Pelas suas masmorras passaram pelo menos 6.700 presos políticos apenas de 1969 a 1975, dos quais um incontável número foi torturado e de 52 a 70 foram assassinados, segundo números coletados pela historiadora Deborah Neves. Pela primeira vez no país, um projeto arqueológico, histórico e forense pretende devassar o terreno e as edificações da antiga sede de um DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), um violento e temido braço da repressão política durante a ditadura militar (1964-1985).
Por meio de escavações controladas, raspagens, escaneamentos e raio-x, entre outros meios, a pesquisa buscará produzir conhecimento para a melhor compreensão dos espaços utilizados pela repressão e, num cenário ideal, localizar qualquer tipo de vestígio da passagem dessa multidão de ex-prisioneiros, muitos dos quais desaparecidos até hoje.
O foco da pesquisa é o conjunto de cinco edificações erguido sobre um terreno de 1,5 mil metros quadrados em São Paulo que abrigou, durante 14 anos, a sede do DOI-Codi de São Paulo. O conjunto tem duas entradas, uma pela rua Tutoia, 921, marcada pela presença de guaritas à vista de quem está na rua, o que confirma o objetivo militar do prédio, e outra pela rua Tomás Carvalhal, 1030, no bairro do Paraíso, na zona sul da capital paulista. Na década de 1970, a partir da experiência paulistana, outras nove capitais brasileiras tiveram seus próprios DOI-Codi, todos marcados por relatos de extrema violência e ilegalidades.
“Nosso objetivo é usar os recursos forenses a fim de dar uma resposta social. Por fim, ajudar a transformar o local num memorial para que as pessoas saibam e reflitam sobre o que ocorreu naquele lugar. Hoje em dia há pessoas duvidando de que a ditadura aconteceu. Então precisamos trazer isso ao público. Vários países estão recuperando essa memória e o Brasil segue atrasado nisso tudo”, disse a professora de arqueologia Cláudia Regina Plens, coordenadora do projeto de pesquisa e do LEA (Laboratório de Estudos Arqueológicos) do Departamento de História da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
O projeto de pesquisa conta com mais seis pesquisadores associados e outros cinco colaboradores, entre arqueólogos, historiadores e geneticistas de diversas instituições de ensino, como a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a USP (Universidade de São Paulo), a Unicamp (Universidade de Campinas) e a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
O primeiro passo do projeto propriamente dentro do complexo do extinto DOI-Codi deverá começar ainda em agosto, segundo Plens, quando os pesquisadores utilizarão um equipamento de radar para tentar localizar as possíveis alterações realizadas nas paredes e no chão ao longo dos anos. Os pesquisadores não têm notícia de que houve enterros dentro do complexo, mas o georadar também poderá identificar algo nesse sentido.
Luminol e escaneamento 3D
A pesquisa também prevê para os próximos meses, a depender da liberação de novos recursos e de autorizações de órgãos públicos, a tentativa de localizar manchas de sangue invisíveis a olho nu e inscrições feitas pelos presos nas antigas paredes das celas.
“Vamos descascar paredes, escavar o chão de forma controlada, vamos procurar evidências com luminol, com luzes forenses, aplicativos específicos de celular, usar drones, enfim, vamos pôr tudo o que gente tem à disposição para tentar encontrar esses vestígios. Mais adiante faremos um escaneamento em 3D de todo o lugar”, disse Plens. O luminol citado pela professora é um composto químico que, aplicado no ambiente e nas coisas, reage à presença do sangue e emite uma luz. Ele tem sido usado por peritos em locais de crimes violentos.
Como esse tipo de pesquisa é incomum, pois trata de eventos ocorridos há mais de 40 anos, os especialistas não sabem se eventuais manchas de sangue poderiam permitir uma análise de DNA, isto é, se o DNA resistiu com o passar do tempo. Caso seja possível a recuperação do DNA, o resultado poderia ser comparado com amostras de familiares de mortos e desaparecidos, mas essa possibilidade ainda é uma especulação na atual fase da pesquisa.
As cinco construções que compõem o antigo DOI-Codi ( “delegacia”, que incluía seis celas mais uma “cela forte”, almoxarifado, uma casa às vezes usada pelo comandante, um alojamento e uma oficina mecânica) passaram por pinturas, obras e alterações ao longo dos anos. As grades das antigas celas, por exemplo, foram retiradas. Um dos objetivos da pesquisa será reconstituir os ambientes anteriores. No caso do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura dentro do prédio, a pesquisa tentará identificar o local correto em que seu corpo foi pendurado pelos militares para simular um suicídio, conforme demonstram as fotografias montadas pelos militares na época.
A repressão primeiro inaugurou, nos prédios das ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, a sede da Oban (Operação Bandeirante), em julho de 1969. Em setembro do ano seguinte, instalou o DOI-Codi, a apenas 800 metros do Comando Militar do Sudeste, a principal unidade militar na região. Durante quatro anos (1970-1974), essa máquina de prisões, torturas e execuções foi comandada pelo coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), tratado como herói e exemplo pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo seu vice, o general da reserva Hamilton Mourão.
A doutora em história pela Unicamp (Universidade de Campinas) Deborah Neves, técnica da UPPH (Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo), coordena um grupo de trabalho sobre o DOI-Codi que reúne diversas instituições. Ela produziu os pareceres técnicos que levaram, em 2014, ao tombamento do prédio pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). O tombamento foi solicitado em 2010 pelo ex-preso político Ivan Seixas ao lado de várias entidades de direitos humanos e de familiares de mortos e desaparecidos.
“O DOI-Codi foi o principal órgão que articulou diferentes forças de repressão, polícias Federal, Civil, Militar, foi um grande conglomerado de servidores e de estratégias da repressão, um grande laboratório de como fazer funcionar todo o sistema de investigação, interrogatório e morte. Ele foi uma grande síntese do que era o aparato repressivo do Estado. Foi o grande Leviatã da repressão”, disse Neves.
A pesquisadora rejeita a versão de que as torturas, assassinatos e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura tenham sido promovidos por uma espécie de “porão” ou por grupos de militares supostamente fora do controle da hierarquia militar.
“O porão é uma coisa escondida, que não fica à vista dos nossos olhos. E o que a gente percebe, ao estudar a natureza dos órgãos de repressão, é que não tinha nada de porão. Eram prédios sempre bem localizados, em bairros residenciais, as pessoas sabiam o que estava acontecendo ali. Essa linha [argumentativa] sempre repetida de que se trata de ‘uma conduta isolada de um agente ou de um grupo de agentes, que é rechaçada pela corporação como um todo ou pelo oficialato’, isso não é verdade. [O DOI-Codi] foi uma política da instituição. O Exército criou com aquela finalidade, promoveu treinamento, reuniu gente de todas as forças policiais. Não se pode afirmar que não se sabia o que estava acontecendo ali, não existe essa possibilidade”, disse Neves.
A inspiração para a criação do DOI-Codi, segundo Neves, “veio da experiência francesa na Guerra da Argélia, os métodos de interrogatório e tortura vieram de lá, e da experiência norte-americana na doutrina da segurança nacional, que tratava o brasileiro como inimigo da própria pátria”.
“Arqueologia da Repressão e da Resistência”
Outro participante do projeto de pesquisa, o arqueólogo argentino Andrés Zarankin, professor titular do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, realizou pesquisas na Argentina e no prédio do antigo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social de Belo Horizonte, Minas Gerais), um órgão da Polícia Civil que fazia o papel de polícia política também monitorando, prendendo e torturando opositores da ditadura. O prédio deverá se tornar um memorial sobre a ditadura. Junto com o professor Pedro Paulo Funari, Andrés Zarankin propôs o conceito de uma “Arqueologia da Repressão e da Resistência”, ou seja, “analisar, a partir da Arqueologia, a engenharia de extermínio gerada por governos autoritários na América do Sul durante a segunda metade do século 20”.
Zarankin explicou que não é possível saber o que o estudo arqueológico vai exatamente encontrar durante a pesquisa no prédio do extinto DOI-Codi de São Paulo, pois “a arqueologia é, em certo sentido, como uma pescaria, sabe-se que tem peixes, mas não se sabe o que vai encontrar”. Para o pesquisador, o trabalho vai atrair a atenção das pessoas “para permitir que se conte uma história que está sendo absolutamente distorcida”.
“Hoje existe uma distorção, uma tentativa de mudar a história, de se criar uma história fictícia de como ‘a ditadura foi uma coisa positiva para o mundo e país’. São discursos sobre o passado que tentam legitimá-la, aí que está o perigo. Como ‘a democracia veio da ditadura’. Por isso a importância das disciplinas que trabalham com o passado, [explicar] como as ditaduras, não só a brasileira, têm a ver com morte, com a tortura, com a destruição da dissidência política.”
O extinto DOI-Codi de São Paulo foi tombado em 2014 pelo Condephaat, mas o Ministério Público teve que ajuizar uma ação para solicitar que o Estado de São Paulo garanta a preservação do prédio. Há um ano, o juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, concedeu liminar favorável ao MP. A ideia é transformar o endereço num centro de memória sobre os horrores da ditadura, a exemplo do que já ocorreu na Argentina com a sede de uma escola da marinha, a Esma (Escola de Mecânica da Armada), o mais emblemático centro de torturas e mortes durante a ditadura no país vizinho.
Além de Plens, Neves e Zarankin, atuam no projeto as professoras Aline Carvalho, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp, que tem coordenado o Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte, Cintia Fridman, geneticista da Universidade de São Paulo, Maryah Elisa Morastoni Haertel, do Laboratório de Física do Departamento de Ciências Exatas e Educação da UFSC, Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra, além dos pesquisadores colaboradores.