregues ao iFood pelo instituto de pesquisa contratado e posteriormente repassados às agências de publicidade no material obtido pela reportagem, são diferentes do que foi apresentado na CPI pelo diretor de relações governamentais da empresa de delivery. Na sessão do dia 7 de dezembro de 2021, bem antes da reportagem da Pública, quando os vereadores perguntaram quantas horas um entregador trabalha em média, João Sabino afirmou que “a maior parte dos entregadores fica logado no aplicativo cerca de 60 horas por mês”. O que, como explicou Sabino, daria uma jornada de 3 horas diárias, considerando 5 dias de semana de trabalho. 

Na ocasião, a resposta do diretor do iFood foi recebida com incredulidade pelos parlamentares, que pediram para Sabino repetir a informação. Entregadores que haviam prestado depoimento na CPI no mês anterior haviam apontado que jornadas de mais de 10 horas diárias eram muito comuns. Questionado pela segunda vez, o representante reiterou que “cerca de 70% dos entregadores passam menos de 60h por mês logados no app”. 

O dado apresentado à CPI, como declarado pelo representante, corresponde somente às horas logadas na plataforma. Procurado pela Pública, o iFood explicou que este número informado por Sabino se refere apenas ao município de São Paulo, sendo uma “média de tempo logado de todas as pessoas entregadoras com cadastro ativo na plataforma no Município de São Paulo no mês de setembro de 2021”. Segundo a empresa, a informação diz respeito somente à média de tempo, considerando o número geral de pessoas com cadastro ativo.  

Os dados apresentados pelo iFood à CPI foram coletados utilizando uma metodologia diferente do estudo Locomotiva e produzidos cerca de seis meses após o levantamento de nível nacional. Em resposta à Pública, o iFood frisou que os dados apresentados à CPI têm fundamentos diferentes do que foi coletado pelo Locomotiva, além de terem sido captados em outro contexto: somente no município de São Paulo e em um período com menos restrição de circulação por conta do arrefecimento da pandemia da Covid-19. 

O estudo Locomotiva entrevistou entregadores e colheu dados relativos ao trabalho na plataforma, não apenas ao tempo de permanência logado. À CPI, não foram informados outros detalhes solicitados sobre a rotina e a jornada de trabalho, para além da média geral das ‘horas logadas’, segundo apurado junto à vereadores que integram à CPI.

À reportagem, o iFood declarou que “respondemos todas as perguntas feitas pelos vereadores e vereadoras, e respondemos todas as solicitações de informações que nos foram feitas”. 

A Pública acessou os dois levantamentos de abrangência nacional encomendados pelo iFood ao Locomotiva e que apresentam resultados mais detalhados do que foi informado pela empresa à CPI. Um deles, feito em fevereiro de 2021 e que reuniu respostas de 2643 entregadores de todo país, indica que a maior parte dos entregadores (59%) trabalha mais de seis horas por dia, durante seis ou mais dias por semana. Essa pesquisa também foi elaborada pelo Instituto Locomotiva e utilizou a base de dados do PNAD Covid para calcular a amostragem. 

Motoboy percorre rua de São Paulo com mochila vermelha do iFood nas costas
Levantamento de abrangência nacional encomendado pelo iFood não foi apresentado à CPI

Alguns resultados desse levantamento foram publicizados pelo iFood em textos publicados no site da empresa e apareceram também na Câmara dos Deputados, em uma fala de representante da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que engloba o iFood e outras plataformas de delivery, durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados, focada em discutir projetos de regulação para o trabalho dos entregadores. No entanto, as informações detalhadas sobre a jornada de trabalho coletadas no mesmo levantamento não foram divulgadas.

Em um dos slides exibido na audiência, foi apresentado que apenas 15% dos entregadores cumpririam jornada de mais de 40 horas semanais. Segundo a apresentação, esta seria uma informação de âmbito nacional fornecida pelas empresas que integram a associação. Na ocasião, o dado foi contestado por entregadores que estavam presentes. 

Questionado sobre este dado específico, o iFood declarou que não poderia falar em nome de todo o setor.

Como o Instituto Locomotiva não pode comparecer na CPI e pediu reagendamento de sua participação seu representante se encontrava fora do país os vereadores tentaram conseguir detalhes sobre a jornada de trabalho com as agências. Como revelado na reportagem da Pública, as equipes da Benjamim Comunicação e Social Qi (SQi) tiveram acesso aos levantamentos que detalham a jornada de trabalho dos entregadores, a nível nacional. 

“Ficaremos em silêncio” 

“Eu pergunto para os senhores sobre esses dados [da jornada de trabalho] porque esta é uma informação de interesse público — de interesse nosso porque quando um entregador se acidenta é o poder público que arca”, disse Luana Alves na sessão.

Como as agências tiveram acesso aos resultados detalhados dos levantamentos nacionais encomendados pela empresa de delivery, havia a expectativa de que as informações pudessem enfim vir a público na sessão em que representantes da Benjamim e SQi compareceram.

Após dois convites para participação que não foram atendidos, a Comissão Parlamentar de Inquérito intimou os representantes das agências para depor. Munidos de decisão liminar em Habeas Corpus e acompanhados de advogados, os representantes se negaram a responder quaisquer perguntas dos parlamentares. 

Para representar a Benjamim Comunicação, compareceu Luis Flávio Guimarães Marques, sócio-administrador da agência e publicitário famoso no mundo do marketing político. Mais conhecido como Lula Guimarães, foi o responsável pelas campanhas de Eduardo Campos e Geraldo Alckmin à presidência e João Dória a prefeitura de São Paulo.

Representando a Social Qi, compareceu Daniel Braga, sócio da empresa e que foi um dos responsáveis pela campanha de João Dória ao governo de São Paulo. Foi a SQi quem criou o termo ‘BolsoDória’ durante a campanha e que gerenciou a comunicação do político pós-eleição. 

Daniel Braga (à esquerda), da Social Qi e seu advogado, Luis Flávio Guimarães Marques (direita)
Daniel Braga (à esquerda), da Social Qi, ao lado de seu advogado

Ambos representantes solicitaram o Habeas Corpus para terem assegurado o direito de “permanecer em silêncio quando indagados sobre fatos que impliquem autoincriminação”. O advogado da Benjamim declarou que o representante da agência não responderia as perguntas dos vereadores em função de outros procedimentos que estão em curso — MPT e MPF estão investigando a atuação das agências — e das cláusulas contratuais assinadas pela empresa. 

Ainda que a apresentação de Habeas Corpus por representantes de empresas convocadas seja uma prática comum, na CPI dos Apps até então nenhuma entidade tinha usado o instrumento para se negar a fornecer qualquer informação. O direito de ficar em silêncio havia sido utilizado em depoimentos anteriores somente para não responder algumas perguntas específicas. 

A utilização do Habeas Corpus para negar qualquer esclarecimento à Comissão gerou indignação nos vereadores durante a sessão de 2 de agosto. “Aqui vieram vários convidados que mesmo com habeas corpus nos ajudaram no sentido de construir um relatório”, declarou Adilson Amadeu (UNIÃO BRASIL), que preside a CPI.

“Nunca se teve essa postura de nem iniciar o diálogo”, registrou Luana Alves. A vereadora fez 14 perguntas às agências e obteve como resposta em todas variações da frase “vamos permanecer em silêncio”. Ao final da sessão, Alves lamentou o que chamou de “postura de zero colaboração com o interesse público”.

Antes de avisar que se negariam a responder às questões da Comissão, contudo, o representante da Benjamim Comunicação leu uma carta. Segundo o texto, a Benjamim Comunicação foi contratada pelo iFood em um período de crise para melhorar a comunicação da empresa com os entregadores. A carta argumenta que a agência não fez propaganda e que todas as ações foram uma estratégia de escuta social. 

Ainda segundo a carta, “é ou ingenuidade ou um equívoco considerar que as estratégias de escuta social poderiam influenciar os entregadores”. Segundo a agência, as estratégias empregadas obtiveram sucesso em estabelecer diálogo com os entregadores dado que ao fim do trabalho foi realizado o I Fórum de Entregadores do iFood.

O evento reuniu entregadores selecionados pela empresa para discutir demandas da categoria e gerou uma carta de compromissos assinada pela empresa. Para o encontro, que ocorreu a portas fechadas, não foram convidados representantes do Sindicato dos Motofretistas de São Paulo ou da Associação Brasileira de Motoboys (AMABR) que são lideranças políticas estabelecidas na categoria. 

Dados de pesquisas 

Em diversas ocasiões, o iFood reiterou publicamente que a maioria de seus entregadores trabalha poucas horas por dia, utilizando o aplicativo apenas como um complemento de renda. Na CPI, João Sabino declarou que “apenas um pequeno residual [de entregadores] utiliza o aplicativo uma média de 148h por mês”, o que daria 7 horas diárias de trabalho, considerando cinco dias por semana. 

Em textos publicados no site da empresa ou em reportagens da imprensa baseadas nos dados das pesquisas encomendadas pelo iFood, são divulgados dados mais favoráveis à empresa, como os números que indicam que os entregadores preferem o atual sistema de entregas em comparação ao regime CLT. Segundo o levantamento, dois em cada três entregadores de delivery preferem a autonomia ao registro em carteira.

A narrativa de que o trabalho com entregas é um complemento de renda para a maioria dos entregadores é repetida pela empresa de delivery em audiências e debates públicos que tratam da regulamentação do trabalho de entregas. 

Uma das pesquisas elaboradas pelo Instituto Locomotiva indica que 8 em cada 10 entregadores têm o delivery como a principal fonte de renda. Segundo o levantamento, apenas 13% dos trabalhadores utilizam o aplicativo como renda extra.

A Pública entrevistou o presidente do Locomotiva, Renato Meirelles, sobre os dados do estudo Raio-X dos Entregadores, encomendado pela empresa de delivery. Meirelles informou que o Locomotiva elabora estudos sobre o universo do trabalho para aplicativos e plataformas há anos. Além das pesquisas feitas para o iFood, o Instituto já produziu dados para o Uber e para o Projeto Fairwork  projeto liderado pela Universidade de Oxford que visa melhorar as condições do trabalho em plataformas digitais. 

“Esse é um tema de estudo nosso. E eu estou absolutamente seguro dos dados nas nossas pesquisas”, disse Meirelles quando perguntado sobre os resultados específicos das pesquisas sobre a realidade do entregador. “Mas é importante notar que uma pesquisa, justamente por ser um retrato, tem variáveis que influenciam nos resultados. Os resultados dependem da pergunta que é feita, de como ela é feita e quando é feita”, explicou. Segundo ele, diferentes metodologias de pesquisa levam a resultados diferentes. 

“Em resumo, o iFood nos procurou para entender qual era o perfil do entregador. Fizemos as pesquisas e quem recebe os dados decide qual dado publica e qual dado não publica”, disse Meirelles. Parte dos resultados do estudo entregue apareceu em anúncios da empresa e na mídia, apontou. “O nosso trabalho no Locomotiva é produzir dados para um debate justo baseado na verdade factual, foi isso que fizemos”, declarou. Meirelles afirmou ainda que comparecerá na próxima sessão da CPI, marcada para esta terça-feira, 9 de agosto. 

“O iFood veio aqui [na CPI] e falou que a maioria usa [o aplicativo] como complemento de renda. Mas isso não é verdade”, disse Luana Alves. Para a vereadora, a segunda convocação para o Instituto Locomotiva representa agora a possibilidade de acessar os levantamentos sobre a jornada de trabalho. 

Outro lado 

As agências Benjamim e Social Qi foram procuradas pela reportagem mas não retornaram até a publicação. A Agência Pública se mantém aberta a receber novos esclarecimentos dos citados na reportagem. Em relação aos questionamentos enviados ao iFood, reproduzimos sua nota na íntegra: 

“Desde o primeiro dia em que o iFood foi convidado para participar da CPI dos apps da Câmara Municipal de São Paulo frisamos o nosso compromisso de colaborar com os Vereadores da Casa, compartilhamos informações e recebemos uma comitiva em nosso escritório. Respondemos todas as perguntas feitas pelos vereadores e vereadoras, e respondemos todas as solicitações de informações que nos foram feitas. Algumas destas informações foram respondidas em ofícios com pedido de confidencialidade, já que contém dados estratégicos de negócios. Essas informações ficam à disposição de todos os vereadores integrantes da CPI para a realização de seu trabalho, mas permanecem protegidos nos termos da Lei, o que garante o seu sigilo.

Voltando aos questionamentos da Agência Pública sobre a comparação entre pesquisas e dados disponibilizados pelo iFood aos vereadores da CMSP, entendemos que é necessário trazer alguns esclarecimentos. Ao falar sobre pesquisas é importante considerar pontos determinantes para os resultados do trabalho como: metodologia, universo amostral, data de realização do estudo/campo, perfil da amostra estudada e as informações que se obtiveram. Assim, evita-se misturar conceitos e fazer comparações equivocadas. Destacamos que as pesquisas avaliadas têm fundamentos diferentes: 

  • Locomotiva: a pesquisa foi realizada entre os dias 15 e 22 de março de 2021 (período ainda com restrições de circulação em função da pandemia), com entregadores de todas as regiões do Brasil e que fossem cadastrados no iFood. A amostra foi de 1.484 entrevistas. A margem de erro foi de 2,5 pp. Essa pesquisa utilizou um questionário online com perguntas aos entregadores para obter as suas respostas.
  • Dados do iFood: usaram base de dados interna para análise, ou seja, não fez perguntas aos entregadores. Também estudou dados apenas daqueles entregadores que circulam pela cidade de São Paulo (área de estudo da CPI), e o levantamento foi feito em Setembro de 2021 (período com menos restrições de circulação se comparado ao período analisado pela Locomotiva). Neste levantamento não há margem de erro já que usamos a totalidade dos dados da cidade de SP.

Portanto, embora a um primeiro olhar pareça que as pesquisas fazem a mesma análise, esta não é uma afirmação correta. Os universos são diferentes (Brasil vs. cidade de São Paulo): uma utilizou perguntas em um questionário online; a outra analisou uma base de dados; e os períodos são distantes 6 meses um do outro, contando com significativas mudanças na dinâmica social das cidades,.

Para recordar, no período da realização do campo da pesquisa da Locomotiva, o Brasil enfrentava o pior momento em número de casos registrado até então desde o início da pandemia, com média de 73 mil casos em 7 dias. No período da análise dos dados do iFood o cenário era bem diferente, com média de 18 mil casos em 7 dias, uma queda de 75%. (Fonte: JHU CSSE COVID-19 Data)

Analisar metodologias e dados é uma ciência complexa, que requer cuidado e atenção, e para a qual contamos com o auxílio de especialistas no assunto para fazer com responsabilidade.

Nosso compromisso é continuar aprendendo, colaborando e melhorando as nossas práticas de mercado, especialmente aquelas que tocam os entregadores e entregadoras da plataforma. A verdade é que avançamos muito e inclusive ajudamos a definir novas práticas para o mercado de delivery como um todo. Mas nós sabemos também que precisamos fazer mais – e vamos”. 

Clarissa Levy/Agência Pública
José Cícero/Agência Pública
Clarissa Levy/Agência Pública

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